O norte fluminense no século XVI (final)
* Arthur Soffiati 03/01/2019 17:51 - Atualizado em 07/01/2019 18:06
A planície entre 1534 e 1546. Alguma notícia sobre a região será fornecida depois da divisão do Brasil em Capitanias Hereditárias, em 1534, quando a foz do rio Macaé, presumidamente, e a foz do rio Itapemirim, certamente, tornaram-se os limites da Capitania de São Tomé, doada pela Coroa portuguesa a Pero de Gois. Até que ele escolhesse um local para se instalar, as margens do Paraíba do Sul foram examinadas para elevação da sede da capitania, como informa Gabriel Soares de Sousa (“Tratado descritivo do Brasil em 1587”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938). Como Sousa escreveria seu tratado no final do século XVI, pode ter havido engano de sua parte, pois Pero de Gois buscou posteriormente um ponto mais seguro nos seus domínios. Sabemos que ele acabou se instalando na zona de tabuleiros, terrenos mais altos que a planície e cobertos de grandes árvores. O ponto escolhido localiza-se nas cercanias da margem direita do rio Itabapoana, chamado então de Managé. As razões para essa escolha parecem de ordem ambiental, econômica e de segurança. O curioso é que Eduardo Bueno acatou a informação de Gabriel Soares de Sousa, havendo já razoável literatura sobre a fundação da vila da Rainha na margem direita do Itabapoana (“Capitães do Brasil”. Rio de Janeiro: Sextante, 2016).
As cartas de Pero de Gois a Martim Ferreira, seu sócio em Portugal, e ao rei são confusas para nós. Devem ter sido também no seu tempo. Afinal, tratava-se de um mundo novo, com rios, lagoas e florestas pujantes, além de habitantes presumidamente hostis. Gois se instalou na terra dos puris. Esse mundo impunha aprendizado aos europeus, acostumados com uma natureza domesticada e amena. Essas cartas e toda a documentação referente à capitania de São Tomé merece mais pesquisa e um livro.
A Capitania de São Tomé, depois chamada Paraíba do Sul, foi doada a Pero de Gois em 10 de março de 1534, doação confirmada em 28 de janeiro de 1536. Os limites dela se estendiam por treze léguas a contar de Cabo Frio até os misteriosos Baixos do Pargos (mencionados no diário de Pero Lopes de Sousa). Em 14 de agosto de 1539, Pero de Gois entrou em acordo com Vasco Fernandes Coutinho, donatário da Capitania do Espírito Santo, para situar o limite entre os domínios de ambos em local de mais fácil reconhecimento. Assim, o limite ao norte foi fixado no rio Itapemirim. Ao sul, ele ficou vago, pois Pero de Gois não se movimentou por lá. Muito menos pelo interior, que ficou em aberto. Em 12 de março de 1543, D. João III, rei de Portugal, sancionou o acordo entre os donatários.
Pero de Gois instalou-se na foz do rio Managé (hoje Itabapoana), entre a restinga de Marobá e os tabuleiros. O terreno alto das falésias era coberto por extensas florestas. Dali, ele podia vigiar quem chegava por mar. Consta que, no lado direito da foz do Managé, Pero de Gois ergueu um povoado ao qual deu o nome de Vila da Rainha, em homenagem a Dona Catarina, rainha de Portugal. No século XVIII, Couto Reis informará ter achado restos dela. Pelas cartas de Pero de Gois, ele instalou um engenho na costa e outro na última queda d’água do Managé, junto à pedra do Garrafão.
A experiência de implantar um núcleo europeu em sua versão portuguesa na sua capitania durou de 1539 a 1546. Sete anos, portanto. Ataques de índios e de portugueses provenientes do Espírito Santo inviabilizaram a iniciativa. Depois de flechado num olho, Pero de Gois abandonou a capitania sem devolvê-la oficialmente à Coroa portuguesa. Dela restou apenas o porto junto à ultima queda d’água do rio Itabapoana, aproveitada atualmente para a geração de energia elétrica pela Pequena Central Hidrelétrica Pedra do Garrafão. O porto é um dos três pontos mais antigos do sudeste brasileiro, apenas suplantado por São Vicente e por Vila Velha. O porto é mais antigo que a cidade do Rio de Janeiro e está abandonado.
A planície entre 1546 e 1600. Era comum os navegantes do século XVI evitarem a planície, mesmo porque era difícil desembarcar nela. O ponto mais acessível era o arquipélago de Santana, em frente à foz do rio Macaé. Ele ficava afastado do continente e protegido de possíveis ataques indígenas. Além do mais, sua ilha principal contava com água doce para abastecer os navios.
Jean de Léry, em torno de 1558, registrou o medo que os europeus nutriam pelos nativos da planície e a utilidade do arquipélago de Santana: “Depois de costearmos a terra desses uetacá, avistamos outra região próxima chamada de Macaé e habitada por outros selvagens que (...) não podem(?) se comprazer na vizinhança de índios tão brutais e ferozes. Nessas terras vê-se à beira-mar um grande rochedo em forma de torre, tão reluzente ao sol que pensam muitos tratar-se de uma espécie de esmeralda; e com efeito, os franceses e portugueses que por aí velejam o denominam ‘Esmeralda de Macaé’. Dizem que ela é rodeada por uma infinidade de rochedos à flor da água que avançam mar afora cerca de duas léguas e como tampouco a ela se tem acesso por terra, é completamente impraticável. Também existem três pequenas ilhas chamadas ilhas de Macaé junto das quais fundeamos e dormimos uma noite (...) estava nossa aguada corrompida, por isso pela manhã (...), alguns marujos foram procurar água potável nessas ilhas desabitadas e verificaram que todo o terreno se achava coberto de ovos de aves de diversas espécies, aliás diferentes das nossas. E tão mansas, por nunca terem visto gente, que se deixavam pegar com a mão ou matar a pauladas; assim nossos homens puderam encher o escaler, trazendo para o navio grande quantidade delas (“Viagem à terra do Brasil”. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961). Um século antes dos europeus na América, a ilha de Santana foi habitada por indígenas em meio à fartura de alimentos.
Hans Staden esteve no Brasil em duas aventureiras viagens, nos anos de 1548 e 1549. Ele apenas registra o rio Paraíba do Sul e informa que os Goitacazes eram inimigos dos tupinambás (“Viagem ao Brasil”. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1988).André de Thévet, que esteve no atual Rio de Janeiro de 1555 a 1556, não passou pelo cabo de São Tomé e pela ilha de Santana.
Em 1556, o mapa “Brasiliaanze Sheepvaard door”, de Johan Lerius Gedann vit Uraneryk in’t Iaar, dá à foz do Paraíba do Sul o nome de Oterakata (Paulo Miceli (texto e curadoria) “O tesouro dos mapas: a cartografia na formação do Brasil” (catálogo). Rio de Janeiro: Instituto Cultural Banco Santos, 2002). O mapa do cartógrafo holandês registra o local como se fosse uma enseada.
Redigido, ao que parece, a partir de 1573/1574 até, talvez, 1590, o “Roteiro de todos os sinais na costa do Brasil”, atribuído ao cartógrafo Luís Teixeira, omite os nomes dos rios Itapemirim, Itabapoana, Paraíba do Sul e Macaé, todos eles então já conhecidos e registrados em documentos escritos e cartográficos (Luís Teixeira (provavelmente). “Roteiro de todos os sinais na costa do Brasil”. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968).O grande estudioso Max Justo Guedes o examinou minuciosamente, comparando os acidentes geográficos anotados pelo navegador com a cartografia do século XVI e com o roteiro cartográfico do Brasil produzido pela Marinha do Brasil. Parece que existem equívocos nesse exame, o que nos levará a um artigo específico sobre o roteiro.
Para o português Gabriel Soares de Souza, “Esta ilha de Santa Ana fica em vinte e dois graus e um terço, a qual está afastada da terra firme duas léguas para o mar, e tem dois ilhéus junto de si. E quem vem do mar em fora parece-lhe tudo uma coisa. Tem esta ilha da banda da costa um bom surgidouro e abrigada por ser limpo tudo, onde tem de fundo cinco e seis braças: e na terra firme defronte da ilha tem boa aguada, e na mesma ilha há boa água de uma lagoa. Por aqui não há de que guardar senão do que virem sobre a água. E quem vem do mar em fora para saber se está tanto avante como esta ilha, olhe para a terra firme, e verá no meio das serras um pico, que parece frade com capelo sobre as costas, o qual demora a loeste noroeste, e podem os navios entrar por qualquer das bandas da ilha como lhe mais servir o vento e ancorar defronte entre ela e a terra firme (“Tratado descritivo do Brasil em 1587”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938). O pico também percebido por Jean de Lery é o conhecido pico do Frade.
Sobre a região no final do século XVI, cabe ainda mencionar o fantasioso relato do corsário inglês Anthony Knivet (“As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens” (Organização, introdução e notas: Sheila Moura Hue). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007). Ele afirma ter convivido com puris e travado guerras contra os goitacazes. Sua geografia, contudo, é tão confusa que suas palavras merecem desconto, em que pese a importância dada a ele por estudiosos.
Encerrando o século, a carta “Brasilia Descriptionis Ptolomaicae Augmentuum”, de 1597, Cornelius Witflief dá à foz do Paraíba do Sul o nome de Baía de S. Salvador (Paulo Miceli (texto e curadoria) “O tesouro dos mapas: a cartografia na formação do Brasil” (catálogo). Rio de Janeiro: Instituto Cultural Banco Santos, 2002). Esses mapas sempre viam o litoral do mar, pois havia o receio de aportar no continente povoados por nativos perigosos.
Um livro em dois volumes, como é “O Rio de Janeiro no século XVI”, de Joaquim Veríssimo Serrão (Lisboa: Comissão das Comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965), pretende ser exaustivo, mas está centrado na baía da Guanabara. Não passa de Cabo Frio para o norte nem de Angra dos Reis para o Sul. Será preciso aguardar o século XVII para descobrir a planície dos goitacás.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS