Arthur Soffiati - Um manuscrito esquecido
Matheus Berriel - Atualizado em 12/07/2022 18:23
Garcia da Orta foi um dos maiores médicos do século XVI. Filhos de pais judeus portugueses convertidos ao cristianismo (cristãos novos), ele nasceu em Castelo de Vide, estima-se que em 1501. Frequentou as universidade de Salamanca e Alcalá, licenciando-se em medicina em 1523. Em Lisboa, tornou-se médico do rei D. João III. Em 1534, embarcou para a Índia como médico particular de Martim Afonso de Sousa, que ocuparia o cargo de capitão-mor e posteriormente o de governador. Orta fixou-se em Goa como médico. Suas investigações sobre princípio medicinal de plantas o transformaram em pioneiro da botânica e farmacologia.
Ele é autor do “Colóquio dos simples e coisas medicinais da Índia”, editado em Goa em 1563. O livro foi escrito em português e na forma de diálogo, como era comum no seu tempo. O livro traz informações consistentes de várias plantas do oriente. A medicina europeia ainda estava muito atrelada a Dioscórides, Plínio e Avicena. Garcia da Orta vai além deles, abrindo as portas para a medicina ocidental. Seu livro foi traduzido para o latim, língua oficial dos cientistas na época, por Charles de l’Écluse. Orta morreu em Goa, no ano de 1568.
Sua biografia sustenta que Orta viveu na Índia, visitando no máximo o Ceilão. Contudo, o manuscrito inédito que encontrei no arquivo do Conselho Ultramarino, em Portugal, traz duas revelações. Ele empreendeu uma viagem pelos domínios portugueses no oriente em companhia de um brasileiro. Esteve em Malaca, Timor e Macau, chegando a Cantão. A segunda revelação é que este manuscrito contém a primeira descrição conhecida de duas famílias de plantas de mangue. Entendi por bem divulgar esse tão importante manuscrito para possíveis interessados e pesquisadores. Tomei a liberdade de atualizar o português do século XVI.
Notícia sobre algumas plantas que nascem onde a água dos rios se encontra com a água do mar e suas propriedades medicinais
“A busca de plantas medicinais levou-me a deixar Goa por uns tempos e viajar por terras das Índias Orientais colonizadas por portugueses. Acompanhado por um soldado brasileiro que servia na milícia de Portugal, estive no Ceilão, onde portugueses comerciam com os locais, em Malaca, em Timor e em Macau. Era o ano de 1556, da Graça de Nosso Senhor.
Muitas ervas foram colhidas por mim e conservadas nessa viagem de seis meses. Conservei-as para que sua qualidade medicinal pudesse ser estudada. Diogo de Almada, o soldado que me acompanhava como guia, pois que já conhecia todas as colônias portuguesas das Índias Orientais e Ocidentais, foi-me de grande ajuda, já que conhecia bastante ervas com propriedades medicinais.
Desde Goa, eu já observava um certo tipo de bosque que nasce e cresce em foz de rios que chegam ao mar. Encontrei-os mesmo onde não há rio. Notei que tais plantas não crescem em terra firme, nem mesmo regadas e cuidadas. Todas elas falecem se plantadas distantes do mar.
A observação levou-me a concluir que estas plantas foram criadas por Deus para viverem num meio líquido e não terrestre. O meio líquido não pode ser de água apenas doce nem de água por demais salgada. Elas não medram em terra nem em rios nem em água muito salgada, senão que em águas em que o sal é atenuado pela água dos rios. Não sei dizer porque alguns desses bosques crescem em praias sem rios por trás de si.
No Ceilão, encontrei-as em foz de rios que chegam ao mar. Em Malaca, também as vi em fozes de rios, havendo lugares cobertos por estes bosques em praias sem rio. Posso dizer o mesmo para Timor. Lá, essas curiosas plantas crescem em foz e em praia. Chegamos, eu e Diogo, à foz do grandioso rio das Pérolas. Passamos alguns dias em Macau hospedados no convento da Ordem de Jesus. Por toda a parte, havia essas plantas, de diversas qualidades. São diferentes entre si, unindo-as todas por viverem em água nem muito salgada nem muito doce. Sou de opinião que Deus, em sua infinita sabedoria, criou plantas para viverem nos lugares mais hostis, como montanhas geladas, desertos e água. O pecado de Adão e Eva não afetou totalmente o jardim de Deus, que desejou a terra toda povoada de plantas de todas as qualidades, desde as venenosas às benignas aos animais e seres humanos.
Subimos o rio das Pérolas até Cantão, onde existe uma colônia de comerciantes portugueses que negociam com os chins. Não mais encontramos as plantas de água salgada. Provei da água do rio e ela é bastante doce. Nunca as vi em Portugal. Minha conclusão provisória é que, como já disse, essas plantas não medram em terra nem em mar, senão apenas em ambiente aquoso com pouco sal. Concluo ainda que elas gostam de calor. Diogo relatou que elas abundam no Brasil e em África e que ele as encontrou em Mombaça e Guiné. Mas não as viu no Cabo da Boa Esperança e que assim pode-se concluir do seu amor por clima quente.
A qualidade mais conhecida desses bosques aquáticos é uma planta que solta galhos do tronco e que se dirigem ao solo, como as pernas de uma aranha. Como vive em terra lodosa, esses galhos a modo de raízes fora da terra servem para dar maior sustentação à árvore. Suas folhas são sempre verdes. Tomei um punhado delas e as guardei. Creio que mesmo secas quando eu retornar à Goa, conservarão suas propriedades medicinais, caso existam. Se as perderem, recorrerei a árvores da mesma natureza que se encontram na foz dos rios Zuar, Mandovi Chaporá e Tricol, perto de onde resido. Informou-me Diogo que essa qualidade de planta se encontra também no Brasil. Perguntei-me se ela teria sido levada das Índias Orientais para outras partes do mundo, assim como a jaca e a fruta-pão foram plantadas em África e Brasil, criando-se bem. Assim como o caju e a ananás vieram de terras do Brasil e se adaptaram bem na Índia. Tenho para mim que Deus, em sua infinita sabedoria, criou plantas navegadoras quais os navegantes portugueses. Muito antes de chegarmos às Índias Orientais e Ocidentais, essas plantas já haviam navegado para leste e oeste, colonizando as terras que hoje conhecemos.
Essa qualidade de planta com pernas alongadas forma, com elas, um verdadeiro tecido difícil de decifrar. Semelha muito à figueira brava. Sua flor é branca e sua semente é comprida, cerca de um palmo, palmo e meio. Parece muito uma pena usada para escrever. Quando se desprende da árvore e cai, muitas vezes já cai espetada na lama, dando origem a planta em tudo parecida à sua mãe.
Existe outra qualidade muito comum nesses bosques de beira-mar que ocorre em todos os que conheci desde Goa a Macau. Seu tronco é reto e mui elegante. Sua flor é perfumada e suas folhas, salgadas. Seu pé é rodeado de pontas, como que raízes que partem do fundo e vêm à tona respirar. Essas pontas são compridas e cheias de poros rugosos. Outras qualidades de plantas habitam os locais em que as águas dos rios encontram as águas do mar. As duas que descrevi são as que mais chamam a atenção do observador atento. Notei que as marés, quando sobem, cobrem as pontas que saem da terra e alcançam boa parte das pernas daquela que se parece aranha. Mas todas elas resistem à água e ao sal.
De todas elas, das duas que descrevi e das outras, vou levá-las a Goa na esperança de que mantenham suas qualidades medicinais, caso as tenham, para que eu possa compará-las com as de Goa.

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