Arthur Soffiati - O essencial e o secundário
Arthur Soffiati - Atualizado em 05/01/2022 16:40
Antes de picar a pessoa, uma cobra venenosa não pergunta se ela é de direita ou de esquerda. Depois da picada, seja qual for a posição política da vítima, seja qual for a sua religião, a pessoa deve procurar um posto de saúde para tomar um soro antiofídico apropriado. Se chuvas e secas destruidoras se tornam frequentes no mundo, cabe desconfiar de algum desequilíbrio. Se um cometa está em rota de colisão com a Terra sem que nenhuma providência seja tomada dentro das possibilidades disponíveis pela humanidade, o choque extinguirá a vida na Terra ou, ao menos, provocará uma destruição colossal. Grandes conquistas feitas pela humanidade serão perdidas. Héteros, homos, outros gêneros, homens, mulheres, crianças, negros, animais de estimação, direitistas, esquerdistas, centristas morrerão, porque fenômenos naturais são cegos e nada seletivos. Eles atingem a todos indistintamente.
É o que procura mostrar o filme “Não olhe para cima”, com roteiro e direção de Adam McKay. Lançado no fim de 2021, o filme tem por alvo as polarizações correntes nos Estados Unidos: republicanos trumpistas x democratas; movimento Me Too x machistas; movimento negro x racismo; movimento LGBTQIA+ x homofóbicos etc. A cobra venenosa não reconhece essas diferenças. Pica qualquer um indistintamente. O cometa atinge a Terra e destrói todos, sem distinção de sexo, cor, idade, nacionalidade. Pior: nessa destruição, elimina a possibilidade de reprodução.
Claro que o cometa descoberto por uma doutoranda em astronomia é uma metáfora. Ela percebe que o rei está nu e convence seu orientador e um cientista da Nasa. O que se procura mostrar é que as questões essenciais passam a ser secundárias num mundo dividido entre esquerda e direita, entre negacionistas e aqueles que acreditam na ciência, entre pseudo-bruxas e caçadores delas. O essencial passa a ser relativizado com uma roupagem de espetáculo, de pirotecnia. Nada mais vale em si despido de maquiagem. É preciso criar um personagem para demonstrar ameaças reais.
Fui criado num mundo analógico em que as pessoas tinham mais contato com o real. Não era um mundo perfeito. Já eram usados os meios de comunicação social. Os políticos mentiam e roubavam. Os empresários usavam um discurso de bem-estar geral para auferir ganhos individuais. Mas, tocar uma pessoa num pique-cola ou bandeirinha era real. Saía sangue quando se cortava o pé numa pelada. Não se tratava de imagens virtuais vistas numa tela. Hoje, em jogos eletrônicos, podemos matar um monstro, um exército, uma pessoa. No mundo analógico, crescíamos com percepção mais apurada de nossos limites.
A passagem de um mundo analógico para um mundo virtual se acentuou na década de 1990. Os computadores se popularizaram nessa década. Pessoas da classe média podiam adquirir um e personalizá-lo. As redes sociais começaram timidamente com a internet. Rapidamente, os computadores pesados com pouca memória foram se tornando pequenos e ganhando memória. As redes sociais foram se sofisticando. Hoje, os computadores estão embutidos num celular, aparelho que pode ser transportado numa bolsa ou num bolso. Estamos entrando na era do 5G, em que o mundo real pode ser transformado em virtual. A ameaça de um cometa atingir a Terra vira jogo.
Tudo é moda passageira até na esfera intelectual. Os filósofos já vinham se tornando vedetes antes da era digital. Sartre falava para o mundo. Ninguém sabia direito o quê. Não importava. O que valia era sua boca pronunciando palavras. Idem com o estruturalismo. Hoje, há sempre intelectuais de plantão para opinar sobre diversas questões. Mas não é qualquer um. Eles precisam falar bem e de forma sintética. Durante o momento mais agudo da pandemia, ouvi uma pesquisadora entrevistada com os cabelos desgrenhados e sem nenhuma maquiagem. Na entrevista seguinte, ela já havia se preparado previamente num salão de beleza e apareceu penteada e maquiada. O essencial não pode ser divulgado por qualquer um. A pessoa deve estar apresentável. Revelar diante da TV que o mundo vai sofrer o choque de um cometa sem a devida maquiagem não vale muito. É preciso maquiagem, espetáculo.
O velho Marshal Mc Luhan, que também teve seu momento de fama, mas hoje já foi esquecido, dizia que o meio é a mensagem. Num celular não cabem mensagens explicadas. Então, escrevemos mensagens curtas com palavras abreviadas. Como quase todo mundo hoje tem um celular, as mensagens pululam. Mensagens curtas e mal formuladas, além de mal escritas, permitem que todos divulguem sua opinião. No passado, cada um podia externar sua opinião, mas ela ficava restrita. Hoje, elas têm grande alcance e causam imensa confusão, ódio e versões.

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