Consciência à queima-roupa
Ronaldo Junior - Atualizado em 15/04/2022 22:29
Fonte: Pixabay
Entre os disparos distantes, uma risada grave reverberava, fazendo alarde para um divertimento que destoava diante daqueles estampidos aleatórios a lançar faíscas pela cidade impetuosa.

Outro disparo ainda mais próximo.

O alvo, ainda intocado, se fazia camaleônico em meio às paredes e postes perfurados. A lua piscava acompanhando os batimentos aflitivos da consciência que se queria externar, ainda latente, ainda engatilhada.

Ele ria, orgulhoso, porque estava realizado ao fazer justiça, mas uma justiça que escorria por seus lábios e exalava um quê metálico que transbordava entre seus dentes. Sua razão apontava os inimigos, e ele executava a sentença seletiva todas as noites.

Era um esporte que todos deveriam poder praticar. Cada disparo era uma catarse – contra o outro. Nada tirava de sua cabeça que isso devia ser política pública, devia ser lei: todos terem o direito de usar artefatos próprios para matar ou ferir quando fosse pertinente.

Isso era o justo, já que apenas alguns poucos tinham tal privilégio. Era preciso que todos estivessem municiados para lutar contra o mal, definindo seus alvos e ditando se agiriam por impulso, por justiça ou apenas por diversão.

Suas ideias, formadas pelo maniqueísmo tolo do “nós e eles”, pareciam justificar os atos aparentemente saídos da tela do cinema – estampido –, partindo de sua capacidade de julgar a vida alheia sob suas próprias munições, sem qualquer afetação além.

Entre o senso de justiça e a vingança aleatória não havia distinção. Bastava executar o que ensaiava em seus treinos de tiro. Mas ali era diferente. Ele seguia se escondendo pelas esquinas, entre os escombros, em busca de seu propósito.

A distância entre ele e os criminosos? Nada além de uma retórica persuasiva.

Estar à espreita era uma forma de sobreviver diante de um mundo hostil e violento, para o qual devia se preparar na constante dissimulação de sua real face, gritando que criminosos são os outros – capazes de fazer o mesmo que ele. Por isso todos deviam ter paridade de armas, para lutarem como iguais na dinâmica caótica das arbitrariedades.

Seu contraditório senso de justiça se despedaçava no ego frágil de alguém que ansiava por poder, mas só o encontrava no disparo atemorizante capaz de gerar plenitude ao justificar a destruição do mundo ao redor.

Ainda mais perto, com os olhos fixos voltados para dentro de si, localizou o alvo. Disparo. Estava morto o último ser que ainda o desafiava.


*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.