Violência doméstica e armas de fogo: uma equação que preocupa
Roberto Uchôa - Atualizado em 06/02/2022 14:25
Essa semana foi notícia na cidade de Campos dos Goytacazes/RJ uma tentativa de feminicídio ocorrida em um estacionamento na região central. Uma mulher, de 46 anos, foi atingida por três disparos de arma de fogo e o principal suspeito é o companheiro da vítima, que fugiu do local e foi preso por policiais dias depois. A vítima foi operada e está em estado grave no hospital. Infelizmente esse caso não foi uma exceção, as ocorrências de violência doméstica têm sido cada vez mais comuns e há uma percepção de que aumentaram de forma significativa desde o início da pandemia de Covid19. Apesar desse caso específico ter ocorrido em área comercial, o padrão é que grande parcela dos casos ocorra nas residências, mostrando que não há local seguro quando se fala em violência contra as mulheres. Por isso, uma das grandes preocupações de quem estuda esse tema é o impacto que o aumento de armas de fogo em poder da população terá nesse contexto..

Ao longo de milênios a mulher foi tratada como objeto e propriedade dos homens. A submissão e a consequente violência era vista como algo natural, um direito do homem, seu senhor. Uma ofensa a ela era tratada como uma ofensa a seu senhor, que poderia ser seu pai ou seu esposo. Somente nos últimos anos as mulheres foram aos poucos conquistando diversos direitos, sempre com o objetivo de diminuir a desigualdade de tratamento com relação aos homens. Mesmo assim, as mudanças legislativas se mostraram mais fáceis do que as culturais, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil. Apesar da evolução na legislação, ainda está arraigada em parcela relevante da sociedade a noção de que a mulher é propriedade do homem que tem sobre ela todos os direitos. Além disso, vivemos em uma sociedade que possui um machismo exacerbado, onde é comum que filhos assistam seus pais agredirem fisicamente ou verbalmente suas mães, o que, de uma maneira indireta, acaba por perpetuar o ciclo de violência contra mulheres.

Uma das principais mudanças legislativas recentes foi a lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. Fruto de muita luta política, a legislação tem como símbolo a luta de Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de abusos cometidos por seu esposo durante 23 anos e foi alvo de duas tentativas de assassinato por ele. Após denunciar o marido, Maria da Penha tornou-se uma das principais ativistas por uma nova legislação que protegesse as mulheres. Com a previsão de medidas protetivas e de punições mais rigorosas para os autores, a nova legislação foi um importante marco na defesa das mulheres. Porém, apesar dessas inovações, as vítimas de violência doméstica ainda sentem uma grande dificuldade em denunciar, tendo em vista que muitas vezes o autor é o próprio companheiro, pai de seus filhos e o responsável pelo sustento da casa. É o que demonstra a pesquisa realizada pelo Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) em conjunto com o Instituto de Pesquisa DataSenado, realizada em 2018: “De acordo com a nova pesquisa, as vítimas muitas vezes deixam de denunciar a agressão por dependerem economicamente do autor da violência, por medo de não conseguirem sustentar a si e a seus filhos”.

Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre violência contra a mulher no Brasil, 44,9% das entrevistadas afirmaram que não fizeram nada em relação à agressão mais grave sofrida e que apenas 28,5% solicitaram apoio policial. Outro dado relevante encontrado é que 72,8% dos autores das violências sofridas eram conhecidos das mulheres, com destaque para os cônjuges/companheiros/namorados com 25,4%, ex-cônjuges/ex-companheiros/ex-namorados com 18,1%, pais/mães com 11,2%, padrastos/madrastas com 4,9% e filhos/filhas com 4,4%, indicando a alta prevalência de violência doméstica e intrafamiliar. Prova disso é que 48,8% das vítimas relataram que a violência mais grave vivenciada no último ano ocorreu dentro de casa, percentual que vem crescendo. A rua aparece em 19,9% dos relatos, e o trabalho como o terceiro local com mais incidência de violência com 9,4%. Para mulheres nem sempre a sua residência é o local mais seguro.

Outra conquista importante veio em 2015 com a promulgação da Lei nº 13.104 que inseriu no Código Penal o crime de feminicídio, como uma espécie de homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos de prisão. Uma ação afirmativa de prevenção da morte de mulheres, na esteira de legislações de outros países, que define feminicídio como o homicídio praticado contra a mulher em razão de sua condição de mulher. Apesar de ter sido considerada um avanço, houve críticas, mas uma pesquisa realizada pelo Ministério Público de São Paulo com base em denúncias oferecidas nos anos de 2016 e 2017 mostrou a importância dessa diferenciação de crimes. Segundo dados apresentados 66% dos feminicídios ocorreram nas residências das vítimas e que 96% dos crimes tinham sido cometidos por cônjuges/companheiros/namorados. Elas foram mortas por serem mulheres e em razão das suas relações familiares, dentro de suas casas. Segundo o anuário de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 ocorreram 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram classificados como feminicídios, 34,5% dos assassinatos.

Com a pandemia de Covid19 e as medidas de isolamento adotadas, os casos de violência doméstica passaram a chamar mais atenção. Segundo dados da pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, 73,5% da população brasileira acreditava que a violência contra as mulheres cresceu durante a pandemia de Covid19. Já entre as mulheres os dados apresentados foram assustadores, segundo os pesquisadores “1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, durimpossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento são os fatores que mais pesaram para a ocorrência de violência que vivenciaram. ante a pandemia de covid-19. Isso significa dizer que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano.” Destas, 4,3 milhões de mulheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes, cerca de 3,7 milhões de brasileiras (5,4%) sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais, 2,1 milhões de mulheres (3,1%) sofreram ameaças com faca (arma branca) ou armas de fogo e 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento (2,4%).

Diante dos dados que apontam que a maioria das vítimas de violência têm sido atacadas em suas casas, por pessoas próximas e que muitas vezes deixam de registrar ocorrência por receio das dificuldades que podem enfrentar, é compreensível que muitos pesquisadores e estudiosos da violência e segurança pública estejam preocupados com os efeitos da política armamentista do atual governo. Afirmam que adicionar o componente arma de fogo dentro dessa equação de violência doméstica tende a agravar as consequências e fragilizar ainda mais a situação das mulheres que estão em relacionamentos abusivos. A ausência de uma arma de fogo na residência dos brasileiros não fará com que inexista a violência doméstica, uma vez que, conforme já mencionado, a cultura machista está enraizada em nossa sociedade, porém a presença deste instrumento pode agravar os riscos de mortes, encurtando o caminho da violência doméstica e transformando agressões físicas em feminicídio.

Segundo levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz “O papel da arma de fogo na violência contra a mulher”, onde foram analisados casos de homicídios praticados contra mulheres, de 2000 a 2019, 51% das vítimas foram mortas com uso de armas de fogo. Segundo os pesquisadores “...o aumento da proporção dos casos não letais armados dentro das residências, sinalizando para o risco da violência armada nos casos de violência doméstica. Entre 2018 e 2019, a residência passou a responder pela maior proporção dos casos de violência armada não letal contra mulheres, superando a via pública. Assim, a residência foi o local onde proporcionalmente mais incidiram eventos de violência armada física e psicológica contra a mulher…”. Já no citado estudo do Ministério Público de São Paulo que trata especificamente de feminicídios, o uso da arma de fogo só perdia para a faca como instrumento mais utilizado para o cometimento dos crimes. Segundo o anuário de 20221 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 26,1% dos feminicídios são cometidos com armas de fogo, enquanto as facas respondem por 55,1%.

Desde o início de 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, a política de armas foi modificada e mais de 30 medidas foram editadas com o objetivo de facilitar o acesso da população às armas de fogo. Segundo dados divulgados pelo próprio governo, apenas no ano de 2020 houve um crescimento de 108,4% no número de armas adquiridas por pessoas físicas, que chegavam no fim do ano a mais de 1 milhão e 200 mil armas em circulação com civis. A facilidade em adquirir uma arma de fogo pode fazer com que sua utilização como instrumento de ameaça e intimidação seja ainda mais frequente. Apesar dos defensores do armamento afirmarem que a presença de uma arma de fogo em casa oferece maior segurança à mulher, a realidade é outra. Em levantamento feito para o livro “Arma para Quem? A busca por armas de fogo” ficou comprovado que as mulheres são uma parcela ínfima das pessoas que estão em busca de armas de fogo. Apenas 0,9% dos requerentes na Polícia Federal eram mulheres e apenas 11,3% dos frequentadores de clubes de tiro.

As armas de fogo são consideradas um fator preocupante dentro de um quadro de violência doméstica. Estudo conduzido em onze cidades nos EUA, com 220 vítimas de feminicídio íntimo, verificou que 70% tinham sofrido violência física do parceiro antes do assassinato; e que, entre os fatores de risco, estavam o acesso a armas de fogo por parte do agressor, a dependência química e o fato de residirem no mesmo endereço. De acordo com o professor de saúde pública da Universidade de Harvard e diretor do centro de pesquisa em controle de ferimentos da mesma instituição, Dave Hemenway, todas as evidências apontam na direção de menos segurança com armas, “...uma arma dentro de uma casa aumenta o risco de que seus moradores cometam suicídio ou se envolvam em um acidente fatal. Aumenta ainda o risco de mulheres e crianças serem assassinadas com a arma doméstica.” Outro estudo publicado por Vigdor e Mercy também nos Estados Unidos indicou que a apreensão da arma de fogo de acusados de violência doméstica implicou na redução de 7% na taxa de feminicídios por parte de seus parceiros íntimos.

Apesar de estimular a aquisição, o governo reconhece que a arma de fogo em um contexto de violência doméstica é preocupante, e por essa razão foi promulgada a lei nº 13.880, de outubro de 2019, que alterou a Lei Maria da Penha. Ela estabelece que a autoridade policial, no caso de violência doméstica, deve verificar se o agressor possui posse ou porte de arma e em seguida notificar à autoridade que concedeu o porte ou a posse da arma a ocorrência da violência doméstica, para, então, determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse do agressor.

E esse foi o motivo de uma apreensão recente que ocorreu no dia 22 de janeiro no aeroporto internacional Tom Jobim. Um carregamento que vinha da Europa com 7 pistolas, 2 espingardas, uma carabina e 22 carregadores foi apreendido por policiais civis da DEAM (Delegacia de atendimento à Mulher) de Jacarepaguá. O armamento seria recebido por um homem, investigado pela unidade por crime de violência doméstica, que seria um CAC (colecionador, atirador e caçador) registrado no Exército. Segundo os policiais, em razão de registro de ocorrência feito em dezembro, foram determinadas medidas protetivas pelo judiciário e ele teve suas permissões de posse e porte de armas suspensos. Em janeiro o autor foi preso em flagrante pelo descumprimento das medidas protetivas determinadas e com ele foram encontrados uma pistola e sete carregadores.

Não faltam registros de casos de violência doméstica com uso de armas de fogo e uma pesquisa rápida em qualquer sistema de buscas da internet irá apresentar uma lista interminável de notícias. E as mulheres parecem entender o perigo que isso representa. Segundo pesquisa feita pelo instituto Datafolha em 2019, 75% das mulheres responderam serem contra a posse de armas pelas pessoas e 78% delas rejeitam as mudanças promovidas por Bolsonaro. É evidente que o implemento de política de flexibilização da posse de armas voltada para a população civil ao mesmo tempo que traz a falsa sensação de segurança à vida e ao patrimônio, mostra-se um tormento na vida de mulheres que já sofrem com altos níveis de violência doméstica no Brasil, uma vez que aumenta-se a insegurança e se cria uma possibilidade real de aumento nos índices de feminicídios. É notório que o potencial lesivo é maximizado pela presença da arma de fogo dentro do ambiente familiar, ao alcance do autor, podendo ser empregada a critério de sua consciência e desequilíbrio emocional.

Ao contrário dos caminhos que o governo de Jair Bolsonaro tem tomado, o que se espera, especialmente no tocante às mulheres, é um cenário de maior proteção por parte do Estado. Afinal, estas já vivenciam um ambiente social no qual estão sujeitas à constante insegurança em uma sociedade que carrega heranças culturais e estrutura sob fortes valores patriarcais. Portanto, apesar de a alegação do executivo para o armamento da população civil ser que se trata de um direito do cidadão ter acesso a uma arma de fogo para defesa de sua vida e de seu patrimônio, há um ônus a ser assumido que a sociedade não está preparada para tal, uma vez que se verifica uma realidade caótica de segurança pública e tutela dos direitos da mulher. A violência doméstica se manifesta em proporções que vão além da ideia da autodefesa e da defesa do patrimônio, colocando em xeque não somente o direito fundamental à integridade física, mas à vida.


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