Folha Letras: Homem culpado de ser homem
Aluysio Abreu Barbosa 01/06/2017 18:52 - Atualizado em 02/06/2017 14:01
“O que menos fazia vida literária, o mais retirado, aquele que fazia uma poesia mais independente de qualquer modismo (…) Ele vivia para a poesia no sentido de viver em poesia, e não no sentido de se dar a conhecer como poeta. Ele era sob certo ponto de vista, vamos dizer, moral, o poeta puro por excelência”.
“A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta também pode passar despercebido. Temos um poeta de quase noventa anos que mora em Petrópolis e ninguém o conhece. Ele é da geração modernista, um grandíssimo poeta. Chama-se Dante Milano”.
Ambas referentes ao mesmo poeta, quando levado em consideração que a primeira declaração é de João Cabral de Melo Neto (1920/99), e a segunda, de Carlos Drummond de Andrade (1902/87), é possível projetar não só o valor do verso de Dante Milano (1899/1991), como antecipar algumas das suas principais características. Carioca, de formação autodidata, trabalhou na imprensa do Rio de Janeiro, antes que as relações de amizade e admiração por sua poesia e traduções lhe rendessem um emprego público, destino seguro à subsistência da maioria dos grandes poetas brasileiros da época.
Recluso desde que morava no Rio, de onde acompanhou o Modernismo de 1922 à distância, ele se exilaria em Petrópolis a partir de 1985, quando um acidente de automóvel lhe custou uma fratura no fêmur. Embora amigo de outros grandes poetas modernistas, como Manuel Bandeira (1886/1968) e Ribeiro Couto (1898/1963), também nunca foi de frequentar círculos literários, embora fosse neles conhecido e admirado por seus contemporâneos. Avesso à fama, justificava-se em prosa e verso:
“A fama tira a sua privacidade. Não gosto de ser apontado na rua, não gosto que ninguém me reconheça. Quanto à glória, é uma ilusão, é algo que muda como mudam as folhas de uma árvore. Um dia você é famoso, daqui a pouco não é mais (…) A glória é, ou era, a ambição de ser admirado por toda a humanidade. A admiração da humanidade por um indivíduo exigiria uma correspondente admiração do indivíduo pela humanidade, falsa, porque a humanidade não é digna de admiração mas de piedade”.
“Tanto rumor de falsa glória
Só o silêncio é musical,
Só o silêncio,
A grave solidão individual,
O exílio em si mesmo,
O sonho que não está em parte alguma”.
Conhecido como a maior “vocação póstuma” de toda a literatura brasileira, só seria publicado pela primeira vez já perto de completar os 50 anos, e à sua inteira revelia. Um amigo, Queirós Lima, pediu-lhe emprestado os originais e levou-os por conta própria à Imprensa Nacional. Dois meses depois, voltou com as provas, comunicou a Dante e pediu-lhe que fizesse as emendas. Mas estas foram tantas que a Imprensa Nacional declinou da publicação. Um ano depois, em 1948, o livro foi finalmente lançado pela editora José Olympio, tornando-se o acontecimento literário daquele ano e rendendo ao seu autor o prêmio Filipe de Oliveira, espécie de Jabuti da época.
Sempre com acréscimo de novos poemas e depois também das suas traduções e parte da sua prosa jornalística, o livro seria reeditado em 1958, 71, 79 e, de maneira realmente póstuma, em 94. Em 98, na coleção “Melhores Poemas” da editora Global, uma sua coletânea foi reunida e prefaciada por Ivan Junqueira (1934/2014), outro grande poeta, jornalista e tradutor. Foi com este último livro que pude me aprofundar na obra de Dante Milano, cujo contato inicial, através do marcante poema “Imagem”, havia travado em outra coletânea: “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, em compilação do professor e crítico Italo Moriconi, editado pela Objetiva em 2001.
Poeta de sólida formação clássica, tinha como mestres os antigos romanos Virgílio (70 a.C./ 19 a.C.) e Horácio (65 a.C./ 8 a.C.); o português Luís de Camões (1524/80); os italianos Dante Alighieri (1265/1321), Francesco Petrarca (1304/74) e Giacomo Leopardi (1798/1837); e os franceses Stéphane Mallarmé (1842/98) e Charles Baudelaire (1821/67). Aliás, do seu xará autor de “A Divina Comédia”, além de admirador, Milano traduziu “Três Cantos do Inferno”, lançados em 1953 e considerados pela crítica a mais precisa versão em português que o pai da língua italiana já teve de um brasileiro.
Alguns anos depois, em 1988, o poeta reuniria em outra tradução uma coletânea de Mallarmé e Baudelaire, destacados nomes do simbolismo e do pré-modernismo na França e no mundo. No mesmo ano, receberia o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, conferido pela Academia Brasileira de Letras, onde, como Drummond e Manoel de Barros, sempre se recusou em ocupar uma cadeira.
Junto dessa herança clássica, os 141 poemas que Dante Milano publicou em vida eram também frutos de uma dicção moderna, marcada pelo ritmo semântico, ditado não só pelo som, mas pelo sentido. Quase sempre apoiado no tripé temático “morte/amor/sonho”, com preocupação formal manifesta na cinzelagem de cada consoante e vogal, em busca do Absoluto e sem tempo para o lirismo do cotidiano, a poética milaneana apresenta uma unidade inconfundível, talvez melhor definida pelo amigo Manuel Bandeira:
“Exemplo singularmente raro em nossas letras, parece o poeta escrever seus versos naquele inconfundível momento em que o pensamento se faz emoção”
Ou, no dito sobre Milano do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902/82), pai do Chico:
“Em outras palavras, seu pensamento é sua forma”
E se a vida é tempo perdido, não percamos mais o nosso com tanta prosa, caminhando o quanto antes aos versos de um homem culpado de ser homem:
Cantiga
A vida é tempo perdido.
O que se ganha é bem pouco.
Que vale ao morto o vivido?
Que vale ao vivo, tampouco?
E nunca me sai do ouvido
Esse rumor incessante:
“A vida é tempo perdido”…
Oh, que marulho distante,
Voz de sepultos oceanos
Num caracol aturdido.
Longos dias, breves anos.
A vida é tempo perdido.

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