Perigo Federativo
14/01/2021 | 11h54
Está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei que visa alterar a organização das Polícias Militares no país. A proposta muda de forma drástica a estrutura do sistema federativo brasileiro, uma vez que reduz o poder dos governadores para controlar as polícias militares estaduais. Se isso já não fosse motivo suficiente para causar preocupação, o fato de o presidente Bolsonaro travar constantemente disputas políticas com governadores deixa o quadro ainda mais alarmante. Por contar com amplo apoio entre os policiais militares, principalmente os “praças”, Bolsonaro teria interesse direto nessa mudança, que enfraqueceria seus antagonistas e ao mesmo tempo os colocaria com o controle das Forças Armadas e das forças de segurança estaduais.
É verdade que há uma necessidade de atualização da legislação que organiza as diversas forças policiais no país. Com relação às Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros, estas são regidas pelo Decreto Lei 667/69, publicado ainda durante o período do regime militar. Nesses 50 anos o país passou por significativas mudanças sociais e políticas, enquanto isso pouco ou nada foi feito para ajustar a atuação das forças policiais a essa nova realidade. Não foi por falta de tentativas, pois diversos projetos de lei têm sido apresentados para reorganizar as polícias. Porém, o atual projeto, que foi elaborado com ajuda do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros parece ter como objetivo principal enfraquecer os governadores dando uma autonomia inconcebível para uma força armada.
O projeto diminui drasticamente os poderes de governadores sobre o comando das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros, uma vez que cria uma lista tríplice para a escolha de comandantes-gerais. O mandato dos comandantes seria praticamente fixo, pois os governadores teriam que justificar a exoneração do comandante-geral. Na prática, se um comandante discordar da política de segurança pública proposta pelo governador, ele poderá simplesmente ignorar e o projeto que foi eleito pode não ser colocado em prática. Um fato impensável para um país democrático.
São muitas mudanças detalhadas no texto, sendo que chamam atenção a criação da patente de general, tal qual nas Forças Armadas, a permissão de que militares indiciados em inquéritos policiais ou réus em processos possam ser promovidos, a promoção por bravura desde que seja comprovado risco real da própria vida, a equiparação salarial dos policiais militares com os militares do Distrito Federal, alterações na organização e competências da Justiça Militar e a ampliação das competências do Conselho Nacional de Comandantes Gerais de Polícia Militar.
Se aprovado do jeito que está, o projeto terá sérios impactos econômicos e políticos, principalmente no que se refere ao sistema federativo. Um traço marcante do federalismo brasileiro é a alternância entre períodos de centralização e descentralização. Nos períodos autoritários durante o Estado novo e o Regime Militar houve grande concentração de poderes políticos e de funções administrativas nos governos federais. Nos demais períodos, ocorreu o aposto, com maior descentralização e autonomia política dos Estados.
Historicamente as forças policiais no Brasil têm sido utilizadas nas disputas de poder. É sintomático que regimes autoritários queiram ter o maior controle possível sobre quaisquer instituições que atuem armadas, tanto polícias quanto Forças Armadas. Ao longo da história republicana brasileira, o sistema policial brasileiro acompanhou as oscilações da federação. Ora estavam submetidas ao poder central, ora serviam como garantia da liberdade e segurança das elites políticas estaduais. O interesse da sociedade sempre ficou em segundo plano no Brasil.
 
A constituição de 1934 criada durante o Estado Novo (1937-1945) colocou todo o aparato policial sob controle direto de Getúlio Vargas. As Polícias Militares foram transformadas em forças auxiliares do Exército que passou a nomear seus comandantes. Com relação às Polícias Civis, estas ficaram controladas pelo Ministro da Justiça, que aprovava as indicações de seus diretores gerais. Durante o regime militar (1964-1985), o aparato policial também esteve sob controle do Exército. As Forças Públicas foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares, que passaram a ser as únicas forças policiais destinadas ao patrulhamento ostensivo das cidades.
Com a redemocratização esse quadro voltou a ser alterado. A Constituição de 1988 assegurou que as polícias civis e militares ficariam sob o controle dos governadores, porém, ficou estabelecido que a sua organização e funcionamento seriam regulados por legislação federal. Na prática, os governadores recuperaram a prerrogativa de nomear os comandantes e chefes das polícias, mas lhes foi vedada a possibilidade de reestruturar individualmente o aparato policial. Isso tem servido como grande obstáculo à modernização das forças policiais.
Discutir a reorganização das polícias é fundamental. Mas é preciso ter muita cautela para não desequilibrar a federação brasileira. Ao invés de enfraquecer os governos estaduais, o correto seria permitir que estes pudessem modernizar as instituições de acordo com as peculiaridades de cada Estado da Federação. Se o projeto for aprovado da forma que está, os governadores não terão mais nenhum controle sobre as polícias estaduais e isso é perigoso. Afinal de contas, o sistema federativo é um dos principais mecanismos de freios e contrapesos da democracia. As aventuras autoritárias sempre começam pelo controle das polícias e das forças Armadas. Foi assim que aconteceu na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do regime bolivariano. O que ocorreu depois serve de alerta para o Brasil.
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Sobre o autor

Roberto Uchôa

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