O papel do Exército no controle do mercado de armas de fogo.
24/09/2022 | 13h12
Desde a promulgação do estatuto do Estatuto do Desarmamento em 2003 ficou a cargo do exército brasileiro registrar e fiscalizar as armas de fogo adquiridas e mantidas pelos CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores). Os equipamentos pertencentes a esse público desde então são registrados no banco de dados dos militares, o SIGMA (sistema de gerenciamento militar de armas) e apesar de existir a obrigação de que esse banco seja integrado ao outro banco de dados gerido pela Polícia Federal, o SINARM (sistema nacional de armas), isso nunca foi cumprido pelos militares. Não existiam muitos CACs no país e o SINARM sempre foi considerado o mais relevante pela quantidade de armas.
Ocorre que desde 2017, quando foi autorizado, através da portaria nº28 Colog, o porte de trânsito para os CACs com arma pronta para uso nos trajetos entre o local do acervo e o clube de tiro, a busca por certificados de registro no Exército passou a crescer de forma exponencial. Como o porte de arma de fogo desde o Estatuto do Desarmamento sempre foi tratado como exceção, sendo necessária análise subjetiva para concessão do porte pela Polícia Federal, muitos que não conseguiam viram nessa mudança uma possibilidade de circularem armados sem os requisitos exigidos pela legislação.
Se em 2017 existiam 63.137 pessoas com registros ativos de CACs, em junho de 2022 esse número aumentou mais de dez vezes, chegando a 673.88 registros. O número de armas registradas para esse público seguiu o mesmo caminho, mas com um crescimento menor, enquanto em 2017 havia 290.711 armas registradas para CACs, em julho de 2022 o total ultrapassou a barreira de um milhão de armas, totalizando 1.006.725 segundo levantamento feito pelo Instituto Igarapé.
Enquanto isso o orçamento destinado para que militares fiscalizem esses arsenais particulares caiu pela metade. Segundo outro levantamento feito pelo Instituto Igarapé o orçamento investido em visitas em 2021 foi 54% do que o que foi aplicado em 2018, mesmo assim, os militares afirmaram que fiscalizaram em 2021 seis vezes mais locais do que em 2018, em um conta que não fecha e não faz sentido. Em 2020 teriam sido fiscalizados apenas 2,3% dos locais que deveriam ser visitados.
Porém, o problema do papel dos militares no controle de armas de fogo não se limita a questões ligadas a fiscalização. Em recente questionamento feito pelo TCU (Tribunal de Consta da União) referente à solicitação de informações feitas pelo portal UOL, o Exército afirmou não ter como informar quantas armas estão registradas para CACs em cada município do país. E que se fossem obrigados a responder seria necessário deslocar 12 militares por 180 dias para fazerem um levantamento e que isso acarretaria “considerável prejuízo no cumprimento de outras atividades, como regulamentação, fiscalização e autorização referentes ao trabalho com produtos controlados pelo Exército”.
Mas não para por aí, outro problema admitido pelo próprio Exército é com relação ao seu banco de dados. Em resposta a solicitação de informações os militares afirmaram que erros de preenchimento nos requerimentos possibilitaram que até canhões e morteiros fossem registrados em nome de CACs, mesmo sendo proibidos pela legislação. Se o desconhecimento sobre a situação real das armas de fogo em circulação em posse de CACs já não fosse uma séria questão que os militares se recusam a resolver sob o pretexto de desviar o efetivo de 12 militares de suas funções atuais, mesmo que seja de conhecimento comum de que atualmente isso poderia ser facilmente solucionado com recursos tecnológicos, há ainda um fator extremamente preocupante que é a ausência de consulta a bancos de dados criminais no momento da concessão do certificado de registro para o requerente.
Os militares afirmaram que não fazem consulta a sistemas como o INFOSEG do Ministério da Justiça para saber se a pessoa responde ou respondeu a inquérito policial ou processo criminal em algum local do país. Para os militares basta a conferência dos documentos apresentados e a verificação de sua autenticidade. Essa ausência de pesquisa possibilitou que um integrante do PCC em Minas Gerais conseguisse se registrar como CAC e tivesse adquirido diversas armas de fogo, incluindo um fuzil, mesmo tendo respondido a 16 inquéritos e processos criminais, incluindo crimes por tráfico de drogas e homicídio. Indagados os militares afirmaram que o criminoso mentiu ao declarar que não respondia a processos criminais ou investigações.
São evidências de que os militares não têm conseguido cumprir seu papel na fiscalização e controle no mercado legal de armas de fogo. Seja pelo apagão de dados no SIGMA, pela falta de integração dos bancos de dados e até mesmo pela falta de procedimentos simples como pesquisas de antecedentes, ficou claro que o papel do Exército brasileiro deve ser repensado. Com o crescimento do número de armas de fogo em circulação, dos clubes de tiro e do número de CACs, é mais necessário do que nunca ter um controle eficaz sobre o mercado e os militares já deixaram claro que não conseguem cumprir esse papel.
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A festa das armas
30/07/2022 | 23h09
Em janeiro do corrente ano operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu criminoso que era registrado como CAC (colecionador, atirador e caçador) e adquiria armas e munições legais para repassar diretamente para integrantes do Comando Vermelho. Com ele foram apreendidos mais de vinte fuzis, dezenas de pistolas e milhares de munições, todos adquiridos legalmente. Em junho, operação da Polícia Civil de São Paulo, que investigava esquema de fraude comandado por integrantes do PCC, descobriu esquema de aquisição de armas legais para a facção utilizando laranjas. Com um conhecido integrante da organização foram encontrados fuzil, carabina, vários tipos de pistolas e revólveres, bem como grande quantidade de munição, todas compradas legalmente em nome de um parente. Agora em julho, operação da Polícia Federal descobriu que outro integrante do PCC, baseado em Uberlândia/MG, tinha conseguido ele mesmo o registro de CAC e adquirido fuzil, carabina, revólver e pistolas legalmente em seu nome, mesmo sendo um criminoso conhecido e que responde a mais de 16 processos criminais por delitos como homicídio e tráfico de drogas.
Divulgação
Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Três dos principais estados da federação, três casos de armas adquiridas legalmente que tinham como destino integrantes de duas das maiores facções criminosas do país, o CV e o PCC. No início do ano escrevi artigo onde apontava para a conexão entre os mercados legal e ilegal de armas de fogo e como a flexibilização do controle sobre a circulação de armas e munições no país, promovida pelo governo Bolsonaro, facilitaria a aquisição de armas por criminosos. Fui taxado de desarmamentista, comunista e até de petista, mas infelizmente os fatos recentes provaram que eu, assim como qualquer pessoa que reflita sobre segurança pública com um mínimo de seriedade, sabia: na festa das armas, um dos principais convidados é o crime organizado.
Existem várias formas de armas legais serem desviadas para os mercados ilegais e a partir de então serem utilizadas por criminosos. Historicamente as principais formas eram o roubo e furto de residências, de agentes de segurança privada, de quartéis militares, de delegacias, batalhões de polícias e de fóruns do Judiciário. A CPI da ALERJ (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) realizada em 2015 apresentou em seu relatório dados que mostravam que parcela relevante das armas apreendidas em atividades criminosas no estado tinham uma dessas origens, mas também ficou claro que com relação às armas de maior poder de destruição, como fuzis, eram em sua maioria fruto de contrabando.
Portanto, até 2019, se criminosos tivessem interesse em adquirir fuzis só havia duas opções disponíveis, furtar ou roubar diretamente de instituições policiais, quartéis militares ou fóruns, ou acessar a rede de tráfico internacional de armas e aguardar que o armamento chegasse ao país através das fronteiras, portos e aeroportos. Essa dificuldade se refletia no preço final do material e cada fuzil chegava a custar cerca de R$ 60.000,00 no mercado negro. A venda desse tipo de armamento no mercado interno era muito restrita e praticamente impossível para civis, por essa razão poucas pessoas no país possuíam legalmente fuzis em casa.
Com a chegada de Bolsonaro ao poder e a sequência de mais de 30 medidas com o objetivo de facilitar o acesso da população às armas de fogo, desde 2020 passou a ser permitido que pessoas registradas como CACs pudessem adquirir fuzis. E não um ou dois, mas até trinta fuzis por pessoa e mais trinta pistolas, possibilitando que as pessoas pudessem possuir verdadeiros arsenais em suas residências. Isso somado à possibilidade de compra de até 180.000 munições por ano, transformou o mercado legal fazendo com que ser CAC se tornasse o objetivo de muitos que estavam em busca de armas mais potentes e em grandes quantidades.

O número de CACs desde então aumentou consideravelmente. Segundo dados do Instituto Sou da Paz obtidos com o Exército, o número de pessoas com licença de CAC aumentou 262% entre julho de 2019 e março de 2022. Eles passaram de 167.390 para 605.313 pessoas. Ao todo, aumentaram 437.923 registros no período, uma média de 449 novos CACs por dia. E o crescimento do número de clubes de tiro e lojas de armas seguiu pelo mesmo caminho. Números obtidos pelo Instituto Igarapé com o Exército, ao qual cabe fiscalizar o comércio de armas e munições, mostram que entre junho de 2021 e março deste ano, o número de clubes de tiro ativos no país subiu de 1.458 para 2.070, um crescimento de mais de 41% em apenas nove meses. Já entre junho de 2021 e maio passado, foram abertas 620 novas lojas para venda de armas.
Enquanto defensores da política armamentista de Bolsonaro afirmam que esse crescimento acentuado tem a ver com o “gosto” do brasileiro pelo tiro desportivo, esporte olímpico que teria rendido a primeira medalha olímpica para o país, a realidade mostra algo distinto. Durante as pesquisas para o livro “Armas para Quem? A busca por Armas de Fogo” que começaram antes da chegada de Bolsonaro ao poder, já ficava clara uma movimentação diferente de pessoas interessadas em se tornarem CACs. Grande parte não tinha muito interesse no esporte e sim na possibilidade de possuir e portar armas.

É que no ano de 2017, ainda durante o governo Temer, foi editada uma portaria que possibilitava que os CACs pudessem andar armados durante os trajetos entre suas residências e clubes de tiro. A justificativa é que ao possibilitar que o CAC andasse com a arma pronta para ser usada era uma forma de evitar que a arma fosse furtada ou roubada, ou seja, o objetivo era a pessoa andar armada para proteger a própria arma. Algo que não há paralelo na legislação estrangeira. Foi uma mudança que atraiu um público diferente do que era tradicionalmente registrado como CAC. Eram pessoas em busca de armas.
Desde então o número de CACs, de armas de fogo, de clubes de tiro e de lojas cresce continuamente e hoje há estimativas de que se todos os CACs adquirissem a quantidade de armas para as quais já são autorizados, entrariam em circulação mais de 40 milhões de armas, o que colocaria o Brasil seguramente entre os três países com a maior quantidade de armas em poder da população.
Crer que esse cenário não iria beneficiar o crime organizado é ingenuidade ou má-fé. Se antes a logística para trazer fuzis ao país envolvia aeronaves e pagamento de propina a forças policiais, agora basta ir a uma loja e adquirir armas, munições e pólvora. Com as mudanças efetuadas na legislação, um único criminoso pode adquirir, com um registro de caçador, 30 armas, sendo 15 fuzis, e 90 mil munições por ano. Se tiver também a licença de atirador, consegue comprar mais 60 armas, 30 fuzis, e outras 180 mil munições. Se obtiver ainda o registro de colecionador, não terá limite de compra de armas, apenas a orientação de comprar só cinco de cada modelo, ou seja, até cinco de cada modelo de fuzil existente no mercado. A própria Taurus, maior fabricante de armas do país e uma das maiores do mundo celebrou em fevereiro desse ano a marca de 60.000 fuzis do modelo T4 vendidos, e para comemorar criaram a T4 week para venda de fuzis em “condições especiais”.

Um fuzil como o T4 fabricado e vendido pela Taurus custa no mercado interno um terço do que os criminosos costumam pagar por armamento similar contrabandeado do exterior, e o fuzil nacional chega via transportadora, com nota fiscal em endereço escolhido pelos criminosos, sem necessidade de pagamento de subornos ou passar por fiscalizações, tudo legal e autorizado pelo Exército brasileiro. Em período de alta inflacionária como o atual, os criminosos parecem ser os únicos que obtiveram abatimentos de quase 65% para aquisição de fuzis. Mas a dúvida que fica é: como os militares deixam isso acontecer?
Ocorre que enquanto as vendas de armas aumentaram exponencialmente e o número de clubes de tiro e lojas de armas seguiram a mesma trajetória, o orçamento para fiscalização caiu drasticamente. Segundo reportagem de Aline Ribeiro para o Jornal O Globo, “nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, o Exército reduziu para menos da metade o orçamento destinado à fiscalização de acervos privados de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), lojas e clubes de tiros. Em meio à explosão do setor armamentista e de novos registros de armas, o órgão investiu quase R$ 1,7 milhão em visitas e operações para vistorias em 2021, 54% menos do que os R$ 3,6 milhões alocados para o mesmo fim em 2018”. Uma equação que só fecha na cabeça de quem é a favor dessa política armamentista.
Os próprios militares admitiram que sequer conseguem detalhar as armas que estão em posse dos CACs por problemas de preenchimentos nos campos dos requerimentos no SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas). Em resposta a requisição feita via Lei de Acesso à Informação os militares informaram que erros permitiram que até canhões tivessem sido incluídos como armas pertencentes a CACs, o que é proibido. Atualmente há cerca de 900.000 armas registradas para quase 700.000 CACs e esse tipo de apagão mostra a fragilidade no controle sobre as armas em circulação.
Além disso, o caso ocorrido em Uberlândia mostra outra faceta dessa fragilidade. Um criminoso que respondia a mais de uma dezena de processos foi autorizado pelo Exército a se registrar como CAC e adquirir várias armas e munições. Em nota, após a divulgação do ocorrido, que só ocorreu em razão de investigação feita pela Polícia Federal, o Exército afirmou que a documentação apresentada pelo criminoso estava correta e que ele havia apresentado uma autodeclaração de idoneidade e que a responsabilidade pela apresentação da documentação é do requerente e não dos militares. Ou seja, para eles, o criminoso também era culpado por mentir e enganar os militares. Um constrangimento que poderia ter sido evitado com uma simples pesquisa de antecedentes como a própria Polícia Federal faz quando há solicitação para compra de armas.
Seja através de repasse de armas compradas legalmente, seja através do uso de laranjas para aquisição ou até mesmo os próprios criminosos comprarem diretamente, a verdade é que as organizações criminosas estão aproveitando a “festa” das armas no país para adquirir armamento por preços muito inferiores ao que tinham que pagar através das redes internacionais de tráfico de armas. Casos como os citados estão aparecendo com frequência cada vez maior no noticiário e tem preocupado instituições encarregadas de combater essas organizações. Recentemente a hashtag #bolsonaroarmouotrafico ficou entre as mais citadas no twitter diante de tantos casos de repercussão. O problema é que mesmo que a política armamentista seja modificada voluntariamente por Bolsonaro, ou que entre outro em seu lugar, armas de fogo são bens que duram décadas e os efeitos desse derrame de armas na sociedade será sentido por longo tempo. O problema é que nessa festa os que mais irão sofrer são justamente os que não foram convidados.
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Profissionalização dos mercados ilegais e redução dos homicídios
27/03/2022 | 11h14
No final de fevereiro, o Monitor da Violência (parceria entre o portal de notícias G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP) divulgou os números de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) de 2021. No ano passado, foram registrados 40.010 homicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais seguidas de morte. Uma queda de 7,5% em relação a 2020. É o menor número desde 2007 quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar e compilar esses dados.
A taxa de homicídios ficou em 19,2 vítimas a cada 100 mil habitantes, retomando uma trajetória de queda que vinha desde 2017. Essa redução deve ser comemorada, mas também analisada com atenção e cuidado. A variação do número de mortes violentas intencionais é um fenômeno complexo e sofre influências de diversas causas, o que torna qualquer explicação simplificada um equívoco.
Um exemplo disso ocorreu no mesmo dia em que foi anunciada a queda nas taxas. O governo federal rapidamente se adiantou em assumir o crédito pelo resultado. Nas redes sociais, o presidente da República e outras autoridades federais passaram a afirmar que a queda era consequência da política de ampliação das armas de fogo. Esqueceram, entretanto, de lembrar que há uma tendência de queda verificada desde 2017. E que, em 2020, já na vigência da política armamentista do atual governo, o país registrou aumento de 4,1% em relação ao ano anterior, mesmo em meio a uma pandemia.
Avaliar políticas públicas de maneira superficial, sem rigor metodológico, faz parte do discurso político. O governo Bolsonaro não é o primeiro e nem será o último a fazer isso. Análises sérias e baseadas em evidências é trabalho para pesquisadores e acompanhar as variações dessas taxas ao longo do tempo permite a identificação de padrões importantes. Afinal de contas, a queda das mortes violentas letais intencionais precisa ser entendida para que o desempenho possa ser repetido nos próximos anos.
Uma das principais razões que tem sido apontadas por pesquisadores e que explicaria a melhora do cenário no último ano, é a profissionalização do mercado de drogas brasileiro e a consequente redução do conflito entre facções que chegou a patamares muito elevados em 2017. Naquele ano, três rebeliões sangrentas ocorreram dentro de presídios logo em janeiro, decorrente de um racha entre duas das maiores facções nacionais.
Os conflitos e a rivalidade entre esses grupos criminosos transcenderam os muros das prisões e chegaram aos territórios de muitos estados brasileiros, levando aquele ano a encerrar como o mais violento da história, desde que os registros de homicídios começaram a ser nacionalmente sistematizados, no final dos anos 70.
"Entre 2016 e 2017 vivemos uma guerra entre dois grupos criminosos, o PCC e o Comando Vermelho, e essa guerra se alastrou por todo o país, especialmente em estados do Norte e Nordeste. A gente tem um apaziguamento desse conflito em alguns territórios e, em outro, tem um certo monopólio de algum grupo. Quando um grupo único vai se consolidando no território, tende a reduzir o conflito", disse Samira Bueno, do FBSP em entrevista para o portal de notícias G1.
Marcelo Camargo/Agencia Brasil

As disputas por mercados ilegais, comércio de drogas, consumidores e rotas para o tráfico por grupos criminosos rivais tendem a ser mais violentas, instáveis e ocasionar um aumento nas taxas de homicídios. Enquanto isso, mercados criminosos equilibrados, com competidores que aprenderam a conviver entre si ou que descobriram formas de regulamentar a relação entre eles, tendem a reduzir o total de conflitos fatais. Os primeiros, aumentam custos e diminuem os lucros dos participantes. Os segundos, favorecem os ganhos e diminuem seus riscos.
O melhor exemplo no país de mercado pacificado e com controle único é o do estado de São Paulo. Desde o começo dos anos 2000 a cena criminal no estado se tornou mais profissional e lucrativa para os criminosos porque o PCC (Primeiro Comando da Capital) passou a estabelecer uma série de regras para reduzir os riscos e aumentar os lucros. Com isso, entre 2000 e 2021 houve uma redução de 80% nas mortes violentas intencionais.
Criado no interior de uma prisão, o PCC se expandiu por todo sistema penitenciário paulista e montou uma estrutura de controle nas prisões e nos bairros. Para tanto utilizavam um eficiente argumento: os homicídios entre criminosos aumentavam os riscos e os prejuízos dos empreendimentos criminais, facilitavam o trabalho da polícia e da justiça e criavam um ambiente de imprevisibilidade, prejudicial aos negócios.
Segundo o jornalista, pesquisador e escritor Bruno Paes Manso, autor do livro "A Guerra – ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil", esse processo de profissionalização da cena criminal paulista, organizado a partir da ideia de que “o crime fortalece o crime”, permitiu ao PCC se estruturar nacionalmente e dar passos importantes rumo ao mercado atacadista de drogas, alcançando as fronteiras da América do Sul. A existência de regras e a criação de uma ampla rede de parceiros, que se expandiu com os contatos com criminosos de outros estados feitos nos presídios federais, ajudaram o grupo a se tornar um importante distribuidor de drogas e de armas para quadrilhas de outros estados transformando o mercado de drogas brasileiro, que passou a replicar o modelo criminoso paulista, se organizando a partir dos presídios estaduais.
Ao mesmo tempo em que levava mais armas, drogas e mercadorias ilegais para outros estados, ampliando sua participação, o PCC criava diversas rivalidades estaduais e resistências à sua influência. Dessa forma, no mesmo período em que o grupo se tornava hegemônico em São Paulo, contribuindo para profissionalizar o crime, reduzir os conflitos e aumentar os lucros no estado, a facção ajudava a exportar violência e homicídios para o resto do Brasil.
A partir de 2018, contudo, depois do recorde de homicídios de 2017, esses conflitos regionais entre as gangues prisionais passaram a diminuir, contribuindo para iniciar uma tendência de queda no número de mortes violentas ainda no final da presidência de Michel Temer, continuando nos três anos de Jair Bolsonaro, que até agora não elaborou nenhuma política de segurança pública consistente, a não ser a flexibilização da venda de armas e de munições.
As tréguas entre os grupos, inclusive, eram de interesse dos próprios criminosos, que a despeito das questões relacionadas a honras territoriais, aceitavam dar um passo atrás para ganhar mais dinheiro e diminuir os riscos de terem suas lideranças punidas nos presídios. Os conflitos foram arrefecendo nesse ambiente de negócio criminal mais pragmático e a redução continuou nos anos seguintes.
Isso não significou, contudo, a diminuição das atividades criminosas, que seguiram se expandindo e diversificando suas receitas e ampliando seus lucros. Além do tráfico, roubos planejados a estabelecimentos bancários ou empresas de transporte de valores passaram a ser mais comuns nesse cenário de maior profissionalismo. O dinheiro passou a ser investido em outros negócios ilegais lucrativos, como a extração de madeira e o garimpo. Atividades ilegais que têm tido um crescimento vertiginoso diante da diminuição da fiscalização ambiental pelo governo federal
Apesar dessa efervescência, o que se viu é um ambiente mais profissionalizado e por isso mais lucrativo e influente. Essa tendência à diplomacia entre os criminosos, no entanto, não impede a emergência de conflitos regionais, mesmo que isolados, que ficam sujeitos a desacordos e disputas entre rivais, como ocorreu no Ceará em 2020, quando os Guardiões do Estado e o Comando Vermelho iniciaram um conflito territorial sangrento que ajudou a elevar os homicídios naquele ano para 44 por 100 mil habitantes, crescimento de quase 80% em relação ao ano anterior. Em 2021, o total diminuiu para 35,7 por 100 mil, ainda elevado, mas menos intenso que no ano anterior.
FBSP

Dinâmica de acirramento de conflitos também foi verificada na região da Floresta Amazônica. Dos seis estados que registraram aumentos nas taxas de homicídios, quatro (Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima) ficam na Amazônia Legal. A fragilização da fiscalização das atividades ilegais realizadas na floresta durante o governo Bolsonaro, como garimpo, grilagem e corte de madeira, por exemplo, incentivou o ingresso de capital criminal nesses negócios, acirrando rivalidades e criando instabilidade na cena local. O aumento do desmatamento e das queimadas, nesse sentido, vieram junto com o novo capital das drogas e com o crescimento de homicídios.
O cenário da violência na região Norte vem se tornando um ponto de atenção central, dado o incremento de conflitos por disputas de terras e riquezas do solo, como madeira e terra, além da intensa presença de facções do crime organizado e de disputas entre elas pelas rotas nacionais e transnacionais de drogas que cruzam a região. Em conjunto, esses fatores têm contribuído para a elevação das taxas de homicídios e mortes violentas intencionais no Norte, conforme se apurou na publicação do FBSP “Cartografias das violências na região amazônica”.
Finalmente, e não menos importante, essa tendência de queda pode ocorrer a despeito do aumento da venda de armas e munições no mercado. As armas e munições legais e ilegais, que são desviadas e ingressam no mercado do crime, não causam, isoladamente, variações nas taxas. Elas tendem a aumentar os homicídios circunstanciais, em bares, boates e no trânsito, por exemplo, e os feminicídios. Mas não afetam necessariamente as dinâmicas criminais nos estados. No Brasil, quase 80% dos homicídios são cometidos com armas de fogo.
Um dos exemplos de como a proliferação de armas na sociedade pode aumentar as mortes circunstanciais foi o homicídio do jovem Ailson Augusto Ortiz, de 21 anos, em Cascavel/PR, na quinta-feira (24). Após uma discussão em razão de uma fechada no trânsito, Ailson e o motorista do outro veículo envolvido foram se enfrentar e o motorista disparou três tiros em Ailson. Segundo investigadores informaram, o autor dos disparos seria CAC e teria arma para prática de tiro desportivo, não possuindo porte de armas de fogo para defesa pessoal.
O que se verifica é que a facilidade de acesso e abundância de armas de fogo em determinado espaço faz com que o instrumento seja um catalisador de violência letal. Em outras palavras, a mera presença de armas na sociedade não pode ser considerada um fato gerador de homicídios, mas, ao ser associada a outros fatores sociais, impulsiona eventos letais e delituosos.
A diminuição dos homicídios sempre é uma boa notícia, porém, o país ainda se encontra em patamar muito elevado de mortes violentas em comparação com o cenário mundial. É importante que se compreenda melhor os fatores explicativos para a queda, que estão vinculados a variáveis diversas, mas principalmente às dinâmicas próprias do crime organizado. Entender esse cenário e elaborar políticas públicas voltadas para a redução sustentada dos homicídios é o caminho para que a notícia de que há menos mortes violentas no país deixe de ser apropriada por quem pouco ou nada fez para esse resultado, para se tornar consequência de uma política pública consolidada e sistemática de priorização do combate à violência letal no Brasil.
Roberto Uchôa é policial federal, mestre em sociologia política, especialista em gestão de segurança pública, pesquisador do NUC/UENF, associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do Livro “Armas para Quem? A busca por Armas de Fogo”.
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Mais armas e menos controle, é isso que queremos?
20/02/2022 | 12h39
Um homem morto porque outro se assustou e achou que era um assalto, uma mulher baleada diversas vezes dentro do carro pelo próprio marido, discussão entre comerciante e agricultores acaba em tiroteio com mortos, briga no trânsito termina com dois jovens deitados no asfalto enquanto um homem os ameaça com arma de fogo, médico foi armado ameaçar funcionários de uma pizzaria por conta do atraso do seu pedido. Todos esses casos recentes de violência tiveram algo em comum, pessoas portavam armas de fogo adquiridas legalmente. Nos últimos anos o número de armas em circulação cresceu de forma expressiva e cenas como essas têm se tornado cada vez mais comuns pelo país, e o quadro pode piorar. Está para ser votado um projeto de lei apresentado pelo governo Bolsonaro que afrouxa ainda mais o controle sobre a circulação de armas e munições.

O projeto de Lei nº3723/2019, em tramitação no Senado Federal, é considerado por pesquisadores e especialistas em segurança pública um dos maiores retrocessos no controle de armas de fogo e munições no país nos últimos anos. Apresentado pelo poder executivo em junho de 2019, tem como objetivo mudar o estatuto do desarmamento e dar legalidade a diversas modificações feitas por Bolsonaro que são contestadas no Supremo Tribunal Federal e irão a julgamento. Com a desculpa de trazer maior segurança jurídica aos interessados nessas modificações, os CACS (caçadores, atiradores e colecionadores), o que há realmente por trás desse projeto é um afrouxamento ainda maior no controle sobre armas e munições e uma permissão para que mais de meio milhão de pessoas possam andar armadas pelas cidades.

Prevendo diversas modificações e com o claro objetivo de agradar uma das bases mais fiéis ao bolsonarismo, o projeto promove mudanças na legislação que terão um grave impacto na segurança pública de toda a sociedade. Uma das alterações que mais preocupa é a previsão da eliminação da marcação de munições, inclusive para as das forças de segurança, bem como o fim da exigência de dispositivo intrínseco de segurança e de identificação das armas de fogo. Previsto no artigo 4º das disposições finais e transitórias do projeto, essa possibilidade fez com que o Ministério Público Federal emitisse nota alertando que essa medida impactaria diretamente as dinâmicas criminais, dificultando o trabalho das polícias e do MP na investigação de crimes.

Para exemplificar o perigo, o rastreamento dos projéteis que foram usados para matar a juíza Patrícia Acioli, em 2011, em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, levou a polícia aos assassinos. Na cena do crime, foram apreendidos cartuchos do lote ADA43, calibre 40, vendidos à PM do Rio em 2009. Como essa munição foi distribuída a apenas dois batalhões no estado, foi possível reduzir o número de investigados e assim chegar aos autores que eram policiais militares lotados no 7º BPM, de São Gonçalo. Sem a marcação dos projéteis, a investigação teria sido muito mais complicada e talvez até hoje o crime estivesse sem solução.


Levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz comprovou que nos últimos 8 anos um bilhão e meio de munições foram vendidas no país e apenas 30% receberam marcação para possibilitar o rastreamento. O restante não tem qualquer marcação no cartucho que possibilite a identificação do comprador ou como o material chegou até ele, o que dificulta muito o trabalho da polícia. Enquanto o número de munições vendidas aumentou cerca de 40% nesse período, os lotes com marcação individual se tornaram cada vez mais raros. Em 2010 foram vendidas 143.000.000 de munições no mercado legal e em 2018 esse número aumentou para 195.700.00 e as marcações apareceram em apenas 26,3%.

De acordo com a legislação atual, somente os órgão públicos têm a obrigatoriedade de usar munição numerada, o resto do material vendido não segue essas regras. Portanto, o que o projeto de lei 3273/19 prevê é que nem as munições vendidas a órgão de segurança tenham essa marcação e isso é criar um apagão completo na circulação de munições no mercado legal. E isso é alarmante diante de outra pesquisa que comprovou que cerca de 42% dos projéteis encontrados em locais de crime são fabricados no Brasil.

Ainda na parte de munições, outra medida que provoca preocupação é a autorização automática para recarga caseira de munição para todos os CACs. Atualmente há mais de 450 mil pessoas físicas registradas nas categorias de CACs, ou seja, com o proposto no projeto, seriam autorizadas 450 mil fábricas caseiras de munições, expondo vizinhos a riscos de explosão e pondo fim ao já deficiente sistema de rastreamento.

Sem a identificação dos cartuchos, depois de recarregados e prontos para uso, fica impossível ter qualquer controle. O projeto ainda tenta uma simulação ao limitar a recarga para munição ao lote adquirido pelo interessado, no entanto, como não há marcação de lotes vendidos para pessoas físicas no Brasil, é uma medida inócua. Caso o projeto seja aprovado e entre em vigor, as maiores beneficiadas seriam as organizações criminosas e aqueles com objetivo de desviar esse tipo de material para o crime.

Porém, um dos argumentos centrais daqueles que defendem essas mudanças é de que armas e munições adquiridas legalmente dificilmente são utilizadas em crimes ou desviadas para o mercado ilegal, afirmação que não encontra respaldo na realidade. O acesso desmedido a armamentos de uso restrito, quantidades de munição injustificáveis para a prática esportiva idônea e responsável, e até mesmo a recarga de munições, levam criminosos a usar privilégios concedidos aos CACs para acessar grandes arsenais e armas de uso restrito.
São incontáveis casos de roubos e desvios de armas e munições de clubes de tiro e CACs para o crime organizado. Dentre os casos de grande repercussão, destaca-se a prisão de Ronnie Lessa, acusado pelo assassinato de Marielle Franco, que era atirador desportivo e acusado de usar autorizações de importação para traficar fuzis. O de Levi Adriani, apontado pelo Ministério Público como integrante da cúpula do PCC e responsável por lavar dinheiro e guardar armas para a facção no Paraguai, também tinha registro de CAC. E o mais recente, de janeiro deste ano, Vitor Furtado, registrado como CAC, foi preso por fornecer armas e munições adquiridas legalmente para a maior facção criminosa do Rio de Janeiro.

Não faltam casos notórios de desvios de armas e munições para o crime e a impossibilidade de rastreamento irá facilitar ainda mais ações como essa. Investigações em andamento apontam que milicianos também têm se registrado como atiradores desportivos para aproveitar as facilidades oferecidas pelo governo para adquirirem mais armas, pólvora e munições. Levantamento feito em Tribunais de Justiça pelo país aponta que CACs têm atuado como armeiros, e fornecedores de armas e munições para organizações criminosas. Em Natal, RN, o atirador Makson Felipe de Menezes Pereira, o “Playboy das Armas”, é réu por fornecer fuzis, que ele comprava legalmente, para quadrilhas que realizam ataques a carros fortes no estado.

Outro problema apontado por especialistas e também em Nota Técnica elaborada pelo Instituto Igarapé juntamente com o Instituto Sou da Paz, diz respeito à previsão que define as atividades de caça, tiro desportivo e colecionamento (“CACs”) como “direito de todo cidadão brasileiro” (Art. 21-B). Segundo a nota: “O projeto literalmente define como “direito de todo cidadão brasileiro” as atividades de tiro desportivo, colecionamento e o registro de armas para caça (atividade que é proibida no país, salvo em casos excepcionais). Além disso, em vez de um limite máximo de aquisição de armas de fogo pelos atiradores, o projeto estabelece apenas um limite mínimo de compra. Na prática, isso significa que os limites de aquisição poderão ser maiores do que aqueles previstos hoje em decreto presidencial (60 armas, sendo 30 de calibre restrito) e que são questionados no STF.”

O projeto também atende a uma demanda histórica dos CACs que é relacionada ao porte. Na prática, o PL 3.723/2019 garante a possibilidade do porte de armas para todos os atiradores desportivos com mais de 5 anos de registro e uma arma no acervo. Além disso, permite que o atirador possa circular com sua arma em qualquer horário e trajeto, indo na contramão da proibição do porte de arma de fogo no país. Essa autorização em nada se relaciona a qualquer atividade desportiva ou de lazer, e configura um porte de arma camuflado aos quase meio milhão de atiradores registrados no país.

O objetivo do governo é colocar em lei algo que foi permitido pelo Exército e é criticado por não ter fundamentação legal. De 2004 a 2017 os atiradores iam e voltavam dos clubes de tiro com suas armas guardadas e sem munição. Somente no local ela poderia ser utilizada. Em 2017 o Exército criou a possibilidade do chamado “porte de trânsito” que foi permitir que o atirador vá e volte do clube com a arma municiada e pronta para uso, sendo um porte de arma “camuflado”. Portanto, o que Bolsonaro busca com a mudança legislativa é que esse porte seja legal e que meio milhão de pessoas possam circular armadas.



Durante as pesquisas para o livro “Armas para Quem? A busca por armas de fogo “ ficou evidente que a busca por clubes de tiro aumentou de forma significativa desde a aprovação do “porte de trânsito” pelo Exército. Segundo a pesquisa, realizada em 2019 com atiradores, 50% dos que responderam afirmaram que tinham no máximo dois anos de filiação aos clubes e 91,9% concordava que houve aumento na procura por clubes de tiro. Já sobre o porte de armas, 12,5% deles afirmaram que andavam armados mesmo quando não estavam indo ou voltando da prática do esporte, ou seja, estavam cometendo o crime de porte ilegal de arma de fogo, um percentual que parece ser bem maior do que o respondido na pesquisa.

Em uma demonstração do apreço que Bolsonaro tem pela categoria e como forma de proteção a esse público, o projeto prevê que para ter acesso aos bancos de dados que contenham informação de acervo de CACs (suas armas), o servidor credenciado terá que motivar o ato em registro prévio. Ou seja, para investigar alguém que teria acesso a arsenais de, no mínimo, 16 armas, acesso à recarga de munições, entre outras prerrogativas, o policial teria que explicar porque pretende obter informações do arsenal. Mais uma medida que parece ter como objetivo dificultar o trabalho de instituições como polícia e MP.

Em contrapartida, os defensores do projeto alegam que a violência por armas de fogo tem diminuído justamente porque mais armas estão sendo vendidas e utilizam os dados de quedas do número de homicídios para isso. No parecer do PL 3.723/2019, o senador Marcos do Val indica erroneamente a redução dos homicídios em 2018 e 2019, quando comparados a 2017, como uma evidência de que o aumento do acesso às armas não representou um retrocesso para a segurança no país. Só esqueceu de citar que o uso de armas de fogo para cometimento de homicídios aumentou de 70%, para 78% dos homicídios em 2020 e que mesmo diante da pandemia o número de homicídios voltou a subir 5% em 2020, voltando a cair em 2021.

Fazer esse tipo de relação em espaço tão curto de tempo demonstra o desprezo por um trabalho de pesquisa sério e comprometido com a realidade. O economista e cientista de dados Thomas Victor Conti, professor do Insper e do Instituto de Direito Público (IDP-SP), realizou em 2017 uma revisão de estudos acadêmicos intitulada "Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes". Ele concluiu que 90% das revisões de literatura são contrárias à tese "mais Armas, menos Crimes". Outro estudo, considerado um dos mais abrangentes sobre o tema, foi uma pesquisa desenvolvida por John J. Donohue (Universidade de Stanford), Abhay Aneja (Universidade da Califórnia) e Kyle D. Weber (Universidade de Columbia) estimou que a taxa de crimes violentos aumentava entre 13% e 15%, em dez anos, nos estados norte-americanos que possuíam legislações flexíveis ao acesso à arma de fogo. Na verdade, segundo especialistas em segurança pública, as recentes variações nas taxas de homicídio no Brasil tem maior relação com ações estaduais e nas dinâmicas de enfrentamento entre as facções criminosas.

Nenhuma categoria esportiva ou profissional está completamente livre de pessoas de má-fé e/ou que podem ter momentos de omissão ou de irresponsabilidade. Isso acontece nas polícias, no sistema judiciário e também entre os CACs. Porém, devido à sensibilidade do material envolvido e o impacto que isso pode causar na segurança pública, a regulamentação dessas atividades precisa ter regras compatíveis com o potencial de dano coletivo e regras que facilitem a identificação e responsabilização das pessoas envolvidas em ações criminosas ou omissas. O projeto amplia o acesso a armas e munições ao mesmo tempo em que fragiliza os instrumentos de fiscalização e controle existentes atualmente.

É importante lembrar que armas têm valor e alta demanda no mercado do crime, e muitas pessoas se beneficiam do acesso facilitado a elas para revendê-las a criminosos. Exemplos não faltam. Uma lei tão central para a segurança e democracia brasileiras não pode se basear em crenças irrestritas na boa ou má-fé das pessoas. Aumentar a oferta para o mercado ilegal e extinguir os mecanismos de controle e rastreamento de armas e munições é ir na contramão do que a sociedade precisa: o compromisso tem que ser com a redução dos riscos de desvios, que colocam em xeque a segurança pública. Os benefícios a uma categoria não podem causar prejuízos para toda a coletividade. Na tentativa de agradar sua base fiel, Bolsonaro parece ter esquecido que deve governar para toda a sociedade. A esperança é que os senadores se lembrem disso e votem pela rejeição a esse retrocesso.

Roberto Uchôa é policial federal, mestre em sociologia política, especialista em gestão de segurança pública, pesquisador do NUC/UENF, associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do Livro “Armas para Quem? A busca por Armas de Fogo”.
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Violência doméstica e armas de fogo: uma equação que preocupa
06/02/2022 | 14h25
Essa semana foi notícia na cidade de Campos dos Goytacazes/RJ uma tentativa de feminicídio ocorrida em um estacionamento na região central. Uma mulher, de 46 anos, foi atingida por três disparos de arma de fogo e o principal suspeito é o companheiro da vítima, que fugiu do local e foi preso por policiais dias depois. A vítima foi operada e está em estado grave no hospital. Infelizmente esse caso não foi uma exceção, as ocorrências de violência doméstica têm sido cada vez mais comuns e há uma percepção de que aumentaram de forma significativa desde o início da pandemia de Covid19. Apesar desse caso específico ter ocorrido em área comercial, o padrão é que grande parcela dos casos ocorra nas residências, mostrando que não há local seguro quando se fala em violência contra as mulheres. Por isso, uma das grandes preocupações de quem estuda esse tema é o impacto que o aumento de armas de fogo em poder da população terá nesse contexto..

Ao longo de milênios a mulher foi tratada como objeto e propriedade dos homens. A submissão e a consequente violência era vista como algo natural, um direito do homem, seu senhor. Uma ofensa a ela era tratada como uma ofensa a seu senhor, que poderia ser seu pai ou seu esposo. Somente nos últimos anos as mulheres foram aos poucos conquistando diversos direitos, sempre com o objetivo de diminuir a desigualdade de tratamento com relação aos homens. Mesmo assim, as mudanças legislativas se mostraram mais fáceis do que as culturais, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil. Apesar da evolução na legislação, ainda está arraigada em parcela relevante da sociedade a noção de que a mulher é propriedade do homem que tem sobre ela todos os direitos. Além disso, vivemos em uma sociedade que possui um machismo exacerbado, onde é comum que filhos assistam seus pais agredirem fisicamente ou verbalmente suas mães, o que, de uma maneira indireta, acaba por perpetuar o ciclo de violência contra mulheres.

Uma das principais mudanças legislativas recentes foi a lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. Fruto de muita luta política, a legislação tem como símbolo a luta de Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de abusos cometidos por seu esposo durante 23 anos e foi alvo de duas tentativas de assassinato por ele. Após denunciar o marido, Maria da Penha tornou-se uma das principais ativistas por uma nova legislação que protegesse as mulheres. Com a previsão de medidas protetivas e de punições mais rigorosas para os autores, a nova legislação foi um importante marco na defesa das mulheres. Porém, apesar dessas inovações, as vítimas de violência doméstica ainda sentem uma grande dificuldade em denunciar, tendo em vista que muitas vezes o autor é o próprio companheiro, pai de seus filhos e o responsável pelo sustento da casa. É o que demonstra a pesquisa realizada pelo Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) em conjunto com o Instituto de Pesquisa DataSenado, realizada em 2018: “De acordo com a nova pesquisa, as vítimas muitas vezes deixam de denunciar a agressão por dependerem economicamente do autor da violência, por medo de não conseguirem sustentar a si e a seus filhos”.

Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre violência contra a mulher no Brasil, 44,9% das entrevistadas afirmaram que não fizeram nada em relação à agressão mais grave sofrida e que apenas 28,5% solicitaram apoio policial. Outro dado relevante encontrado é que 72,8% dos autores das violências sofridas eram conhecidos das mulheres, com destaque para os cônjuges/companheiros/namorados com 25,4%, ex-cônjuges/ex-companheiros/ex-namorados com 18,1%, pais/mães com 11,2%, padrastos/madrastas com 4,9% e filhos/filhas com 4,4%, indicando a alta prevalência de violência doméstica e intrafamiliar. Prova disso é que 48,8% das vítimas relataram que a violência mais grave vivenciada no último ano ocorreu dentro de casa, percentual que vem crescendo. A rua aparece em 19,9% dos relatos, e o trabalho como o terceiro local com mais incidência de violência com 9,4%. Para mulheres nem sempre a sua residência é o local mais seguro.

Outra conquista importante veio em 2015 com a promulgação da Lei nº 13.104 que inseriu no Código Penal o crime de feminicídio, como uma espécie de homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos de prisão. Uma ação afirmativa de prevenção da morte de mulheres, na esteira de legislações de outros países, que define feminicídio como o homicídio praticado contra a mulher em razão de sua condição de mulher. Apesar de ter sido considerada um avanço, houve críticas, mas uma pesquisa realizada pelo Ministério Público de São Paulo com base em denúncias oferecidas nos anos de 2016 e 2017 mostrou a importância dessa diferenciação de crimes. Segundo dados apresentados 66% dos feminicídios ocorreram nas residências das vítimas e que 96% dos crimes tinham sido cometidos por cônjuges/companheiros/namorados. Elas foram mortas por serem mulheres e em razão das suas relações familiares, dentro de suas casas. Segundo o anuário de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 ocorreram 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram classificados como feminicídios, 34,5% dos assassinatos.

Com a pandemia de Covid19 e as medidas de isolamento adotadas, os casos de violência doméstica passaram a chamar mais atenção. Segundo dados da pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, 73,5% da população brasileira acreditava que a violência contra as mulheres cresceu durante a pandemia de Covid19. Já entre as mulheres os dados apresentados foram assustadores, segundo os pesquisadores “1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, durimpossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento são os fatores que mais pesaram para a ocorrência de violência que vivenciaram. ante a pandemia de covid-19. Isso significa dizer que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano.” Destas, 4,3 milhões de mulheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes, cerca de 3,7 milhões de brasileiras (5,4%) sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais, 2,1 milhões de mulheres (3,1%) sofreram ameaças com faca (arma branca) ou armas de fogo e 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento (2,4%).

Diante dos dados que apontam que a maioria das vítimas de violência têm sido atacadas em suas casas, por pessoas próximas e que muitas vezes deixam de registrar ocorrência por receio das dificuldades que podem enfrentar, é compreensível que muitos pesquisadores e estudiosos da violência e segurança pública estejam preocupados com os efeitos da política armamentista do atual governo. Afirmam que adicionar o componente arma de fogo dentro dessa equação de violência doméstica tende a agravar as consequências e fragilizar ainda mais a situação das mulheres que estão em relacionamentos abusivos. A ausência de uma arma de fogo na residência dos brasileiros não fará com que inexista a violência doméstica, uma vez que, conforme já mencionado, a cultura machista está enraizada em nossa sociedade, porém a presença deste instrumento pode agravar os riscos de mortes, encurtando o caminho da violência doméstica e transformando agressões físicas em feminicídio.

Segundo levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz “O papel da arma de fogo na violência contra a mulher”, onde foram analisados casos de homicídios praticados contra mulheres, de 2000 a 2019, 51% das vítimas foram mortas com uso de armas de fogo. Segundo os pesquisadores “...o aumento da proporção dos casos não letais armados dentro das residências, sinalizando para o risco da violência armada nos casos de violência doméstica. Entre 2018 e 2019, a residência passou a responder pela maior proporção dos casos de violência armada não letal contra mulheres, superando a via pública. Assim, a residência foi o local onde proporcionalmente mais incidiram eventos de violência armada física e psicológica contra a mulher…”. Já no citado estudo do Ministério Público de São Paulo que trata especificamente de feminicídios, o uso da arma de fogo só perdia para a faca como instrumento mais utilizado para o cometimento dos crimes. Segundo o anuário de 20221 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 26,1% dos feminicídios são cometidos com armas de fogo, enquanto as facas respondem por 55,1%.

Desde o início de 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, a política de armas foi modificada e mais de 30 medidas foram editadas com o objetivo de facilitar o acesso da população às armas de fogo. Segundo dados divulgados pelo próprio governo, apenas no ano de 2020 houve um crescimento de 108,4% no número de armas adquiridas por pessoas físicas, que chegavam no fim do ano a mais de 1 milhão e 200 mil armas em circulação com civis. A facilidade em adquirir uma arma de fogo pode fazer com que sua utilização como instrumento de ameaça e intimidação seja ainda mais frequente. Apesar dos defensores do armamento afirmarem que a presença de uma arma de fogo em casa oferece maior segurança à mulher, a realidade é outra. Em levantamento feito para o livro “Arma para Quem? A busca por armas de fogo” ficou comprovado que as mulheres são uma parcela ínfima das pessoas que estão em busca de armas de fogo. Apenas 0,9% dos requerentes na Polícia Federal eram mulheres e apenas 11,3% dos frequentadores de clubes de tiro.

As armas de fogo são consideradas um fator preocupante dentro de um quadro de violência doméstica. Estudo conduzido em onze cidades nos EUA, com 220 vítimas de feminicídio íntimo, verificou que 70% tinham sofrido violência física do parceiro antes do assassinato; e que, entre os fatores de risco, estavam o acesso a armas de fogo por parte do agressor, a dependência química e o fato de residirem no mesmo endereço. De acordo com o professor de saúde pública da Universidade de Harvard e diretor do centro de pesquisa em controle de ferimentos da mesma instituição, Dave Hemenway, todas as evidências apontam na direção de menos segurança com armas, “...uma arma dentro de uma casa aumenta o risco de que seus moradores cometam suicídio ou se envolvam em um acidente fatal. Aumenta ainda o risco de mulheres e crianças serem assassinadas com a arma doméstica.” Outro estudo publicado por Vigdor e Mercy também nos Estados Unidos indicou que a apreensão da arma de fogo de acusados de violência doméstica implicou na redução de 7% na taxa de feminicídios por parte de seus parceiros íntimos.

Apesar de estimular a aquisição, o governo reconhece que a arma de fogo em um contexto de violência doméstica é preocupante, e por essa razão foi promulgada a lei nº 13.880, de outubro de 2019, que alterou a Lei Maria da Penha. Ela estabelece que a autoridade policial, no caso de violência doméstica, deve verificar se o agressor possui posse ou porte de arma e em seguida notificar à autoridade que concedeu o porte ou a posse da arma a ocorrência da violência doméstica, para, então, determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse do agressor.

E esse foi o motivo de uma apreensão recente que ocorreu no dia 22 de janeiro no aeroporto internacional Tom Jobim. Um carregamento que vinha da Europa com 7 pistolas, 2 espingardas, uma carabina e 22 carregadores foi apreendido por policiais civis da DEAM (Delegacia de atendimento à Mulher) de Jacarepaguá. O armamento seria recebido por um homem, investigado pela unidade por crime de violência doméstica, que seria um CAC (colecionador, atirador e caçador) registrado no Exército. Segundo os policiais, em razão de registro de ocorrência feito em dezembro, foram determinadas medidas protetivas pelo judiciário e ele teve suas permissões de posse e porte de armas suspensos. Em janeiro o autor foi preso em flagrante pelo descumprimento das medidas protetivas determinadas e com ele foram encontrados uma pistola e sete carregadores.

Não faltam registros de casos de violência doméstica com uso de armas de fogo e uma pesquisa rápida em qualquer sistema de buscas da internet irá apresentar uma lista interminável de notícias. E as mulheres parecem entender o perigo que isso representa. Segundo pesquisa feita pelo instituto Datafolha em 2019, 75% das mulheres responderam serem contra a posse de armas pelas pessoas e 78% delas rejeitam as mudanças promovidas por Bolsonaro. É evidente que o implemento de política de flexibilização da posse de armas voltada para a população civil ao mesmo tempo que traz a falsa sensação de segurança à vida e ao patrimônio, mostra-se um tormento na vida de mulheres que já sofrem com altos níveis de violência doméstica no Brasil, uma vez que aumenta-se a insegurança e se cria uma possibilidade real de aumento nos índices de feminicídios. É notório que o potencial lesivo é maximizado pela presença da arma de fogo dentro do ambiente familiar, ao alcance do autor, podendo ser empregada a critério de sua consciência e desequilíbrio emocional.

Ao contrário dos caminhos que o governo de Jair Bolsonaro tem tomado, o que se espera, especialmente no tocante às mulheres, é um cenário de maior proteção por parte do Estado. Afinal, estas já vivenciam um ambiente social no qual estão sujeitas à constante insegurança em uma sociedade que carrega heranças culturais e estrutura sob fortes valores patriarcais. Portanto, apesar de a alegação do executivo para o armamento da população civil ser que se trata de um direito do cidadão ter acesso a uma arma de fogo para defesa de sua vida e de seu patrimônio, há um ônus a ser assumido que a sociedade não está preparada para tal, uma vez que se verifica uma realidade caótica de segurança pública e tutela dos direitos da mulher. A violência doméstica se manifesta em proporções que vão além da ideia da autodefesa e da defesa do patrimônio, colocando em xeque não somente o direito fundamental à integridade física, mas à vida.


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Armas legais no submundo do crime
30/01/2022 | 12h17
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Na última semana foi notícia a prisão de Vitor Furtado Rebollal Lopes, conhecido como Bala 40. Ele estava sendo investigado por tráfico de armas e foi apontado como fornecedor de armamento para traficantes do Comando Vermelho. O criminoso foi detido em Goiás por policiais civis do Rio de Janeiro e com ele foram encontradas 10 mil munições para fuzis e 1 mil para carabinas. Em uma residência de Vitor, no Grajaú/RJ, policiais encontraram 55 armas guardadas que tinham como destino a citada facção criminosa. Dentre o armamento, havia 26 fuzis e 21 pistolas, com valor estimado em quase R$2 milhões. Segundo os investigadores, Vitor tinha registro de CAC (colecionador, atirador e caçador) emitido pelo Exército brasileiro e adquiria legalmente armas e munições para serem revendidas para criminosos. Esse seria apenas mais um caso de desvio de armas legais para o crime, mas o que chamou atenção da polícia foi a grande quantidade de armas adquiridas e como isso não acendeu o alerta dos militares, responsáveis pela fiscalização dos CACs.

A conexão entre os mercados legal e ilegal de armas de fogo sempre foi motivo de preocupação para quem estuda as relações entre armas e violência. Seja por furtos, roubos ou desvios, o uso de armas legais no cometimento de crimes é uma realidade, que apesar de ser conhecida, ainda é muita negada por muitos. Historicamente, o país exerceu pouco controle sobre o mercado de armas de fogo e isso só mudou depois que a quantidade de homicídios por armas tornou- se uma epidemia.
Durante as décadas de 80 e 90 o crescimento de homicídios foi alarmante e o uso de armas de fogo se tornou cada vez maior. Se no início dos anos 80 cerca de 40% dos homicídios foram cometidos com uso de armas de fogo, no final da década de 90 esse percentual chegava a mais de 70%. Em 20 anos o país passou de 13.000 para 45.000 mortes anuais. As autoridades sabiam que a quantidade de armas de fogo em circulação na sociedade era grande, porém, havia a crença de que as armas utilizadas em crimes eram fruto de contrabando.

Isso mudou a partir de uma pesquisa realizada pelo movimento Viva Rio. Entre 1999 e 2001 pesquisadores tiveram permissão para fazer um cadastramento das armas apreendidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e com a análise de cerca de 200.000 delas, descobriu-se que 75% das armas utilizadas em crimes haviam sido fabricadas no Brasil. O revólver, calibre 38, da Taurus, era a arma mais utilizada na prática desses crimes.

Diante da pressão da sociedade civil por mudanças, foi promulgado em 2003 o estatuto do desarmamento. Ao impor requisitos objetivos e subjetivos para aquisição de armas e munições, criando limites a esse comércio, a legislação tinha como objetivo a regulação do mercado. No entanto, armas de fogo são bens de longa duração, e havia muitas armas em poder da população. As novas armas seriam registradas, porém, grande parte que já estava em circulação continuava no limbo.

Além dessas armas que permaneciam ocultas para as autoridades, outra preocupação surgiu com a divulgação do relatório da CPI das Armas realizada na ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) em 2015. O relatório apontou que o número de armas furtadas ou roubadas de empresas de segurança privada, assim como de instalações militares e polícias era preocupante, cerca de 18% das armas apreendidas. Outro dado confirmado é de que 68% das armas tinham sido legais em algum momento, confirmando essa forte conexão entre os mercados legal e ilegal. Além das armas que o governo não conhecia, o poder público estava perdendo também as armas que tinha sob seu controle.

O problema não era restrito somente às armas de fogo. Outra parte relevante desse mercado permanecia nas sombras, a venda de munições. Segundo levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz sobre munições apreendidas em locais de crime, no ano de 2014, no Rio de Janeiro, 42% delas eram fabricadas pela CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), principal fabricante desse tipo de material no país. O desvio de munições também se tornou um grande problema nos últimos anos e as dificuldades de rastreamento paralisaram investigações.

Segundo inquéritos policiais, munição desviada das forças de segurança foi utilizada em pelo menos dez ações criminosas na última década, resultando em 20 homicídios. Nas cenas desses crimes foram encontrados projéteis adquiridos pelas polícias civil e militar do RJ, pela secretaria de administração penitenciária, pela Polícia Federal, pela Polícia Rodoviária Federal e pelo Exército. Um dos casos mais conhecidos é o da então vereadora Marielle Franco, que foi atingida por munição adquirida pela Polícia Federal e desviada. Até hoje não se sabe como nem quando aconteceu o desvio.

Apesar das evidências que o controle sobre o comércio de armas e munições não é suficiente, e de que material legalmente vendido tem sido direcionado de várias formas para o mercado ilegal, desde o início do governo Bolsonaro mais de 30 medidas foram editadas com o objetivo de diminuir ainda mais o pouco controle existente. Como meta aumentar o acesso a grandes quantidades de armas e munições, essas medidas permitiram que cidadãos possam comprar armas que antes eram restritas às forças de segurança, como, por exemplo, as pistolas calibre 45, 9mm e os fuzis semi automáticos.

Simultaneamente, o governo tem atuado deliberadamente para diminuir a capacidade do Estado de controlar os arsenais, de maneira a evitar os riscos de que eles sejam desviados para a ilegalidade e usados para o cometimento de crimes. Três portarias do Exército que previam medidas para melhorar capacidades do Estado de fiscalização dos chamados produtos controlados, que incluem armas, munições e explosivos, chegaram a ser revogadas a pedido da Presidência, tendo se tornado alvo inclusive de questionamento judicial no STF.

Enquanto isso, algumas mudanças direcionadas aos CACs (Caçadores, atiradores e colecionadores), base fiel ao bolsonarismo, chamam a atenção. A ampliação dos limites de aquisição de armas e munições para caçadores (de 12 armas e seis mil munições para 30 armas e 90 mil munições), atiradores desportivos (de 16 armas e 60 mil munições para 60 armas e 180 mil munições) e colecionadores (um exemplar de cada modelo no acervo para cinco exemplares, sem limites de armas). Verdadeiros arsenais cada vez menos controlados pelo Estado.

Desde o início do governo, o número de armas em poder da sociedade aumentou 65%. Enquanto em 2017 eram autorizadas aquisições de 43 armas por dia pela Polícia Federal, em 2020 esse número pulou para 378. Ao mesmo tempo, os recursos empregados pelo Exército vêm diminuindo. Segundo levantamento feito pelo Instituto Igarapé os valores direcionados ao Exército para operações de fiscalização de lojas de produtos controlados, de clubes de tiros e de colecionadores, caçadores e atiradores (CACs) apresentou queda nos dois primeiros anos do atual governo. Em 2020, o montante foi de R$ 3 milhões, 15% a menos do que em 2018 e 8% a menos do que em 2019. A diminuição contrasta com o período anterior ao atual governo: de 2016 a 2018, a verba cresceu 18%. Assim como o orçamento, o efetivo alocado nesses eventos também sofreu redução. Em 2020, 2.121 militares atuaram em operações de fiscalização, número 28% menor que em 2018 e 54% menor que em 2019. Enquanto isso, o número de pessoas registradas como CACs disparou.

Comparado a dezembro de 2018, período imediatamente anterior ao início do governo do presidente Jair Bolsonaro, o aumento de certificados para essas categorias é alarmante. O crescimento de certificado de registro ativos de atiradores foi de 161%, de caçadores, de 219%, e de colecionadores, de 228%. No ano de 2020 foram 567 novos registros de CAC por dia e em 2021 esse número mais que dobrou para 1.162. Essa expansão ocorre sem que haja um controle dos acervos. Apesar dos casos noticiados de desvio de armas de pessoas registradas nas categorias em questão para a criminalidade, dados do próprio Exército Brasileiro mostram que em 2020 ele só efetuou visitas de fiscalização em 2,3% do acervo de caçadores, atiradores, colecionadores, clubes e entidades de tiro que devem ser fiscalizados.

A conexão entre os mercados legal e ilegal sempre existiu e com o aumento da violência armada passou a ser uma preocupação. Mudanças legislativas foram feitas, mas mesmo assim não foi o suficiente. Com a ascensão de Bolsonaro ao poder, o que deveria ser melhorado e modernizado passou a ser desmontado. O descontrole passou a ser o objetivo e o acesso às armas de fogo foi facilitado. Qualquer norma ou projeto que tivesse o objetivo de possibilitar o rastreamento ou controle sobre armas e munições foi arquivada ou revogada.

Com a retorno dos trabalhos no Congresso Nacional voltará a ser analisado no Senado Federal o projeto de Lei 3.723/2019 que pretende alterar o estatuto do desarmamento. Principal bandeira da chamada bancada da bala. O projeto tem como principais pontos a extinção de marcação de munições e liberação de porte de armas para os CACs, que nos últimos três anos passaram de 167.390 para 491.771 pessoas com registro. O projeto permite que quase meio milhão de pessoas andem armadas pelas ruas das cidades.

O próprio presidente tem repetidamente afirmado que seu desejo era e continua a ser armar a população, como na famosa reunião ministerial de abril de 2020. Não para que se defendam de criminosos, mas para que resistam ao próprio Estado. De uma forma perversa parece que o objetivo está sendo alcançado. Mas quem vai resistir ao Estado não será a população de bem e sim os criminosos que estão se aproveitando dessas facilidades para adquirir fuzis no mercado interno. Ao invés de evitar que armas e munições sejam desviadas para o crime, o governo tem feito justamente o oposto. Traficantes e milicianos agradecem.
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Ponto para o governador
23/01/2022 | 12h52
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No dia 15 desse mês, foi lançado em Campos dos Goytacazes o programa Segurança Presente. Com a presença do governador Cláudio Castro, uma base do programa foi inaugurada e servirá de apoio para o reforço no policiamento ostensivo na cidade. Diariamente das 06h às 22hs, 72 policiais militares farão patrulhamento nas áreas residenciais e comerciais do centro, pelinca e guarus.A base fica na rua do Ouvidor, 174, centro. Mas o que é o programa segurança presente e como ele pode impactar a segurança pública no maior município do interior do estado?

Precedido pelo sucesso das operações Lei Seca e Barreira Fiscal surgiu, no ano de 2014, o Programa Segurança Presente, cuja primeira operação foi na Lapa, bairro conhecido da cidade do Rio de Janeiro pela intensa vida cultural e também por casos constantes de violência. Tendo como principal característica a multidisciplinaridade com a presença de policiais e assistentes sociais, o programa apostava na modernização da gestão utilizando princípios de new public management como inovações nos modelos de abordagem, autonomia, transparência e uso de tecnologia. O foco era a prestação de um serviço de qualidade à população.

Nesse primeiro momento, além dos princípios de gestão introduzidos, agregou-se os de parceria público-privada e participação social, com o objetivo de melhoria da ordem pública e da sensação de segurança em um ambiente que já havia sido alvo de outras ações sem sucesso. Uma agenda impulsionada com recursos da iniciativa privada e do município, e executada pelo governo estadual. Essa parceria foi criada com convênio entre os entes públicos e a Fecomércio (Federação do comércio de bens, serviços e turismo do estado do Rio de Janeiro).

Com a melhoria da sensação de segurança e redução de alguns índices de criminalidade, o programa foi considerado um sucesso por políticos, gestores e sociedade. A demanda pela expansão do programa passou a ser grande tanto pelo município quanto pela Fecomércio. Além da demanda da sociedade, outro fator que influenciou o crescimento do programa foram os casos de grande repercussão, como os frequentes roubos de rua no centro do Rio e o homicídio de um ciclista no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas..

Desde 2014 foram criadas 36 bases do programa nos seguintes locais: Lapa, Aterro do Flamengo, Méier, Lagoa, Centro, Niterói, Leblon, Copacabana, Tijuca, Ipanema, Nova Iguaçu, Laranjeiras, Bangu, Botafogo, Austin, Duque de Caxias, Barra da Tijuca, Recreio, Grajaú/Vila Isabel, Bonsucesso, São Gonçalo, Madureira, Jacarepaguá, Belford Roxo, Queimados, Irajá, São João de Meriti, Magé/Piabetá, Itaguaí, Cristo Redentor, Miguel Pereira, Paracambi, Japeri, Seropédica, Itaguaí e Campos dos Goytacazes. O que seria uma política de governo passou a ser uma política de estado e o programa foi mantido pela sucessão de governadores desde sua criação.

Atualmente as unidades são 100% financiadas pelo governo estadual e tem crescido de forma acelerada nos últimos anos, o que criou o receio da repetição dos erros cometidos no projeto das UPPs, que também cresceu rápido demais por questões eleitorais e acabou se tornando mais uma história de fracasso na segurança pública fluminense. Uma preocupação comum aos envolvidos que receiam a perda das principais características que consideram ser o diferencial do programa, a multidisciplinaridade e participação social. Acredita-se que isso pode vir a descaracterizar o programa e, consequentemente, ensejar a perda de sua eficiência e eficácia.

Os números apresentados pelo programa impressionam. Desde 2014 foram feitos mais de 220.000 atendimentos assistenciais, 34.000 pessoas foram detidas e conduzidas a delegacias, 6.000 mandados cumpridos e 258 pessoas que eram consideradas desaparecidas foram encontradas. São estatísticas que comprovam o impacto do programa no cotidiano das regiões onde atua.

É verdade que a melhoria do policiamento ostensivo sempre foi uma demanda da sociedade, mas o grande diferencial do programa foi desde o início a conjunção de três fatores essenciais: política de proximidade com a presença de policiais militares e agentes civis no patrulhamento das ruas; assistência social com profissionais preparados para atender a pessoas em situação de rua e de vulnerabilidade; e capacitação dos profissionais para esse novo modelo de gestão voltado para a sociedade com prestação de contas e transparência.

Outro fator relevante presente no programa é a autonomia dos agentes para solução de conflitos e demandas apresentadas nas ruas. Isso proporciona uma sensação de satisfação na população e só é possível em razão da gestão menos hierárquica do que as existentes em batalhões da polícia militar. Uma gestão com um viés mais horizontal, tendo como finalidade a satisfação do público.

Em uma cidade do porte de Campos dos Goytacazes com seus conhecidos problemas de policiamento e a falta de sensação de segurança, a chegada do programa Segurança Presente é uma ótima notícia. Apesar do governo municipal ter um importante papel a desempenhar nessa área, até agora somente o governo estadual teve a iniciativa de fazer algo visando a melhoria da segurança dos campistas. Que o programa proporcione à cidade segurança presente e real. Ponto para o governador.
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Segurança Pública Municipal: um desafio
13/01/2022 | 17h21
Agência Brasil
O debate sobre o papel dos municípios na segurança pública tem avançado muito nos últimos anos. Desde a promulgação da constituição federal de 1988 até os anos 2000 a dúvida era se o modelo federativo brasileiro permitia esse protagonismo dos municípios tanto na aplicação de políticas públicas de prevenção quanto no controle da violência. Historicamente controlada pelos estados, a dúvida recaía sobre quais seriam os instrumentos adequados para essa atuação, já que a própria constituição limitava a atuação das guardas municipais à proteção dos bens, serviços e instalações municipais. Uma excelente desculpa para os gestores que desejavam evitar o desgaste. Era simples colocar a culpa nos governadores. Porém, muitos prefeitos e prefeitas desejavam essa atuação e desde então isso se tornou uma realidade em centenas de municípios brasileiros.
Desde o início deste século muitas cidades implantaram projetos de segurança pública municipais e tiveram excelentes resultados. A previsão constitucional de que cabe aos municípios a proteção do meio ambiente, do patrimônio histórico cultural e das políticas de desenvolvimento e ordenamento do espaço urbano foi utilizada como fundamento para essa atuação, porém, não havia uma legislação específica que desse proteção jurídica a essa atuação. Com a promulgação do estatuto das guardas municipais e da lei que criou o Sistema Único de Segurança Pública, ficou pacificado o entendimento de que o município pode e deve atuar na segurança pública.
Nas últimas eleições municipais de 2020 a agenda da segurança pública ganhou destaque, porém, passado o primeiro ano de governo, em muitos municípios não se materializou como política pública municipal na mesma proporção que foi citada pelos candidatos em suas campanhas eleitorais. É verdade que diversos municípios já possuem instâncias municipais responsáveis pela formulação e gestão da política municipal de segurança. Denominadas secretarias de segurança pública, de ordem urbana ou outros nomes mais criativos, essas estruturas para elaboração de planos e projetos já existem, mas o que grande parte fez até agora?
A percepção é de que a maioria dessas estruturas criadas tem servido exclusivamente para gerir as guardas municipais, sem conseguir articular a atuação desses profissionais com uma política pública de prevenção à violência. Muitos secretários e coordenadores acabam por reproduzir as práticas das secretarias estaduais de segurança atuando muito mais para “apagar incêndios", ou dando respostas às demandas impostas pela mídia ao divulgar casos de violência de grande repercussão.
A gestão das guardas municipais é sim importante parte do trabalho desses gestores. Já é lugar comum afirmar que a atuação desses profissionais no cotidiano das cidades tem natureza preventiva e comunitária. O guarda é percebido como o agente público mais próximo da população, uma figura que já faz parte da dinâmica urbana de várias cidades e a quem a população procura em busca de informações, de ajuda e também para resolver conflitos nos espaços urbanos. Porém, a segurança pública municipal não pode se resumir à gestão das guardas municipais. Claro que o investimento em formação e aperfeiçoamento desses servidores é algo fundamental a ser feito, para assim terem a capacidade de desenvolver um trabalho local e comunitário na prevenção da violência, mas outras medidas são essenciais.
Para que o município tenha condições de implantar políticas locais de prevenção da violência é importante realizar um processo composto por algumas etapas fundamentais. A primeira é a realização de um diagnóstico preciso sobre a situação da violência e da criminalidade, bem como sobre os programas em andamento. A segunda é a elaboração de estratégias de intervenção, ou seja, a formulação de um plano de ações focado nos problemas apontados no diagnóstico. A terceira etapa é a execução do plano de ações e o monitoramento dos resultados obtidos para melhoria dos processos implantados e adequação das medidas.
Outro passo importante é a participação da comunidade. Isso é essencial para o sucesso de qualquer plano de segurança pública municipal. Esse envolvimento deve se iniciar desde a fase de diagnóstico, passando pela participação na elaboração do plano de ações e principalmente na fase de execução e monitoramento. Quanto maior for o envolvimento, melhor será a contribuição na identificação dos problemas e potencialidades, servindo ainda para legitimar e exercer a fiscalização e controle sobre a política adotada. Fóruns, comitês e conselhos comunitários são instâncias de participação que ajudam a organizar a atuação da comunidade.
Não há mágica. Não há planos mirabolantes. Basta existir a vontade política de atuar em uma das áreas mais sensíveis hoje para a população de qualquer cidade, a segurança pública. Não dá mais para os gestores municipais se absterem de atuar alegando ser responsabilidade dos governadores e também não adianta criar uma secretaria de segurança pública e nada ser feito. A população clama por segurança e essa conta vai chegar também para as gestões municipais. A questão que fica é: o que o(a) prefeito(a) da sua cidade fez até agora pela sua segurança?
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Políticas públicas de segurança, somente com instituições modernas e democráticas
17/10/2021 | 22h17
A sociedade se acostumou a crer que as soluções para os problemas de segurança pública requerem, fundamentalmente, a contratação de pessoal, compra de viaturas e armamentos com investimento em sofisticados sistemas tecnológicos. Sem dúvida que a escassez de efetivo e falta de estrutura adequada impedem a prestação de um serviço adequado, entretanto, é preciso muito mais do que policiamento e tecnologia para resolver nossos problemas de segurança. São necessárias políticas públicas de segurança assim como uma modernização das estruturas do sistema de justiça criminal herdado da ditadura. 
 
A política de segurança pública é, na verdade, uma política pública como aquelas existentes em outras áreas como saúde, educação e meio ambiente. Entretanto, a ideia de tratar os problemas de segurança através da formulação e implementação de políticas públicas é ainda muito recente no Brasil, e, um dos principais equívocos é acreditar que as polícias são as únicas responsáveis pela sua execução. A participação de outros entes estatais e organizações da sociedade civil são cada vez mais relevantes para o sucesso de qualquer política pública de segurança, principalmente quando o foco é a prevenção.
Além disso, é necessário entender que cada problema de segurança pública requer a formulação de política pública específica. Homicídios, feminicídios e roubos de pedestres são problemas distintos que requerem políticas próprias para mitigá-los, da mesma forma que a corrupção e o combate à atuação de organizações criminosas são problemas que requerem soluções específicas. Pensar segurança a partir da ótica das políticas públicas parece óbvio, mas ainda é uma exceção no Brasil. Porém, uma das maiores dificuldades encontradas para implantação desses planos surge exatamente nas corporações policiais.
A estrutura do campo da segurança pública no Brasil, definida no artigo 144, é caracterizada por uma forte concentração de recursos e competências no plano estadual, pela impossibilidade de as instituições policiais exercerem o ciclo completo de policiamento. Além disso, existem limites constitucionais à reforma das polícias, uma vez que a estrutura construída ao longo do século XX, e fortalecida no período autoritário, foi consagrada pela Constituição Federal de 1988.
Outro aspecto importante a ser considerado é que, apesar das polícias militar e civil serem estruturadas e controladas pelos estados, sua organização e funções são definidas pela Constituição Federal de 1988. Portanto, os estados não podem, isoladamente, transformar ou extinguir essas instituições. As normas que regem o funcionamento das instituições encarregadas em prover segurança são anteriores à Constituição e influenciadas por concepções de política criminal e de manutenção da ordem social do regime autoritário.
Nos últimos anos, várias propostas foram apresentadas ao Congresso Nacional visando mudar esta estrutura legal e institucional. Entretanto, nenhuma logrou êxito em chegar até o final do processo legislativo. A maior parte dos projetos de modernização institucional tem sido distorcida pela burocracia pública, o que impede a mudança de práticas e culturais organizacionais.
Uma das poucas iniciativas que teve sucesso foi a que transformou os agentes penitenciários em policiais penais, a PEC 372/2017. Uma medida importante já que a atuação de organizações criminosas no sistema penitenciário brasileiro é um dos principais problemas relacionados à segurança pública. Através da corrupção de agentes do Estado, os chefes dessas organizações continuam a comandar seus negócios legais e ilegais de dentro do sistema penitenciário.
Em suma, a estrutura do campo da segurança pública não foi alterada pela Constituição de 1988. Ao mesmo tempo, as organizações criminosas têm passado por grandes transformações se adequando aos tempos modernos que exigem para esse enfrentamento instituições independentes, modernas, com autonomia e fundamentadas em conhecimentos científicos e multidisciplinares. Porém, ao invés disso, o que há são corporações paralisadas em conflitos internos, presas a estruturas arcaicas e ultrapassadas, com processos e procedimentos lentos e burocráticos, que impossibilitam a implementação de políticas públicas de segurança adequadas e dificultam o combate ao crime organizado.
Sem uma profunda reestruturação do sistema de justiça criminal brasileiro, com mudanças na governança e na arquitetura organizacional das polícias, as políticas públicas de segurança continuarão a ser somente cartas de intenção. Sem a implantação de conceitos como ciclo completo, desmilitarização, carreira, accountability e ferramentas modernas de gestão e governança, o panorama tende a ser o mesmo ou até piorar. Para fortalecer a democracia, é preciso que essa chegue às instituições policiais
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Bolsonaro e sua Política Nacional de Segurança Pública
07/10/2021 | 00h44
No dia 29 de setembro de 2021 foi editado e publicado o decreto nº10.822 que instituiu a revisão da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030. Esse decreto trata de questões abordadas por duas normas publicadas no ano de 2018, a lei nº 13.675, que criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), e o decreto nº9.489, que regulamentou os procedimentos para a implementação da PNSPDS.
Como tem ocorrido desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, as mudanças legislativas propostas pelo executivo com relação à área da segurança pública têm causado apreensão e muitas críticas de pesquisadores, especialistas e de profissionais da área, e, no caso do decreto, não foi diferente. Ao invés de fortalecer políticas públicas que tenham como objetivo a prevenção, o respeito aos direitos humanos, a melhoria da governança nas instituições policiais e um incentivo a uma maior participação dos municípios nessa área, o governo foi justamente na direção contrária.
Uma das primeiras mudanças trazidas pelo recente decreto tem relação com mecanismos de governança previstos na lei do SUSP. O SINAPED (Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social), é um desses que ficou de fora do novo decreto e isso é péssimo, pois enfraquece a atuação dos estados e municípios, com o governo federal se colocando como o protagonista com relação à política de segurança pública do país.
Dessa forma, o ministério da justiça passa a ter um papel central na deliberação sobre as políticas de segurança, mas não como um coordenador, exercendo um papel de liderança nas ações promovidas por estados e municípios e sim como controlador. O governo federal passa assim a ter um o controle operacional sobre a segurança pública no país, o que é inviável em um país com a dimensão do Brasil e tamanhas diferenças regionais. Uma proposta que tem a ver mais com centralização de poder do que com efetividade de ações.
Outra preocupação surgida com o novo decreto diz respeito aos dados relacionados às mortes decorrentes de intervenções policiais (MDIP). Conforme previsto na norma, as MDIP serão somadas à categoria geral de homicídios, o que irá impossibilitar o acompanhamento da letalidade policial. Em um país como o Brasil, que tem uma das maiores, senão a maior, taxas de MDIP no mundo, a ausência desses dados traz um apagão de informações que pode servir de incentivo ao aumento da letalidade policial, que já vem crescendo conforme mostra o anuário de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo dados recolhidos pela ong, entre 2019 e 2020 o aumento foi expressivo em alguns estados, como Mato Grosso (76%), Pernambuco (56,6%), Rio Grande do Sul (48,9%) e Tocantins (48,4%).
Temas como reformas nas carreiras, ciclo completo e valorização profissional também não constam na norma e conceitos como polícia de proximidade e policiamento comunitário deixaram de ser um dos focos em termos de políticas públicas, muito em razão dessa centralidade do governo federal na construção das políticas.
Ao examinar as mudanças introduzidas pelo decreto fica claro que o governo Bolsonaro não tem real interesse em implementar uma Política Nacional de Segurança Pública que tenha como objetivo encarar os desafios que a sociedade enfrenta. Persiste a política de armamento da população, não prevê reformas nas instituições policiais, não busca a valorização dos profissionais da segurança, deixa de lado políticas que comprovadamente funcionam como policiamento comunitário e insiste no apoio à letalidade como se segurança pública se resolvesse somente através de confrontos armados. Ao apostar no que comprovadamente não funciona e na centralização de decisões, indo inclusive contra o que prevê a lei que criou o SUSP, o governo Bolsonaro deixa claro que para ele, segurança pública se resume a “tiro, porrada e bomba”.
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Sobre o autor

Roberto Uchôa

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