Acervo de Mercedes Baptista é trazido para Campos e ficará exposto no Museu Histórico, com peças também no Ceam
Matheus Berriel 23/07/2022 09:17 - Atualizado em 23/07/2022 13:58
Equipe do Museu Histórico está catalogando peças
Equipe do Museu Histórico está catalogando peças / Divulgação
Um século após deixar Campos ainda criança, a primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Mercedes Baptista, volta à sua terra natal. Não fisicamente, pois faleceu em 2014, aos 93 anos, tendo o corpo cremado no Memorial do Carmo, no Rio. Trata-se de um retorno representado por itens que ela usou, conquistou e guardou durante a vida. Até então preservado na capital fluminense pela amiga e ex-aluna Ruth Rafael, quase todo o grande acervo de Mercedes está sendo trazido para a terra natal da dançarina, onde será exposto no Museu Histórico e no Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), que leva o seu nome.

A busca pelo acervo foi uma iniciativa de reparação histórica da subsecretaria municipal de Políticas para Mulheres. Há cerca de um ano, por ocasião do centenário de nascimento de Mercedes Baptista, a gerente de Políticas Públicas para Mulheres, Patrícia Cabral, ficou responsável por viabilizar uma aproximação entre Campos e o legado da ilustre filha, que desde 2016 é representada em estátua de bronze no Largo de São Francisco da Prainha, no Rio de Janeiro, mas era pouco lembrada na planície goitacá.

— Na criação do Ceam Mercedes Baptista (inaugurado em setembro do ano passado), a subsecretária Josiane (Morumbi) escolheu esse nome, e o prefeito Wladimir Garotinho concordou, como homenagem à Mercedes. Nessa conversa, o Wladimir chegou para mim e falou: “Patrícia, eu preciso achar alguém da família da Mercedes, para que eu possa dar uma placa em homenagem a eles, porque Campos nunca conseguiu homenagear ninguém da família. Eu gostaria muito de entregar uma placa”. Então, comecei a procurar na internet coisas sobre a Mercedes. Foi quando cheguei ao Jailton Mangabeira, um amigo de dona Ruth, ambos amigos da Mercedes. A dona Ruth é a tutora do acervo, e o Jailton foi quem catalogou tudo para uso em exposições — conta Patrícia Cabral.

Desde então, foram vários meses de tratativas. As negociações para se conseguir a doação do acervo a Campos envolveram também a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, pois era uma condição da tutora que as peças fossem expostas em um museu. O local escolhido foi o Museu Histórico, cuja coordenadora, Graziela Escocard, integrou as comitivas campistas em duas visitas à casa de Ruth Rafael, no Aterro do Flamengo, em 27 de maio e 12 de julho, esta já para trazer o material. Os itens chegaram a Campos no último dia 14, entre eles roupas casuais de Mercedes Baptista, álbuns com imagens raras de apresentações, pulseiras, anéis, cordões, coleção de bonecas, homenagens e prêmios recebidos pela campista. Só de fotos calcula-se haver mais de 300. A recatalogação está sendo feita pela historiadora Thalita Gomes; a auxiliar administrativa do Museu Histórico, Regina Terra; e o estagiário Breno Henrique de Souza, e uma cerimônia de assinatura do termo de doação é prevista para 30 de agosto, no Teatro Municipal Trianon.

— A Mercedes se posicionava com uma luta de defender a cadeira da dança afro-contemporânea em todos os aspectos. Não era só no palco. No dia a dia, ela também usava as roupas como uma forma de se posicionar perante à sociedade — destaca Graziela Escocard. — A partir do acervo da Mercedes, a gente vai mostrar um ícone, uma campista que se destacou, principalmente na parte cultural, defendendo a dança afro-contemporânea. A gente sai daquele contexto de museu que apenas coloca o negro subjugado, passando a ideia de sofrimento através de objetos de suplício, de violência, e expõe objetos que compõem a trajetória de vida de uma mulher negra que conquistou, que foi pioneira. A gente quer que mais pessoas se reconheçam nela, porque um museu é local de reconhecimento — enfatiza.

De acordo com a coordenadora do Museu Histórico, uma sala do equipamento está sendo preparada para abrigar uma exposição permanente sobre Mercedes Baptista a partir de setembro, mês em que será realizada a Primavera dos Museus. Algumas peças também ficarão permanentemente expostas no Ceam. Para antes, é avaliada a possibilidade de uma exposição temporária no Trianon, aberta no dia da assinatura do termo de doação, com presença de Ruth Rafael e Jailton Mangabeira.

De origem humilde, filha de João Baptista Ribeiro e da costureira Maria Ignácia da Silva, Mercedes Ignácia da Silva Krieger nasceu em Campos no dia 20 de maio de 1921, mas foi nova para o Rio. Lá, começou a ter contato com as artes e, a partir de 1945, estudou balé com a renomada Eros Volúsia. Também foi aluna de Yuco Lindberg, já na Escola de Dança do Theatro Municipal, e, mesmo com o preconceito da época, se destacou a ponto de ser aprovada em um concurso para integrar o corpo de baile da casa. Para além disso, fez parte do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento, e no início dos anos 1950 conquistou uma bolsa de estudos na companhia de Katherine Dunham, nos Estados Unidos. Retornando ao Brasil, criou o grupo Ballet Folclórico Mercedes Baptista, voltado especialmente à dança afro-brasileira.

Atuante no Carnaval carioca, Mercedes Baptista teve papel importante no desfile campeão da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro em 1963. Foi ela a responsável por coreografar a comissão de frente e a hoje famosa ala do minueto, um dos pontos altos na apresentação do enredo “Xica da Silva”, assinado pelo carnavalesco Arlindo Rodrigues. Após muitos espetáculos no Brasil e na Europa, e aparições no cinema e na televisão, a campista se tornou professora da Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio, além de ministrar cursos nos Estados Unidos. Em 1976, recebeu uma das primeiras grandes homenagens públicas, feita pelo Bloco Carnavalesco Alegria de Copacabana.

Duas alunas de Mercedes em seu balé folclórico na década de 1980 viraram amigas próximas suas e do marido, o polonês Paulo Mário Krieger, que foi diagnosticado com câncer na próstata em 2001 e acabou falecendo no ano seguinte. Anos antes, no final da década de 1990, Mercedes, que sofria de diabetes e problemas cardíacos, teve a primeira isquemia. Uma das amigas que se aproximaram dela e de Paulo foi justamente Ruth Rafael, que cuidava de ambos junto à também amiga Jandira Lima, já que o casal não cogitou mais ter filhos após a morte precoce do que seria o único herdeiro, em 1966, vítima de tétano neonatal.

— Apesar da idade e da doença, a Mercedes era uma pessoa bem humorada. Chegava a ser debochada. Eu era procuradora do marido dela também, que era polonês naturalizado americano e brasileiro. É muita coisa, uma vida inteira. Com o passar dos anos, ela, que era uma professora muito rígida, foi amenizando. Paulo, o marido, morreu antes dela, e a Jandira também, para minha tristeza. Aí, eu fiquei sozinha, e a barra não foi fácil — recorda Ruth. Esta proximidade é relatada na biografia “Mercedes Baptista: a criação da identidade negra da dança”, escrita por Paulo Melgaço da Silva Júnior.

Em 2000, Mercedes foi homenageada na Câmara Municipal do Rio, como forma de reconhecimento à sua contribuição para a arte brasileira. A escola de samba Acadêmicos do Cubango, de Niterói, desfilou na segunda divisão carioca, em 2008, com o enredo “Mercedes Batista, de passo a passo, um passo”, do carnavalesco Wagner Gonçalves. Mercedes morreu em 19 de agosto de 2014, aos 93 anos, numa casa de repouso em Copacabana, onde morava.

— Campos sempre foi um grande celeiro de talentos que brilham nos mais diversos campos de atuação no universo das artes, exportando algumas dessas personalidades, como no caso de Mercedes Baptista. O rico acervo da brilhante carreira de uma das maiores profissionais da dança que o país já teve foi transferido para o município, nos trazendo a honrosa sensação de que Mercedes está voltando para a sua terra depois de ter ganhado o mundo com sua arte — destaca a presidente da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, Auxiliadora Freitas.

O sentimento é reforçado pela gerente de Artes e Culturas da fundação, Kátia Macabu: “Mercedes Baptista terá em breve o seu lugar reservado em nosso município para ser reverenciada e admirada por todas as gerações. Sentimos muito contentamento por estarmos podendo possibilitar isso nessa gestão municipal”.

Na visão da subsecretária de Políticas para Mulheres de Campos, Josiane Morumbi, Mercedes é símbolo de um país de pouca memória e com resistência em se autovalorizar:

— Trazer o acervo da Mercedes Baptista para Campos é um marco, porque não havia nada no nosso município que remetesse a ela antes da inauguração do Ceam. Ela já havia sido homenageada até fora do país e tem uma estátua na Praça Mauá, no Rio, mas não tinha nada em seu nome aqui em Campos. Optamos pelo nome de Mercedes Baptista pela sua história de luta e superação, porque era uma mulher, negra e pobre tentando ingressar no balé. Ela teve que sair do Brasil e ser reconhecida lá fora para conseguir alcançar seus objetivos no seu país.

Em 11 de abril, o centro cultural Santa Paciência Casa Criativa abriu a exposição fotográfica “Um sonho de Mercedes”, com pesquisa de Almir Júnior e curadoria de Alexandre Ferram, reunindo fotos já conhecidas, mas pouco acessadas pelo grande público. Segundo a organização, o objetivo foi "mostrar ao público a importância do trabalho desenvolvido pela artista, que se tornou referência em ocupar um espaço de arte não pensada para o corpo negro e desenvolver a seu modo uma luta antirracista. A mostra foi contemplada pela Lei Aldir Blanc e teve apoio da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima. Antes, em novembro de 2021, um grafite com o rosto de Mercedes Baptista foi desenvolvido pelo artista Kane KS, junto a alunos secundaristas do Colégio Salesiano, com coordenação do professor Ely Corrêa. O painel foi exposto na Feira Literária do Salesiano. 
Mercedes Baptista (1921-2014)
Mercedes Baptista (1921-2014) / Arquivo Nacional/Divulgação

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