Mais armas e menos controle, é isso que queremos?
Roberto Uchôa - Atualizado em 20/02/2022 12:39
Um homem morto porque outro se assustou e achou que era um assalto, uma mulher baleada diversas vezes dentro do carro pelo próprio marido, discussão entre comerciante e agricultores acaba em tiroteio com mortos, briga no trânsito termina com dois jovens deitados no asfalto enquanto um homem os ameaça com arma de fogo, médico foi armado ameaçar funcionários de uma pizzaria por conta do atraso do seu pedido. Todos esses casos recentes de violência tiveram algo em comum, pessoas portavam armas de fogo adquiridas legalmente. Nos últimos anos o número de armas em circulação cresceu de forma expressiva e cenas como essas têm se tornado cada vez mais comuns pelo país, e o quadro pode piorar. Está para ser votado um projeto de lei apresentado pelo governo Bolsonaro que afrouxa ainda mais o controle sobre a circulação de armas e munições.

O projeto de Lei nº3723/2019, em tramitação no Senado Federal, é considerado por pesquisadores e especialistas em segurança pública um dos maiores retrocessos no controle de armas de fogo e munições no país nos últimos anos. Apresentado pelo poder executivo em junho de 2019, tem como objetivo mudar o estatuto do desarmamento e dar legalidade a diversas modificações feitas por Bolsonaro que são contestadas no Supremo Tribunal Federal e irão a julgamento. Com a desculpa de trazer maior segurança jurídica aos interessados nessas modificações, os CACS (caçadores, atiradores e colecionadores), o que há realmente por trás desse projeto é um afrouxamento ainda maior no controle sobre armas e munições e uma permissão para que mais de meio milhão de pessoas possam andar armadas pelas cidades.

Prevendo diversas modificações e com o claro objetivo de agradar uma das bases mais fiéis ao bolsonarismo, o projeto promove mudanças na legislação que terão um grave impacto na segurança pública de toda a sociedade. Uma das alterações que mais preocupa é a previsão da eliminação da marcação de munições, inclusive para as das forças de segurança, bem como o fim da exigência de dispositivo intrínseco de segurança e de identificação das armas de fogo. Previsto no artigo 4º das disposições finais e transitórias do projeto, essa possibilidade fez com que o Ministério Público Federal emitisse nota alertando que essa medida impactaria diretamente as dinâmicas criminais, dificultando o trabalho das polícias e do MP na investigação de crimes.

Para exemplificar o perigo, o rastreamento dos projéteis que foram usados para matar a juíza Patrícia Acioli, em 2011, em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, levou a polícia aos assassinos. Na cena do crime, foram apreendidos cartuchos do lote ADA43, calibre 40, vendidos à PM do Rio em 2009. Como essa munição foi distribuída a apenas dois batalhões no estado, foi possível reduzir o número de investigados e assim chegar aos autores que eram policiais militares lotados no 7º BPM, de São Gonçalo. Sem a marcação dos projéteis, a investigação teria sido muito mais complicada e talvez até hoje o crime estivesse sem solução.


Levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz comprovou que nos últimos 8 anos um bilhão e meio de munições foram vendidas no país e apenas 30% receberam marcação para possibilitar o rastreamento. O restante não tem qualquer marcação no cartucho que possibilite a identificação do comprador ou como o material chegou até ele, o que dificulta muito o trabalho da polícia. Enquanto o número de munições vendidas aumentou cerca de 40% nesse período, os lotes com marcação individual se tornaram cada vez mais raros. Em 2010 foram vendidas 143.000.000 de munições no mercado legal e em 2018 esse número aumentou para 195.700.00 e as marcações apareceram em apenas 26,3%.

De acordo com a legislação atual, somente os órgão públicos têm a obrigatoriedade de usar munição numerada, o resto do material vendido não segue essas regras. Portanto, o que o projeto de lei 3273/19 prevê é que nem as munições vendidas a órgão de segurança tenham essa marcação e isso é criar um apagão completo na circulação de munições no mercado legal. E isso é alarmante diante de outra pesquisa que comprovou que cerca de 42% dos projéteis encontrados em locais de crime são fabricados no Brasil.

Ainda na parte de munições, outra medida que provoca preocupação é a autorização automática para recarga caseira de munição para todos os CACs. Atualmente há mais de 450 mil pessoas físicas registradas nas categorias de CACs, ou seja, com o proposto no projeto, seriam autorizadas 450 mil fábricas caseiras de munições, expondo vizinhos a riscos de explosão e pondo fim ao já deficiente sistema de rastreamento.

Sem a identificação dos cartuchos, depois de recarregados e prontos para uso, fica impossível ter qualquer controle. O projeto ainda tenta uma simulação ao limitar a recarga para munição ao lote adquirido pelo interessado, no entanto, como não há marcação de lotes vendidos para pessoas físicas no Brasil, é uma medida inócua. Caso o projeto seja aprovado e entre em vigor, as maiores beneficiadas seriam as organizações criminosas e aqueles com objetivo de desviar esse tipo de material para o crime.

Porém, um dos argumentos centrais daqueles que defendem essas mudanças é de que armas e munições adquiridas legalmente dificilmente são utilizadas em crimes ou desviadas para o mercado ilegal, afirmação que não encontra respaldo na realidade. O acesso desmedido a armamentos de uso restrito, quantidades de munição injustificáveis para a prática esportiva idônea e responsável, e até mesmo a recarga de munições, levam criminosos a usar privilégios concedidos aos CACs para acessar grandes arsenais e armas de uso restrito.
São incontáveis casos de roubos e desvios de armas e munições de clubes de tiro e CACs para o crime organizado. Dentre os casos de grande repercussão, destaca-se a prisão de Ronnie Lessa, acusado pelo assassinato de Marielle Franco, que era atirador desportivo e acusado de usar autorizações de importação para traficar fuzis. O de Levi Adriani, apontado pelo Ministério Público como integrante da cúpula do PCC e responsável por lavar dinheiro e guardar armas para a facção no Paraguai, também tinha registro de CAC. E o mais recente, de janeiro deste ano, Vitor Furtado, registrado como CAC, foi preso por fornecer armas e munições adquiridas legalmente para a maior facção criminosa do Rio de Janeiro.

Não faltam casos notórios de desvios de armas e munições para o crime e a impossibilidade de rastreamento irá facilitar ainda mais ações como essa. Investigações em andamento apontam que milicianos também têm se registrado como atiradores desportivos para aproveitar as facilidades oferecidas pelo governo para adquirirem mais armas, pólvora e munições. Levantamento feito em Tribunais de Justiça pelo país aponta que CACs têm atuado como armeiros, e fornecedores de armas e munições para organizações criminosas. Em Natal, RN, o atirador Makson Felipe de Menezes Pereira, o “Playboy das Armas”, é réu por fornecer fuzis, que ele comprava legalmente, para quadrilhas que realizam ataques a carros fortes no estado.

Outro problema apontado por especialistas e também em Nota Técnica elaborada pelo Instituto Igarapé juntamente com o Instituto Sou da Paz, diz respeito à previsão que define as atividades de caça, tiro desportivo e colecionamento (“CACs”) como “direito de todo cidadão brasileiro” (Art. 21-B). Segundo a nota: “O projeto literalmente define como “direito de todo cidadão brasileiro” as atividades de tiro desportivo, colecionamento e o registro de armas para caça (atividade que é proibida no país, salvo em casos excepcionais). Além disso, em vez de um limite máximo de aquisição de armas de fogo pelos atiradores, o projeto estabelece apenas um limite mínimo de compra. Na prática, isso significa que os limites de aquisição poderão ser maiores do que aqueles previstos hoje em decreto presidencial (60 armas, sendo 30 de calibre restrito) e que são questionados no STF.”

O projeto também atende a uma demanda histórica dos CACs que é relacionada ao porte. Na prática, o PL 3.723/2019 garante a possibilidade do porte de armas para todos os atiradores desportivos com mais de 5 anos de registro e uma arma no acervo. Além disso, permite que o atirador possa circular com sua arma em qualquer horário e trajeto, indo na contramão da proibição do porte de arma de fogo no país. Essa autorização em nada se relaciona a qualquer atividade desportiva ou de lazer, e configura um porte de arma camuflado aos quase meio milhão de atiradores registrados no país.

O objetivo do governo é colocar em lei algo que foi permitido pelo Exército e é criticado por não ter fundamentação legal. De 2004 a 2017 os atiradores iam e voltavam dos clubes de tiro com suas armas guardadas e sem munição. Somente no local ela poderia ser utilizada. Em 2017 o Exército criou a possibilidade do chamado “porte de trânsito” que foi permitir que o atirador vá e volte do clube com a arma municiada e pronta para uso, sendo um porte de arma “camuflado”. Portanto, o que Bolsonaro busca com a mudança legislativa é que esse porte seja legal e que meio milhão de pessoas possam circular armadas.



Durante as pesquisas para o livro “Armas para Quem? A busca por armas de fogo “ ficou evidente que a busca por clubes de tiro aumentou de forma significativa desde a aprovação do “porte de trânsito” pelo Exército. Segundo a pesquisa, realizada em 2019 com atiradores, 50% dos que responderam afirmaram que tinham no máximo dois anos de filiação aos clubes e 91,9% concordava que houve aumento na procura por clubes de tiro. Já sobre o porte de armas, 12,5% deles afirmaram que andavam armados mesmo quando não estavam indo ou voltando da prática do esporte, ou seja, estavam cometendo o crime de porte ilegal de arma de fogo, um percentual que parece ser bem maior do que o respondido na pesquisa.

Em uma demonstração do apreço que Bolsonaro tem pela categoria e como forma de proteção a esse público, o projeto prevê que para ter acesso aos bancos de dados que contenham informação de acervo de CACs (suas armas), o servidor credenciado terá que motivar o ato em registro prévio. Ou seja, para investigar alguém que teria acesso a arsenais de, no mínimo, 16 armas, acesso à recarga de munições, entre outras prerrogativas, o policial teria que explicar porque pretende obter informações do arsenal. Mais uma medida que parece ter como objetivo dificultar o trabalho de instituições como polícia e MP.

Em contrapartida, os defensores do projeto alegam que a violência por armas de fogo tem diminuído justamente porque mais armas estão sendo vendidas e utilizam os dados de quedas do número de homicídios para isso. No parecer do PL 3.723/2019, o senador Marcos do Val indica erroneamente a redução dos homicídios em 2018 e 2019, quando comparados a 2017, como uma evidência de que o aumento do acesso às armas não representou um retrocesso para a segurança no país. Só esqueceu de citar que o uso de armas de fogo para cometimento de homicídios aumentou de 70%, para 78% dos homicídios em 2020 e que mesmo diante da pandemia o número de homicídios voltou a subir 5% em 2020, voltando a cair em 2021.

Fazer esse tipo de relação em espaço tão curto de tempo demonstra o desprezo por um trabalho de pesquisa sério e comprometido com a realidade. O economista e cientista de dados Thomas Victor Conti, professor do Insper e do Instituto de Direito Público (IDP-SP), realizou em 2017 uma revisão de estudos acadêmicos intitulada "Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes". Ele concluiu que 90% das revisões de literatura são contrárias à tese "mais Armas, menos Crimes". Outro estudo, considerado um dos mais abrangentes sobre o tema, foi uma pesquisa desenvolvida por John J. Donohue (Universidade de Stanford), Abhay Aneja (Universidade da Califórnia) e Kyle D. Weber (Universidade de Columbia) estimou que a taxa de crimes violentos aumentava entre 13% e 15%, em dez anos, nos estados norte-americanos que possuíam legislações flexíveis ao acesso à arma de fogo. Na verdade, segundo especialistas em segurança pública, as recentes variações nas taxas de homicídio no Brasil tem maior relação com ações estaduais e nas dinâmicas de enfrentamento entre as facções criminosas.

Nenhuma categoria esportiva ou profissional está completamente livre de pessoas de má-fé e/ou que podem ter momentos de omissão ou de irresponsabilidade. Isso acontece nas polícias, no sistema judiciário e também entre os CACs. Porém, devido à sensibilidade do material envolvido e o impacto que isso pode causar na segurança pública, a regulamentação dessas atividades precisa ter regras compatíveis com o potencial de dano coletivo e regras que facilitem a identificação e responsabilização das pessoas envolvidas em ações criminosas ou omissas. O projeto amplia o acesso a armas e munições ao mesmo tempo em que fragiliza os instrumentos de fiscalização e controle existentes atualmente.

É importante lembrar que armas têm valor e alta demanda no mercado do crime, e muitas pessoas se beneficiam do acesso facilitado a elas para revendê-las a criminosos. Exemplos não faltam. Uma lei tão central para a segurança e democracia brasileiras não pode se basear em crenças irrestritas na boa ou má-fé das pessoas. Aumentar a oferta para o mercado ilegal e extinguir os mecanismos de controle e rastreamento de armas e munições é ir na contramão do que a sociedade precisa: o compromisso tem que ser com a redução dos riscos de desvios, que colocam em xeque a segurança pública. Os benefícios a uma categoria não podem causar prejuízos para toda a coletividade. Na tentativa de agradar sua base fiel, Bolsonaro parece ter esquecido que deve governar para toda a sociedade. A esperança é que os senadores se lembrem disso e votem pela rejeição a esse retrocesso.

Roberto Uchôa é policial federal, mestre em sociologia política, especialista em gestão de segurança pública, pesquisador do NUC/UENF, associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do Livro “Armas para Quem? A busca por Armas de Fogo”.
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