Crítica de cinema - A arte do incômodo
Felipe Fernandes 22/06/2018 18:08 - Atualizado em 24/06/2018 22:21
Divulgação
“Hereditário” vem sendo vendido como o novo “Exorcista”, uma comparação perigosa tanto na construção desnecessária de expectativa, quanto nas comparações equivocadas, já que são obras bem distintas. Produzido pela A24, produtora que tem se especializado em lançar filmes de terror com roupagem de filmes de arte, uma espécie de terror ‘’gourmet’’ (na melhor concepção dessa expressão que tem se tornado clichê) que se destacam pelo refinamento estético e por roteiros bem construídos. São narrativas com ritmos bem distintos que podem incomodar o espectador mais impaciente ou aqueles à procura do susto fácil.
Após a morte da matriarca, a família Graham lida com o luto de forma solitária. Quando a filha mais nova, que tem uma forte ligação com a avó começa a ter estranhos comportamentos, são o prenúncio que o passado volta para atormentar a família.
Não que “Hereditário” seja um retrato de sua época ou traga questões políticas em seu subtexto, mas ele parece um filme de terror da década de 70. A preocupação com a ambientação, a narrativa cadenciada, a construção do incômodo com cenas que em primeiro momento parecem não acrescentar muito, mas vão estabelecendo todo o clima do filme.
Cinema
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Em uma determinada cena o pai pergunta ao filho se está triste pela morte da avó, o rapaz simplesmente não sabe o que responder, o pai então diz entender o filho. Essa cena ilustra bem a falta de diálogo dentro daquela família. Eles vivem em uma casa grande, fria, (sensação ressaltada frequentemente pelo pai), apesar das portas sempre abertas, cada um parece trancado em seu próprio mundo.
O luto é tratado de maneira solitária, os traumas internos são revelados aos poucos, a única cena mais expositiva é construída de maneira verossímil, a protagonista Annie (Toni Collette) praticamente “vomita” seus problemas para estranhos, numa tentativa de aliviar a pressão pela morte da mãe e toda a catarse envolvida por anos de repressão e problemas mentais da matriarca.
Os problemas da protagonista estão todos ligados à figura materna, à difícil relação das duas e à infância conturbada, são retratadas indiretamente na relação da protagonista com seus filhos. Annie não quer se tornar a própria mãe, talvez por isso ela seja insensível aos filhos, ela não sabe lidar com sua prole, mesmo que em alguns momentos ela demonstre um afeto escondido por grossas camadas de ressentimento, tristeza e solidão. Até mesmo seu trabalho remete a ideia da construção de lares e ambientes que nunca foram normais a ela. Annie reconstrói em miniatura o lar e a vida que nunca teve.
Construindo pacientemente essas relações, o luto e todo o clima, a primeira metade do filme corre de forma lenta, o que pode incomodar o espectador que foi à procura do susto fácil. Essa primeira parte funciona como um drama familiar que trabalha no incômodo, na estranheza para criar sua ambientação, as cenas aparentemente descompromissadas do início começam a se encaixar e dão força dramática para o segundo e terceiro ato, abraçando o gênero em sua essência na segunda metade.
O cineasta Ari Aster mostra talento em seu primeiro longa. Eficiente na construção narrativa e visual, Aster é inteligente em usar movimentos de câmera e composições de quadro que privilegiam o vazio, dando a sensação que a qualquer momento algo pode sair de lá. Com movimentos lentos sua câmera ressalta o medo dos personagens e do espectador ao desconhecido.
“Hereditário” é mais um belo exemplar desse “novo” terror hollywoodiano, um gênero que vem se reciclando com filmes originais, de baixo orçamento que primam pela criatividade e pela narrativa bem construída, características cada vez mais ausentes no cinema mainstream e chega a ser curioso que justamente o gênero mais saturado de todos esteja permitindo essa renovação.

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