Profissionalização dos mercados ilegais e redução dos homicídios
Roberto Uchôa 27/03/2022 11:14 - Atualizado em 27/03/2022 11:22
No final de fevereiro, o Monitor da Violência (parceria entre o portal de notícias G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP) divulgou os números de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) de 2021. No ano passado, foram registrados 40.010 homicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais seguidas de morte. Uma queda de 7,5% em relação a 2020. É o menor número desde 2007 quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar e compilar esses dados.
A taxa de homicídios ficou em 19,2 vítimas a cada 100 mil habitantes, retomando uma trajetória de queda que vinha desde 2017. Essa redução deve ser comemorada, mas também analisada com atenção e cuidado. A variação do número de mortes violentas intencionais é um fenômeno complexo e sofre influências de diversas causas, o que torna qualquer explicação simplificada um equívoco.
Um exemplo disso ocorreu no mesmo dia em que foi anunciada a queda nas taxas. O governo federal rapidamente se adiantou em assumir o crédito pelo resultado. Nas redes sociais, o presidente da República e outras autoridades federais passaram a afirmar que a queda era consequência da política de ampliação das armas de fogo. Esqueceram, entretanto, de lembrar que há uma tendência de queda verificada desde 2017. E que, em 2020, já na vigência da política armamentista do atual governo, o país registrou aumento de 4,1% em relação ao ano anterior, mesmo em meio a uma pandemia.
Avaliar políticas públicas de maneira superficial, sem rigor metodológico, faz parte do discurso político. O governo Bolsonaro não é o primeiro e nem será o último a fazer isso. Análises sérias e baseadas em evidências é trabalho para pesquisadores e acompanhar as variações dessas taxas ao longo do tempo permite a identificação de padrões importantes. Afinal de contas, a queda das mortes violentas letais intencionais precisa ser entendida para que o desempenho possa ser repetido nos próximos anos.
Uma das principais razões que tem sido apontadas por pesquisadores e que explicaria a melhora do cenário no último ano, é a profissionalização do mercado de drogas brasileiro e a consequente redução do conflito entre facções que chegou a patamares muito elevados em 2017. Naquele ano, três rebeliões sangrentas ocorreram dentro de presídios logo em janeiro, decorrente de um racha entre duas das maiores facções nacionais.
Os conflitos e a rivalidade entre esses grupos criminosos transcenderam os muros das prisões e chegaram aos territórios de muitos estados brasileiros, levando aquele ano a encerrar como o mais violento da história, desde que os registros de homicídios começaram a ser nacionalmente sistematizados, no final dos anos 70.
"Entre 2016 e 2017 vivemos uma guerra entre dois grupos criminosos, o PCC e o Comando Vermelho, e essa guerra se alastrou por todo o país, especialmente em estados do Norte e Nordeste. A gente tem um apaziguamento desse conflito em alguns territórios e, em outro, tem um certo monopólio de algum grupo. Quando um grupo único vai se consolidando no território, tende a reduzir o conflito", disse Samira Bueno, do FBSP em entrevista para o portal de notícias G1.
Marcelo Camargo/Agencia Brasil

As disputas por mercados ilegais, comércio de drogas, consumidores e rotas para o tráfico por grupos criminosos rivais tendem a ser mais violentas, instáveis e ocasionar um aumento nas taxas de homicídios. Enquanto isso, mercados criminosos equilibrados, com competidores que aprenderam a conviver entre si ou que descobriram formas de regulamentar a relação entre eles, tendem a reduzir o total de conflitos fatais. Os primeiros, aumentam custos e diminuem os lucros dos participantes. Os segundos, favorecem os ganhos e diminuem seus riscos.
O melhor exemplo no país de mercado pacificado e com controle único é o do estado de São Paulo. Desde o começo dos anos 2000 a cena criminal no estado se tornou mais profissional e lucrativa para os criminosos porque o PCC (Primeiro Comando da Capital) passou a estabelecer uma série de regras para reduzir os riscos e aumentar os lucros. Com isso, entre 2000 e 2021 houve uma redução de 80% nas mortes violentas intencionais.
Criado no interior de uma prisão, o PCC se expandiu por todo sistema penitenciário paulista e montou uma estrutura de controle nas prisões e nos bairros. Para tanto utilizavam um eficiente argumento: os homicídios entre criminosos aumentavam os riscos e os prejuízos dos empreendimentos criminais, facilitavam o trabalho da polícia e da justiça e criavam um ambiente de imprevisibilidade, prejudicial aos negócios.
Segundo o jornalista, pesquisador e escritor Bruno Paes Manso, autor do livro "A Guerra – ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil", esse processo de profissionalização da cena criminal paulista, organizado a partir da ideia de que “o crime fortalece o crime”, permitiu ao PCC se estruturar nacionalmente e dar passos importantes rumo ao mercado atacadista de drogas, alcançando as fronteiras da América do Sul. A existência de regras e a criação de uma ampla rede de parceiros, que se expandiu com os contatos com criminosos de outros estados feitos nos presídios federais, ajudaram o grupo a se tornar um importante distribuidor de drogas e de armas para quadrilhas de outros estados transformando o mercado de drogas brasileiro, que passou a replicar o modelo criminoso paulista, se organizando a partir dos presídios estaduais.
Ao mesmo tempo em que levava mais armas, drogas e mercadorias ilegais para outros estados, ampliando sua participação, o PCC criava diversas rivalidades estaduais e resistências à sua influência. Dessa forma, no mesmo período em que o grupo se tornava hegemônico em São Paulo, contribuindo para profissionalizar o crime, reduzir os conflitos e aumentar os lucros no estado, a facção ajudava a exportar violência e homicídios para o resto do Brasil.
A partir de 2018, contudo, depois do recorde de homicídios de 2017, esses conflitos regionais entre as gangues prisionais passaram a diminuir, contribuindo para iniciar uma tendência de queda no número de mortes violentas ainda no final da presidência de Michel Temer, continuando nos três anos de Jair Bolsonaro, que até agora não elaborou nenhuma política de segurança pública consistente, a não ser a flexibilização da venda de armas e de munições.
As tréguas entre os grupos, inclusive, eram de interesse dos próprios criminosos, que a despeito das questões relacionadas a honras territoriais, aceitavam dar um passo atrás para ganhar mais dinheiro e diminuir os riscos de terem suas lideranças punidas nos presídios. Os conflitos foram arrefecendo nesse ambiente de negócio criminal mais pragmático e a redução continuou nos anos seguintes.
Isso não significou, contudo, a diminuição das atividades criminosas, que seguiram se expandindo e diversificando suas receitas e ampliando seus lucros. Além do tráfico, roubos planejados a estabelecimentos bancários ou empresas de transporte de valores passaram a ser mais comuns nesse cenário de maior profissionalismo. O dinheiro passou a ser investido em outros negócios ilegais lucrativos, como a extração de madeira e o garimpo. Atividades ilegais que têm tido um crescimento vertiginoso diante da diminuição da fiscalização ambiental pelo governo federal
Apesar dessa efervescência, o que se viu é um ambiente mais profissionalizado e por isso mais lucrativo e influente. Essa tendência à diplomacia entre os criminosos, no entanto, não impede a emergência de conflitos regionais, mesmo que isolados, que ficam sujeitos a desacordos e disputas entre rivais, como ocorreu no Ceará em 2020, quando os Guardiões do Estado e o Comando Vermelho iniciaram um conflito territorial sangrento que ajudou a elevar os homicídios naquele ano para 44 por 100 mil habitantes, crescimento de quase 80% em relação ao ano anterior. Em 2021, o total diminuiu para 35,7 por 100 mil, ainda elevado, mas menos intenso que no ano anterior.
FBSP

Dinâmica de acirramento de conflitos também foi verificada na região da Floresta Amazônica. Dos seis estados que registraram aumentos nas taxas de homicídios, quatro (Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima) ficam na Amazônia Legal. A fragilização da fiscalização das atividades ilegais realizadas na floresta durante o governo Bolsonaro, como garimpo, grilagem e corte de madeira, por exemplo, incentivou o ingresso de capital criminal nesses negócios, acirrando rivalidades e criando instabilidade na cena local. O aumento do desmatamento e das queimadas, nesse sentido, vieram junto com o novo capital das drogas e com o crescimento de homicídios.
O cenário da violência na região Norte vem se tornando um ponto de atenção central, dado o incremento de conflitos por disputas de terras e riquezas do solo, como madeira e terra, além da intensa presença de facções do crime organizado e de disputas entre elas pelas rotas nacionais e transnacionais de drogas que cruzam a região. Em conjunto, esses fatores têm contribuído para a elevação das taxas de homicídios e mortes violentas intencionais no Norte, conforme se apurou na publicação do FBSP “Cartografias das violências na região amazônica”.
Finalmente, e não menos importante, essa tendência de queda pode ocorrer a despeito do aumento da venda de armas e munições no mercado. As armas e munições legais e ilegais, que são desviadas e ingressam no mercado do crime, não causam, isoladamente, variações nas taxas. Elas tendem a aumentar os homicídios circunstanciais, em bares, boates e no trânsito, por exemplo, e os feminicídios. Mas não afetam necessariamente as dinâmicas criminais nos estados. No Brasil, quase 80% dos homicídios são cometidos com armas de fogo.
Um dos exemplos de como a proliferação de armas na sociedade pode aumentar as mortes circunstanciais foi o homicídio do jovem Ailson Augusto Ortiz, de 21 anos, em Cascavel/PR, na quinta-feira (24). Após uma discussão em razão de uma fechada no trânsito, Ailson e o motorista do outro veículo envolvido foram se enfrentar e o motorista disparou três tiros em Ailson. Segundo investigadores informaram, o autor dos disparos seria CAC e teria arma para prática de tiro desportivo, não possuindo porte de armas de fogo para defesa pessoal.
O que se verifica é que a facilidade de acesso e abundância de armas de fogo em determinado espaço faz com que o instrumento seja um catalisador de violência letal. Em outras palavras, a mera presença de armas na sociedade não pode ser considerada um fato gerador de homicídios, mas, ao ser associada a outros fatores sociais, impulsiona eventos letais e delituosos.
A diminuição dos homicídios sempre é uma boa notícia, porém, o país ainda se encontra em patamar muito elevado de mortes violentas em comparação com o cenário mundial. É importante que se compreenda melhor os fatores explicativos para a queda, que estão vinculados a variáveis diversas, mas principalmente às dinâmicas próprias do crime organizado. Entender esse cenário e elaborar políticas públicas voltadas para a redução sustentada dos homicídios é o caminho para que a notícia de que há menos mortes violentas no país deixe de ser apropriada por quem pouco ou nada fez para esse resultado, para se tornar consequência de uma política pública consolidada e sistemática de priorização do combate à violência letal no Brasil.
Roberto Uchôa é policial federal, mestre em sociologia política, especialista em gestão de segurança pública, pesquisador do NUC/UENF, associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do Livro “Armas para Quem? A busca por Armas de Fogo”.
Facebook www.facebook.com/uchoaroberto
Instagram @robertouchoaoficial
Twitter @uchoafederal
email [email protected]

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Roberto Uchôa

    [email protected]