Armas legais no submundo do crime
Roberto Uchôa - Atualizado em 30/01/2022 12:17
Divulgação
Na última semana foi notícia a prisão de Vitor Furtado Rebollal Lopes, conhecido como Bala 40. Ele estava sendo investigado por tráfico de armas e foi apontado como fornecedor de armamento para traficantes do Comando Vermelho. O criminoso foi detido em Goiás por policiais civis do Rio de Janeiro e com ele foram encontradas 10 mil munições para fuzis e 1 mil para carabinas. Em uma residência de Vitor, no Grajaú/RJ, policiais encontraram 55 armas guardadas que tinham como destino a citada facção criminosa. Dentre o armamento, havia 26 fuzis e 21 pistolas, com valor estimado em quase R$2 milhões. Segundo os investigadores, Vitor tinha registro de CAC (colecionador, atirador e caçador) emitido pelo Exército brasileiro e adquiria legalmente armas e munições para serem revendidas para criminosos. Esse seria apenas mais um caso de desvio de armas legais para o crime, mas o que chamou atenção da polícia foi a grande quantidade de armas adquiridas e como isso não acendeu o alerta dos militares, responsáveis pela fiscalização dos CACs.

A conexão entre os mercados legal e ilegal de armas de fogo sempre foi motivo de preocupação para quem estuda as relações entre armas e violência. Seja por furtos, roubos ou desvios, o uso de armas legais no cometimento de crimes é uma realidade, que apesar de ser conhecida, ainda é muita negada por muitos. Historicamente, o país exerceu pouco controle sobre o mercado de armas de fogo e isso só mudou depois que a quantidade de homicídios por armas tornou- se uma epidemia.
Durante as décadas de 80 e 90 o crescimento de homicídios foi alarmante e o uso de armas de fogo se tornou cada vez maior. Se no início dos anos 80 cerca de 40% dos homicídios foram cometidos com uso de armas de fogo, no final da década de 90 esse percentual chegava a mais de 70%. Em 20 anos o país passou de 13.000 para 45.000 mortes anuais. As autoridades sabiam que a quantidade de armas de fogo em circulação na sociedade era grande, porém, havia a crença de que as armas utilizadas em crimes eram fruto de contrabando.

Isso mudou a partir de uma pesquisa realizada pelo movimento Viva Rio. Entre 1999 e 2001 pesquisadores tiveram permissão para fazer um cadastramento das armas apreendidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e com a análise de cerca de 200.000 delas, descobriu-se que 75% das armas utilizadas em crimes haviam sido fabricadas no Brasil. O revólver, calibre 38, da Taurus, era a arma mais utilizada na prática desses crimes.

Diante da pressão da sociedade civil por mudanças, foi promulgado em 2003 o estatuto do desarmamento. Ao impor requisitos objetivos e subjetivos para aquisição de armas e munições, criando limites a esse comércio, a legislação tinha como objetivo a regulação do mercado. No entanto, armas de fogo são bens de longa duração, e havia muitas armas em poder da população. As novas armas seriam registradas, porém, grande parte que já estava em circulação continuava no limbo.

Além dessas armas que permaneciam ocultas para as autoridades, outra preocupação surgiu com a divulgação do relatório da CPI das Armas realizada na ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) em 2015. O relatório apontou que o número de armas furtadas ou roubadas de empresas de segurança privada, assim como de instalações militares e polícias era preocupante, cerca de 18% das armas apreendidas. Outro dado confirmado é de que 68% das armas tinham sido legais em algum momento, confirmando essa forte conexão entre os mercados legal e ilegal. Além das armas que o governo não conhecia, o poder público estava perdendo também as armas que tinha sob seu controle.

O problema não era restrito somente às armas de fogo. Outra parte relevante desse mercado permanecia nas sombras, a venda de munições. Segundo levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz sobre munições apreendidas em locais de crime, no ano de 2014, no Rio de Janeiro, 42% delas eram fabricadas pela CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), principal fabricante desse tipo de material no país. O desvio de munições também se tornou um grande problema nos últimos anos e as dificuldades de rastreamento paralisaram investigações.

Segundo inquéritos policiais, munição desviada das forças de segurança foi utilizada em pelo menos dez ações criminosas na última década, resultando em 20 homicídios. Nas cenas desses crimes foram encontrados projéteis adquiridos pelas polícias civil e militar do RJ, pela secretaria de administração penitenciária, pela Polícia Federal, pela Polícia Rodoviária Federal e pelo Exército. Um dos casos mais conhecidos é o da então vereadora Marielle Franco, que foi atingida por munição adquirida pela Polícia Federal e desviada. Até hoje não se sabe como nem quando aconteceu o desvio.

Apesar das evidências que o controle sobre o comércio de armas e munições não é suficiente, e de que material legalmente vendido tem sido direcionado de várias formas para o mercado ilegal, desde o início do governo Bolsonaro mais de 30 medidas foram editadas com o objetivo de diminuir ainda mais o pouco controle existente. Como meta aumentar o acesso a grandes quantidades de armas e munições, essas medidas permitiram que cidadãos possam comprar armas que antes eram restritas às forças de segurança, como, por exemplo, as pistolas calibre 45, 9mm e os fuzis semi automáticos.

Simultaneamente, o governo tem atuado deliberadamente para diminuir a capacidade do Estado de controlar os arsenais, de maneira a evitar os riscos de que eles sejam desviados para a ilegalidade e usados para o cometimento de crimes. Três portarias do Exército que previam medidas para melhorar capacidades do Estado de fiscalização dos chamados produtos controlados, que incluem armas, munições e explosivos, chegaram a ser revogadas a pedido da Presidência, tendo se tornado alvo inclusive de questionamento judicial no STF.

Enquanto isso, algumas mudanças direcionadas aos CACs (Caçadores, atiradores e colecionadores), base fiel ao bolsonarismo, chamam a atenção. A ampliação dos limites de aquisição de armas e munições para caçadores (de 12 armas e seis mil munições para 30 armas e 90 mil munições), atiradores desportivos (de 16 armas e 60 mil munições para 60 armas e 180 mil munições) e colecionadores (um exemplar de cada modelo no acervo para cinco exemplares, sem limites de armas). Verdadeiros arsenais cada vez menos controlados pelo Estado.

Desde o início do governo, o número de armas em poder da sociedade aumentou 65%. Enquanto em 2017 eram autorizadas aquisições de 43 armas por dia pela Polícia Federal, em 2020 esse número pulou para 378. Ao mesmo tempo, os recursos empregados pelo Exército vêm diminuindo. Segundo levantamento feito pelo Instituto Igarapé os valores direcionados ao Exército para operações de fiscalização de lojas de produtos controlados, de clubes de tiros e de colecionadores, caçadores e atiradores (CACs) apresentou queda nos dois primeiros anos do atual governo. Em 2020, o montante foi de R$ 3 milhões, 15% a menos do que em 2018 e 8% a menos do que em 2019. A diminuição contrasta com o período anterior ao atual governo: de 2016 a 2018, a verba cresceu 18%. Assim como o orçamento, o efetivo alocado nesses eventos também sofreu redução. Em 2020, 2.121 militares atuaram em operações de fiscalização, número 28% menor que em 2018 e 54% menor que em 2019. Enquanto isso, o número de pessoas registradas como CACs disparou.

Comparado a dezembro de 2018, período imediatamente anterior ao início do governo do presidente Jair Bolsonaro, o aumento de certificados para essas categorias é alarmante. O crescimento de certificado de registro ativos de atiradores foi de 161%, de caçadores, de 219%, e de colecionadores, de 228%. No ano de 2020 foram 567 novos registros de CAC por dia e em 2021 esse número mais que dobrou para 1.162. Essa expansão ocorre sem que haja um controle dos acervos. Apesar dos casos noticiados de desvio de armas de pessoas registradas nas categorias em questão para a criminalidade, dados do próprio Exército Brasileiro mostram que em 2020 ele só efetuou visitas de fiscalização em 2,3% do acervo de caçadores, atiradores, colecionadores, clubes e entidades de tiro que devem ser fiscalizados.

A conexão entre os mercados legal e ilegal sempre existiu e com o aumento da violência armada passou a ser uma preocupação. Mudanças legislativas foram feitas, mas mesmo assim não foi o suficiente. Com a ascensão de Bolsonaro ao poder, o que deveria ser melhorado e modernizado passou a ser desmontado. O descontrole passou a ser o objetivo e o acesso às armas de fogo foi facilitado. Qualquer norma ou projeto que tivesse o objetivo de possibilitar o rastreamento ou controle sobre armas e munições foi arquivada ou revogada.

Com a retorno dos trabalhos no Congresso Nacional voltará a ser analisado no Senado Federal o projeto de Lei 3.723/2019 que pretende alterar o estatuto do desarmamento. Principal bandeira da chamada bancada da bala. O projeto tem como principais pontos a extinção de marcação de munições e liberação de porte de armas para os CACs, que nos últimos três anos passaram de 167.390 para 491.771 pessoas com registro. O projeto permite que quase meio milhão de pessoas andem armadas pelas ruas das cidades.

O próprio presidente tem repetidamente afirmado que seu desejo era e continua a ser armar a população, como na famosa reunião ministerial de abril de 2020. Não para que se defendam de criminosos, mas para que resistam ao próprio Estado. De uma forma perversa parece que o objetivo está sendo alcançado. Mas quem vai resistir ao Estado não será a população de bem e sim os criminosos que estão se aproveitando dessas facilidades para adquirir fuzis no mercado interno. Ao invés de evitar que armas e munições sejam desviadas para o crime, o governo tem feito justamente o oposto. Traficantes e milicianos agradecem.

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