Conclusão do caso Marielle: as sombras coletivas, os bodes expiatórios e o ódio à vítima
Edmundo Siqueira 07/04/2024 23:09 - Atualizado em 07/04/2024 23:10


Há um conceito nas ciências sociais que procura explicar o que acontece quando um povo — que pode ser de uma mesma nação ou etnia, ou mesmo representado em configurações mais específicas — cria pontos de convergência de sentimentos reprimidos, e concentram o ódio e o preconceito nesses pontos focais. São as chamadas “sombras coletivas”.

O surgimento das sombras coletivas normalmente é precedido por momentos de fragilidade social extrema: uma grave crise financeira ou conflitos de massa. E essas sombras ganham contornos reais quando são direcionadas para os culpados dessa fragilidade. Ou, pelo menos, de quem se pretende culpar, uma vez que essas ondas de ódio coletivo não precisam de racionalidade ou mesmo do entendimento real das responsabilidades; basta que algo ou alguém consiga canalizar as energias negativas.

É quando esse grupo projeta seus próprios aspectos sombrios nesse elemento criado ou identificado como a origem do mal. E assim, evita-se que o grupo encare internamente essas sombras, não confronte suas negatividades. Esse movimento de negação e expiação do mal, conseguem muitas vezes unificar o grupo, e refletir as frustrações individuais de seus componentes.
A psicologia nos ensina que essas projeções são individualizadas através de arquétipos — elementos da psique pré-racional que criam representações que passam a existir no inconsciente coletivo — como o herói, o salvador, o tolo, o governante, o rebelde e tantos outros. Todos facilmente identificados quando a história de um povo é contada. Os movimentos sociais mais importantes estão sempre ligados a algumas dessas figuras e forças arquetípicas.

Embora pareça algo técnico e distante, esses conceitos explicam como algumas figuras são alçadas ao poder, e carregam uma massa fiel de seguidores que não precisam de justificativas reais ou racionais para aceitar o líder e seus desígnios. Há certamente uma forte carga religiosa em muitos casos, mas elas sempre trazem em sua base esses conceitos sociais, que permitem, inclusive, que o líder seja visto como alguém ungido ou escolhido por Deus para liderar esse grupo de pessoas.

A história é repleta de líderes assim, há exemplos em matizes ideológicas distintas, e até antagônicas. Napoleão, Hitler, Stalin, Saddam, Mao Tsé-tung, Imperatriz Cixi, e tantos outros exemplos, nos mostram que esses líderes conseguiram personificar as projeções reprimidas na cultura, ou no coletivo das sociedades que viveram. Eles não apenas falam e fazem o que os liderados esperam, como tem a liberdade e a representatividade para falar e fazer o que se queria falar e fazer, coletivamente. Mesmo que inconscientemente.
A imagem do aperto de mão entre o presidente americano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-Tung, torna pública, após uma viagem planejada em absoluto segredo no auge da Guerra Fria, a aproximação entre os dois países. O objetivo dos EUA era frear a influência soviética sobre a China (O Globo).
A imagem do aperto de mão entre o presidente americano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-Tung, torna pública, após uma viagem planejada em absoluto segredo no auge da Guerra Fria, a aproximação entre os dois países. O objetivo dos EUA era frear a influência soviética sobre a China (O Globo). / Foto: AP/21-2-1972


É difícil conceber, por exemplo, que a sociedade alemã apoiou o extermínio de judeus, muitos deles antes seus vizinhos e conhecidos, até serem desumanizados pelo movimento nazista. Hitler concentrava e personificava a sombra coletiva da Alemanha arruinada no pós primeira guerra, e estava legitimado para agir em nome do povo. Embora alguns negassem a existência dos campos de concentração, ou fechassem os olhos para outras atrocidades, parte significativa da sociedade alemã — há pouco mais de 80 anos, portando extremamente recente no tempo histórico — dava ao líder sombrio o poder necessário para cometer assassinato em massa de um grupo étnico transformado em alvo das projeções de ódio da sociedade, transmutados em bodes expiatórios.
Em 1938, pelo Acordo de Munique, as potências europeias davam à Alemanha nazista o direito de anexar partes da Checoslováquia — que não assinou o documento final. Na foto, o premier britânico, Neville Chamerlain, cumprimenta Adolf Hitler (O Globo)
Em 1938, pelo Acordo de Munique, as potências europeias davam à Alemanha nazista o direito de anexar partes da Checoslováquia — que não assinou o documento final. Na foto, o premier britânico, Neville Chamerlain, cumprimenta Adolf Hitler (O Globo) / Foto: 30-9-1938


Quanto mais primitivo o nível de consciência da sociedade, mais se acredita em salvadores da pátria, ou em líderes ungidos. Esse nível de consciência pode diminuir ou aumentar pelos níveis de educação e cultura de uma sociedade, mas também é afetado pelas crises, e os líderes carismáticos que conseguem perceber esses momentos e personificar as sombras coletivas, transformam-se, invariavelmente, em ditadores.

O bode expiatório

A figura do “bode expiatório” existe tanto na Torá, livro sagrado do judaísmo, como na Bíblia, livro máximo do cristianismo, em Levítico. A ideia central é a mesma: um animal, no caso um bode, é sacrificado em uma cerimônia de expiação — de purificação dos pecados. Segundo a tradição judaica, durante as cerimônias hebraicas do Yom Kippur dois bodes eram separados para sacrifício.

O primeiro era queimado em holocausto (oferta queimada, sacrifício pelo fogo) em um altar, junto de um touro. O segundo bode era deixado ao relento no deserto, depois do sacerdote colocar a mão sobre sua cabeça, como forma de transmitir todos os pecados de seu povo para o animal; abandonado, e lavando todos os pecados consigo, o bode era ofertado no deserto ao anjo caído Azazel.

O bode expiatório, de William Holman Hunt.
O bode expiatório, de William Holman Hunt. / Reprodução
O ritual que envolve os bodes no judaísmo e no cristianismo, duas das maiores religiões monoteístas do mundo, mostram que a expiação é necessária socialmente. É preciso que se crie um elemento que concentre os sentimentos que não queremos ver em nós mesmos, e quando coletivamente esses sentimentos ficam insustentáveis, “bodes” são eleitos e apedrejados pelo ódio reprimido.

As redes sociais criam bodes expiatórios todos os dias, e não é incomum ver comentários repletos de ódio e preconceito em publicações dos mais variados assuntos. Linchamentos virtuais são cometidos sem que se tenha conhecimento significativo da situação apresentada, em um claro movimento de manada.

O bode, representado aqui como a figura que concentra as sombras coletivas, permite que um grupo social concentre seu ódio, e não apenas permite que se camufle as imperfeições internas, como oferece a esse grupo uma maior unidade.

O historiador, antropólogo e filósofo francês, René Girard, falecido em 2015 nos EUA, chama os indivíduos que elegem bodes expiatórios para concentrar ódio e violência de “selvagens grosseiros”. Segundo o antropólogo, essas pessoas precisam constantemente “apropriar-se de quaisquer vítimas para poderem se livrar de seus fardos violentos”. Nas obras de Girard, o “mecanismo do bode expiatório” muitas vezes se aplica quando “a vítima pertence a uma minoria étnica ou racial”, sendo ela, a vítima, o sujeito destinado a um mecanismo de exterminação da violência social.

Os desejos miméticos

Outro conceito utilizado nas ciências sociais trata da imitação e do desejo que as pessoas carregam, invariavelmente, em copiar comportamentos ou ideias de outras. Um objeto não é desejável se outra pessoa não desejá-lo anteriormente, ou não utilizar esse objeto como forma de destaque social.

Em outras palavras: um carro de luxo só se torna devidamente cobiçado coletivamente quando se transforma em um objeto de desejo coletivo, e passa a ser utilizado por figuras proeminentes da sociedade. Esses desejos miméticos, ou de imitação, são potencializados pela propaganda, pelo cinema, pela televisão e, mais recentemente, pelas redes sociais.

Embora os desejos miméticos produzam consumo e desenvolvimento, em certa medida, quando o que se deseja se torna impossível aos indivíduos médios, ou certos comportamentos apenas são aceitos por determinadas pessoas, os membros da comunidade têm seus desejos miméticos reprimidos, e quando somados às regras e normas sociais, produzem um sistema que castra as vontades e produz ódio e violência.
James Dean, ator americano nascido nos anos 1930, ainda é considerado um ícone cultural da moda, e representa o arquétipo do rebelde. Sua imagem vende ainda hoje, e é copiada pelo desejo mimético.
James Dean, ator americano nascido nos anos 1930, ainda é considerado um ícone cultural da moda, e representa o arquétipo do rebelde. Sua imagem vende ainda hoje, e é copiada pelo desejo mimético. / Reprodução


Os indivíduos, ao controlarem suas vontades, produzem internamente violência, e esse estado violento pode resultar em conflitos constantes e com potencial para fugir do controle. Então, para que essa violência canalizada e estimulada não produza confrontos entre os próprios sujeitos, entre determinados grupos, surge o mecanismo do bode expiatório.

Os bodes da TV aberta no Brasil

No início dos anos 1990, programas policialescos tinham altos níveis de audiência, e apresentadores como Gil Gomes e Luiz Alborghetti, utilizavam-se da violência como apelo. Concentrados na idéia de que “bandido bom é bandido morto”, esse programas traziam os detalhes de operações policiais e evidenciavam as violências cometidas pelos agentes da lei.

Os telespectadores, muitos submetidos a um estado de violência constante nas cidades e abandonados pelo sistema de proteção estatal, conseguiam ter aliviados seus sentimentos reprimidos pela violência presenciada na TV. Sentiam-se vingados, e com a sensação que “alguém está fazendo alguma coisa” ou mostrando para eles algo que eles queriam fazer e não podiam.

Sem se preocupar com preceitos constitucionais estabelecidos no Brasil desde 1988, como a presunção de inocência, o direito de imagem, a ampla defesa e o contraditório, esses programas promoviam o julgamento público de indivíduos que apresentavam, sistematicamente, as mesmas características físicas e sociais.

Em 2015 aconteceu o ápice de proliferação desse tipo de programa, e muitos apresentadores foram alçados a cargos públicos eletivos. Foi o caso de Wagner Montes, falecido em 2019, apresentador do programa “Balanço Geral”, da Rede Record, e “Cidade Alerta”, que elegeu-se como deputado estadual pelo Rio de Janeiro. Com o bordão “escracha!”, Montes criou um quadro em seus programas chamado de “esquenta a caldeira”, onde os mortos em operações policiais eram colocados para serem encaminhados ao que ele denominava de “inferno”.

Nesse mesmo período, o apresentador Sikêra Júnior, do programa da Rede TV!, “Alerta Nacional”, popularizou o termo comumente usado pelas milícias do Rio: “CPF cancelado”. Sikêra apresentava um quadro semelhante ao antes exibido por Wagner Montes, chamado de “pote do demo”, onde bonecos simbolizando os corpos mortos pela polícia eram colocados para serem queimados, em claro processo de expiação.
Quadro "pote do demo", com o apresentador Sikêra Júnior.
Quadro "pote do demo", com o apresentador Sikêra Júnior. / Reprodução


Sikêra e Montes usavam o culto à morte, um tipo peculiar de humor macabro e principalmente, traziam à exibição pública de massa um leque de bodes expiatórios, que regularmente pertenciam ao mesmo grupo social e racial, e invariavelmente vindos de um mesmo local periférico.

Marielle Franco, assassinada no Rio, com seu motorista Anderson Torres.
Marielle Franco, assassinada no Rio, com seu motorista Anderson Torres. / Instituto Marielle Franco
Marielle e o bode na sala


Em 14 de março de 2018, aproximadamente às 21:10h, no cruzamento da Rua
Joaquim Palhares com a João Paulo I, no bairro Estácio, no Rio de Janeiro, o ex-policial militar Ronnie Lessa, acompanhado do também ex-policial Élcio Queiroz e mais dois comparsas, dispararam tiros contra o carro onde estavam a ex-vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Ambos morreram no local.

A morte de Marielle, pelas circunstâncias e perfil da vítima — que além de preta e periférica, tinha uma atuação contra as milícias do Rio de Janeiro —, ganhou destaque nacional e se transformou em uma das apurações policiais mais acompanhadas do país.

Em um extenso relatório de 479 páginas, finalizado no último 24 de março, a Polícia Federal deu como concluída a apuração do crime, e apontou os executores e os mandantes. Como uma das principais motivações, o relatório apontou uma disputa de terras, onde um grupo da Câmara Municipal do Rio, liderado por Chiquinho e Domingos Brazão, buscava uma área para fins comerciais, enquanto Marielle tentava a utilização das mesmas terras para fins sociais, de moradia popular.

Se a ideia dos mandantes era que Marielle deixasse de ser um obstáculo após sua morte, o tiro saiu pela culatra. Além de terem sido presos, a investigação da morte da vereadora se transformou em um problema para os negócios da milícia carioca. Marielle representou ali dois tipos de bode: o expiatório e o que permanece na sala, como algo que atrapalha as negociações.

Embora vítima e atuante contra um grupo criminoso, Marielle foi considerada culpada. De perfil social, racial e de gênero prontos para serem odiados por integrantes de grupos de extrema-direita, a morte da vereadora canalizou ódios coletivos e foi constantemente alvo de ridicularização e de movimentos que buscavam culpar a vítima pelo crime, onde, na posição de bode expiatório, mereceu ser sacrificada por ser detentora de “pecados” não aceitos por determinado grupo.

No ápice desses movimentos, durante as eleições de 2018, uma placa de rua, nomeada em homenagem a Marielle, foi rasgada ao meio pelas mãos de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, então candidatos a deputado federal pelo PSL. Apesar do ato violento e de ódio à vítima, ambos foram eleitos.
Daniel Silveira e Rodrigo Amorim posam novamente com placa quebrada de Marielle Franco.
Daniel Silveira e Rodrigo Amorim posam novamente com placa quebrada de Marielle Franco. / Reprodução/rede social


Em 2022, em 8 de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a mesma dupla reeditou a foto, dessa vez no gabinete de Amorim, onde exibiram com orgulho a placa destruída, com uma das metades emoldurada. Na imagem era possível ver, ao fundo, um fuzil e um quadro com o senador Flávio Bolsonaro, filho do ex-presidente Bolsonaro, acusado de envolvimento com as milícias.

Mal em todos

A trajetória do caso Marielle Franco reflete vividamente a complexidade das sombras coletivas e do mecanismo do bode expiatório em nossa sociedade. Marielle, uma voz incômoda para muitos interesses poderosos, foi transformada em alvo de ódio e violência, e mesmo imperfeita como qualquer pessoa, foi vítima.

Ao ser assassinada de forma brutal, Marielle se tornou um bode expiatório para aqueles que preferem desviar o olhar de suas próprias sombras e responsabilidades. Sua morte não apenas evidenciou a face sombria de nossa sociedade, mas também revelou a necessidade urgente de confrontarmos essas realidades obscuras que permitem a perpetuação do ódio e da injustiça.

É fundamental reconhecer que todos nós carregamos em nós a capacidade para o mal e que, ao invés de procurarmos bodes expiatórios para nossas frustrações e sombras coletivas, devemos nos enxergar como iguais, buscando compreender e confrontar nossas próprias imperfeições.

Do contrário, nunca conseguiremos tirar os bodes da sala.

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