"Fica mais criança, fica solidão"
Aluysio Abreu Barbosa 26/05/2018 21:40 - Atualizado em 29/05/2018 16:04
Morreu por volta das 9h da manhã desse sábado (26) o ator e professor Yve Carvalho. Ele tinha 54 anos e estava internado há cerca de 70 dias no Hospital Ferreira Machado (HFM), por conta de insuficiência renal. O velório ocorre no Teatro Trianon, desde a meia-noite deste domingo, cujo palco foi um dos tantos ocupados pelo talento de Yve. O enterro será às 16h, no Campo da Paz.
Yve começou no teatro nos anos 1980. Sua primeira peça foi “Blue jeans”, encenada no Teatro de Bolso (TB) sob a direção do também já falecido Félix Carneiro. A partir daí, ele fez várias peças em Campos, chegando a dividir elenco com a então atriz e depois governadora do Rio e prefeita de Campos, Rosinha Garotinho. Foi em “O auto do lavrador”, sob direção de Orávio de Campos.
A partir da sua atuação na peça “O Noviço”, de Martins Pena, em 1986, Yve saiu de Campos, como o primeiro ator pago da planície goitacá nos palcos do Rio. Lá, ele investiu na sua formação acadêmica. Após se formar como técnico em ator na Escola de Teatro Dirceu de Mattos, também se graduou em licenciatura em teatro na Unirio. Nos anos 1990, ele trabalhou como secretário de uma musa daquela década, a atriz global e ex-modelo Isadora Ribeiro.
Aprovado em concurso como professor de arte da rede estadual e ainda morando no Rio, Yve integrou o elenco da peça campista “Auto do Ururau”, dirigida por José Sisneiro, que arrebatou o prêmio Shell, um dos mais importantes do teatro brasileiro, em 2005. No mesmo ano, ele venceu como intérprete o FestCampos de Poesia Falada, no hoje fechado Palácio da Cultura. O poema que Yve defendeu também ganhou aquele FestCampos, do qual participei como júri: “Goya Tacá Amopi”, do poeta, diretor teatral e turismólogo Antonio Roberto de Góes Cavalcanti, o Kapi (1950/2015).
O reconhecimento na terra natal, a amizade e intensa parceria artística com Kapi, além de ter passado em concurso como professor de arte também na rede municipal de Campos, trouxeram Yve de volta em 2006. Como eu já tivera alguns poemas dirigidos por Kapi, mas com outros intérpretes, em FestCampos anteriores, formou-se uma nova parceria ator/diretor/autor que estreou com bastante sucesso no FestCampos de 2007. Naquele ano, sob direção de Kapi, Yve interpretou “muda”, poema meu sobre Atafona, que acabou tirando o primeiro lugar.
O fato do poema ter vencido, mas não seu intérprete, revelou a mim e ao público o imenso compromisso de Yve com sua arte. Após o poema ter passado sem nenhum deslize pela semifinal, Yve esqueceu o texto no meio, na final do dia seguinte. E a culpa pode ter sido também minha, pois estávamos numa tremenda ressaca, após bebermos até amanhecer o dia, comemorando a classificação.
O grande ator não se fez de rogado, pediu desculpas, saiu de cena e voltou de imediato ao palco do auditório do Palácio da Cultura, retomando o poema do início. Se o erro na primeira tentativa acabou lhe impedindo de ganhar como intérprete, sua coragem fez com que a obra fosse a vencedora daquele FestCampos.
A parceria ainda colheria mais frutos em 2008. Novamente com a interpretação de Yve, sob direção de Kapi, outro poema meu, “conversão a mais de uma atmosfera”, acabaria vencedor do 11º Concurso Nacional de Poesia Francisco Igreja, em 2008. O palco, não poderia ser mais honroso: a sala Machado de Assis, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Além da obra, Yve ganharia como melhor intérprete daquele festival, seu maior prêmio como ator em terras cariocas.
Ainda em 2008, Yve faria sua primeira experiência no cinema. Sob a direção do campista Carlos Alberto Bisogno, ele protagonizou o curta “Efígie”. O filme seria lançado em 2009. Enriquecido pela experiência, Yve retornaria aos palcos no mesmo ano, para encenar no TB seu primeiro monólogo: “Meu querido diário”, do dramaturgo, poeta e professor Adriano Moura. Novamente sob direção de Kapi, foi um ato de resistência. Encenada já em setembro, foi apenas a segunda montagem de artistas locais naquele ano triste para o teatro de Campos. Após a estreia da peça, escrevi sobre seu protagonista numa resenha crítica publicada na Folha Dois:
— Podemos também notar um intérprete superior, que soube pontuar sua conhecida visceralidade com um timing de comédia quase casual, servindo as deixas do texto ao riso do público numa fruição espontânea, sem fazer força, mesma caudalosa.
No verão de 2010, Kapi passava uma temporada como hóspede em minha casa em Atafona, quando teve uma ideia mirabolante. Ele juntaria poemas sobre Atafona, meus, dele, de Artur Gomes e Adriana Medeiros, que seriam adaptados como causos contados entre pescadores, numa peça chamada “Pontal”. O palco não poderia ser mais apropriado: o bar do Bambu, como Neivaldo Paes Soares passou a ser conhecido após ocupar no Pontal de Atafona a antiga casa de barco da família Aquino, proprietária do Grupo Thoquino, transformando-a em bar e sua residência.
O primeiro ator pensado foi Yve, que já conhecia alguns poemas. A ele se juntaram o campista Sidney Navarro e o gaúcho Mairus Stanislawski. Administrar o conflito entre personalidades fortes como Kapi, Neivaldo e Yve não foi fácil, mas valeu a pena. A peça acabou sendo um inesperado sucesso de público, apesar do acesso ao local só pela areia e ausência de energia elétrica. E talvez tenha sido o último grande momento de um lugar mágico, entre o Paraíba do Sul e o Atlântico.
O avanço do mar levaria o bar do Bambu em julho de 2012, enquanto Neivaldo desapareceria misteriosamente na foz do rio em 21 de junho de 2015.
Cerca de dois meses antes de Neivaldo, Kapi também partira em navegação ao desconhecido. Um dos maiores artistas de Campos, foi condenado ao ostracismo nos oito anos da gestão municipal da ex-atriz Rosinha Garotinho, vítima de ressentimento mesquinho por ter gravado um vídeo de apoio à oposição, na eleição de 2008. Em 2 de abril de 2015, Kapi também não resistira a um quadro de insuficiência renal.
Com a morte de Kapi, Yve se assumiu também como diretor. Trabalhando com a produtora Oráculo, do odontólogo, psicólogo e ator Luiz Fernando Sardinha, o grande ator ministrou cursos sobre tragédias gregas para jovens. E os dirigiu em clássicos como “Édipo Rei”, de Sófocles; “Medeia”, de Eurípedes; e “Prometeu acorrentado”, de Ésquilo. Depois de montar os três do TB, levou o último também ao palco do Trianon.
Passado o sucesso no verão de 2010, Yve também assumiu a direção de “Pontal” com a morte de Kapi. E a encenou em palcos como o Cais da Lapa, o Cineteatro São João da Barra, o auditório do Porto do Açu, o Sesc de Campos e a praça do Liceu, durante a primeira edição do Festival Doces Palavras (FDP). Vários outros atores compuseram o elenco, sempre ao lado de Yve: Artur Gomes, Toninho Ferreira, Saullo Oliveira e Jota Z.
Após sua estreia num pedaço do próprio Pontal que não existe mais, foi por iniciativa de Yve que “Pontal” teve outra montagem muito emblemática. Durante a ocupação do Teatro de Bolso pelos artistas de Campos, no movimento Ocupa TB, entre maio e junho de 2016, a peça foi exibida no palco fechado há mais de dois anos. Com os mesmos Yve, Saullo e Jota Z, “Pontal” teria uma reestreia no Teatro de Bolso já reaberto, com casa lotada, em 30 de junho de 2017.
Mesmo que eu tenha escrito 17 dos 22 poemas que compõem a peça, Yve era o capitão de “Pontal”. Ao longo dos anos, nossa parceria nasceu na afluência entre poesia e teatro. E a amizade foi irrigada com cerveja e cachaça, dos teatros e festivais de poesia às mesas de bar de Campos, Rio e Atafona.
Como ator, Yve era dramaticamente visceral, sem ser hiperbólico, ou baixar a pulsação da veia cômica. Ninguém precisava lhe dizer isso, pois ele já sabia, fazendo questão de deixar claro em alto e bom som, sempre que possível. Era uma estrela com consciência do seu brilho; um artista e pessoa por vezes difícil, mas absolutamente necessário.
Se seu desbordar era capaz de preencher as vidas ao redor, com sua morte ficam muitos vazios. Campos perde seu maior ator. Eu e outros tantos, um amigo.
Com versos familiares, me despeço. Até o reencontro em outra foz, meu irmão!
ACENOS
(Antonio Roberto Kapi)
Quem parte
deixa saudade,
deixa acenos,
esquece livros.
Deixa tolhido
um mundo de desejos,
vida desarrumada
e a gente sem prumos.
Quem fica
fica de lembranças,
fica mais criança,
fica solidão.
Quem parte,
parte inteiramente,
parte de repente
sem um avisar.
Quem fica
fica de inocente
regando as sementes
de um tal regressar.
Quem fica
fica sem despedida
fica sem guarida
e morre um pouco em vida
pois quem parte
parte corações
mata as ilusões
e parte.

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