Os anos 20, a polarização afetiva e as repetições da história
Edmundo Siqueira 28/04/2024 18:21 - Atualizado em 28/04/2024 18:24
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Imagem gerada por IA / Crédito: Edmundo Siqueira
É comum termos a percepção de que a história se repete. Ou que os acontecimentos sociais aconteçam de forma cíclica. Ou seja, se pensarmos em um ponto fixo em linhas históricas concêntricas, em volta de um mesmo eixo e com trajetórias próprias, ele fatalmente voltará a acontecer, ou pelo menos voltará a ser visto pelo observador — se repetirá, de tempos em tempos.

As diversas turbulências globais da atualidade não são tão diferentes, em essência, das que ocorreram nos anos 20 dos dois séculos passados, pelo menos. Embora não seja possível medir o tempo histórico a partir de contagens matemáticas exatas que determinem que a cada 100 anos aconteça algo semelhante, os próprios movimentos cíclicos das vivências sociais nos mostram que há similaridades fáticas e temporais dos acontecimentos historicamente relevantes.

Esses fatos sociais que se repetem, ou mesmo os que carregam um certo grau de ineditismo, são estudados pelas ciências humanas há bastante tempo. O modo que as sociedades se constituem e se destroem — e depois se reinventam —, as formas que modelos de governança são aceitos, que liberdades são suprimidas em nome do coletivo e como sistemas políticos são impostos, dizem muito sobre a humanidade.

Émile Durkheim foi um desses cientistas sociais que se debruçou sobre os fatos sociais e seus movimentos. Considerado por muitos como o “pai da sociologia”, Durkheim nasceu na região de Lorena, na França, em 1858. Atuando como intelectual, seus artigos começaram a fazer relativo sucesso, e suas obras mais elaboradas ganharam destaque principalmente depois que assumiu como professor catedrático da Sorbonne, no início dos anos 1910.

Durkheim lendo um livro digital - Imagem gerada por IA
Durkheim lendo um livro digital - Imagem gerada por IA / Crédito: Edmundo Siqueira
Nessas obras, Durkheim ponderou que as maneiras de agir, de pensar e de sentir — representando os fatos e determinações sociais — são exteriores ao indivíduo. Em outras palavras: a coletividade é determinante para a ação individual. A língua, a cultura, os costumes, a religião, o tipo de ensino e até as condições climáticas influenciam as ações individuais. Nas palavras de Durkheim, exercem um poder coercitivo sobre as pessoas que estão inseridas em um meio social.


Portanto, considerando Durkheim e outros tantos pensadores das ciências humanas, do passado e contemporâneos, são esses consensos lógicos que formam a sociabilidade. É uma espécie de acordo que um povo ou uma nação faz para viver em coletividade, com regras comuns a todos que devem ser respeitadas, sob pena de expulsão ou prisão. Esses fenômenos, esses consensos lógicos, só têm o poder de serem coletivos se forem comuns a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles. Quando isso acontece — como a língua em comum — esses fenômenos possuem uma existência própria, independente de manifestações individuais.

Polarização afetiva

Henri Tajfel e John Charles Turner, psicólogos sociais (o primeiro polonês e o segundo, inglês), desenvolveram o conceito de identidade social e auto-categorização, em estudos do início dos anos 1980. A psicologia procurou entender como alguns grupos sociais conseguem ser tão fortemente identificados a ponto de seus indivíduos ficarem sujeitos a todas as determinações coletivas, gerando um processo de autoconceito que necessariamente deriva do pertencimento àquele grupo.

Obviamente, essas determinações também afetam os posicionamentos políticos. Quando inseridos nesses grupos de forte identificação social, as pessoas tendem a escolher posições e candidatos que são aceitos pelo grupo. Qualquer escolha eleitoral deve partir dessa premissa.

Esse movimento ganhou um nome no jornalismo e nas pesquisas mais recentes: polarização afetiva. É justamente a ideia que marca a sensível diferença entre uma polarização natural da política — quando dois candidatos ou ideais, geralmente opostos, se fortalecem e passam a ser os mais aceitos —, e uma escolha de lado que define a identidade, a forma de sentir e agir.

Essas identidades políticas cada vez mais fortes não apenas fazem com que pessoas se identifiquem com um posicionamento político, mas passam também a ver os oponentes e sua ideologia como uma ameaça existencial. E aí que reside o risco à democracia e ao convívio social. Quando o oponente passa a ser uma ameaça à própria existência do grupo, e por consequência do próprio indivíduo, o conflito, o ódio, o preconceito e a violência política passam a ser uma saída necessária.

Quando uma pessoa passa a se definir e fazer uma autoavaliação através das identidades comuns de um grupo político, ocorre ainda um processo mimético, onde passam a comparar o seu grupo com outros grupos relevantes. E uma vez definidos como inimigos e ameaças, é preciso que os integrantes desses grupos identitários discriminem e tentem humilhar publicamente seus oponentes. Soma-se a isso o sentimento de favoritismo, aumentando a hostilidade em relação ao outro grupo.

Os anos 20 do século atual e a extrema-direita

Não parece ser apenas uma coincidência histórica o fato de um mundo em transição estar ocorrendo nos anos 20 deste século. As democracias liberais estabelecidas, após os absolutismos monárquicos serem vencidos, trouxeram para a humanidade os melhores tempos de prosperidade, desenvolvimento e evolução social já vistos. Porém, o sistema não conseguiu resolver a desigualdade e a democracia não entregou tudo que prometeu.

Foto: Moacyr Lopes Junior
O rompimento das promessas democráticas, a manutenção de processos escravistas e a formação de enormes áreas periféricas de extrema fragilidade social, levaram o mundo a conflitos constantes, com duas grandes guerras com causas comuns, que tiveram seu início próximo aos anos 20 do século passado.

Cíclica ou não, a história nos mostra o risco de rompimento que as instabilidades transitórias (industrial no século XX, tecnológica no século XXI) trazem, e como elas afetam as realidades postas até então.

Nova extrema-direita e o comunismo

A polarização afetiva atual se mostra como um sintoma desse estado de coisas, porém vem sendo uma das principais armas de uma nova onda de extrema-direita que, não raro, traz à tona ideias aparentemente já superadas do fascismo e do nazismo. A definição categórica desses movimentos atuais como fascismo parece não ser capaz de explicá-los na totalidade e dentro das complexidades que o mundo atual impõe, mas apresentam muitas semelhanças.

Os fascismos possuíram seu tempo histórico próprio, mas mantendo a ideia de ciclicidade da história, trazem características em comum com movimentos atuais, principalmente no culto ao líder máximo do movimento. Para além das semelhanças ideológicas, físicas e de discurso que líderes como Mussolini, Hitler, Stálin e Pinochet, guardam com Bolsonaro, Trump, Putin e Maduro, por exemplo, está incutida na veneração desses personagens a ideia de que eles colocam acima de seus interesses o ideal, o grupo, a pátria e a missão que eles se mostram escolhidos para cumprir.
Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e Donald Trump, ex-presidente dos EUA durante evento naquele país. Representantes da nova onda de extrema-direita.
Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e Donald Trump, ex-presidente dos EUA durante evento naquele país. Representantes da nova onda de extrema-direita. / Getty Images


A estratégia alicerçada na polarização afetiva cria grupos tão homogêneos, que a crença de que o líder é o escolhido (muitas vezes por Deus) e que ele irá honrar todos as ideias, modos e costumes estabelecidos por eles, é irrefutável. E quem diverge desses grupos sabotam esses ideais vistos como sagrados. E podem ser grupos identificados por religiões e costumes diferentes, como foram os judeus, ou por cor de pele, ideologia e mesmo por região geográfica.

No caso da designação comunista, ela não é necessariamente colocada sobre alguém com o ideário socialista ou pertencente a grupos partidários comunistas. Nos movimentos de extrema-direita atuais, “comunista” pode ser qualquer pessoa que diverge da ideologia.

Mesmo com o fim da guerra fria e a eliminação quase total de grupos comunistas organizados, o Brasil justificou a ditadura militar pelo combate a eles em 1964, e usou como inimigos imaginários — mas reais nas construções feitas nos grupos homogêneos identitários — nas eleições de 2018.

Universalizar os direitos humanos e democratizar a democracia

Mesmo Durkheim, que acreditava que a coletividade cria forças coercitivas sobre os indivíduos, entendia que os direitos humanos devem ser individualizados e universalizados na mesma intensidade. Ou seja, ele deve valer para todos ao mesmo tempo que se atente às condições particulares do indivíduo. Explico com um exemplo: o direito de não sofrer tortura deve ser garantido de forma diferente para um adolescente na Zona Sul do Rio de Janeiro em comparação a um que more nos morros da mesma região.

Embora o direito seja o mesmo, a democracia deve encontrar formas de garantia distintas, uma vez que ela é vivenciada de formas diferentes pelos indivíduos no exemplo citado. E aí enfrenta a mesma dificuldade de cumprir as promessas e provoca conflitos.

A Constituição do Brasil de 1988 conseguiu impor ao país uma melhoria significativa no acesso à educação, saúde, cultura, moradia e facilidades urbanas. Mas não conseguiu cumprir a promessa de universalizar esses direitos, e ainda teve resultados diferentes a depender da região. Porém, conseguiu a declaração desses direitos e a mantém de pé por mais de três décadas. E isso não é pouco.

A continuidade e a busca de melhorias na democracia brasileira esbarra agora em polarização afetiva e turbulências mundiais. Mas o caminho para salvar a declaração é a busca da universalização, pois democracia para poucos não é direito, é privilégio.











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