A dois
27/05/2017 13:42 - Atualizado em 04/06/2017 12:14
As primeiras luzes da manhã entravam pelas frestas da janela. Eles dormiam enquanto amanhecia o dia nublado.
As primeiras luzes da manhã entravam pelas frestas da janela. Eles dormiam enquanto amanhecia o dia nublado. / pixabay
As primeiras luzes da manhã entravam pelas frestas da janela. Eles dormiam enquanto amanhecia o dia nublado. A mulher ajeitou-se. Pegou o edredom e jogou sobre si. Abriu os olhos. Observou o homem que estava ao seu lado, mergulhado em um sono profundo. Parecia não se incomodar com os movimentos e com a claridade, que tocava cada parte dos corpos e móveis do cômodo. Concentrou-se na respiração dele. Era como uma criança adormecida que não teme os perigos. Ela também não temia. Ele estava ali.
Lembrou-se da noite anterior. Tinham se encontrado em uma mesa de um desses bares cheios, barulhentos e, paradoxalmente, vazios. Entre risadas histéricas e discussões sobre os possíveis caminhos da humanidade. Entre goles de cerveja e doses de quaisquer outras bebidas usadas como válvulas de escape das realidades que esperavam as pessoas longe do conforto passageiro. Havia mais gente. Seguindo o ritmo da noite, debatiam sobre o que surgisse: política, cultura, tragédias cotidianas e vidas alheias.
O homem se mexeu levemente, afastando-a das lembranças. Voltou a analisá-lo. Era tão bonito ver o outro dormir. Estava entregue aos sonhos e, sem saber, à mulher que o olhava silenciosamente. Não queria que ele percebesse seus olhos concentrados no expirar-inspirar-expirar-inspirar gostosamente ritmado. Esticou a mão. Tocou o rosto dele. Acariciou cuidadosamente. Percebeu a serenidade em sua expressão. Esse era um daqueles momentos que faz um dia valer a pena. Que tornam mais suportáveis as horas ruins. Os dedos passearam por seus cabelos. Em uma conversa, havia dito que não gostava que mexessem neles. Mas, pensou, ele não vai se incomodar agora. Sorriu ao imaginar a indignação que o tomaria se soubesse que ela quebrou uma regra.
Eles se conheceram por acaso. Um daqueles encontros em que nada se ouve e pouco se fala. Tempos passaram. E, entre atalhos nos diferentes caminhos, novos trechos levaram-nos a um ponto em comum da estrada. Desta, seguiram em frente, lado a lado. Como podiam. Enquanto passeia pela pele dele, com toques suaves, recorda cada momento. Esbarros, tropeços. Discussões. Contradições. Debates. Conversas. Confrontos. Tentativas de contornar as desavenças. Sorrisos disfarçados. Mãos no rosto. Olhos que se comunicavam em silêncio. Predominância de sentimentos. Desuso da razão. O beijo inesperado em uma noite fria. Um eterno retorno a um mundo habitado somente por eles. Uma realidade particular.
“É a nossa forma de ser”, ele disse a ela, enquanto observava irritações causadas por motivos dos quais a mulher não conseguia se lembrar. Tudo parecia distante e compassado pelo som da respiração do homem. Teve vontade de acordá-lo. Sacudi-lo. Levar café da manhã. Fazer cócegas. Dar risadas. Mas optou por observá-lo. Não podia. Não agora. Estavam plenos na sonolência dupla. Não seria cruel de afastá-los de seus sonhos.

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    Paula Vigneron

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