A festa das armas
Roberto Uchôa - Atualizado em 30/07/2022 23:09
Em janeiro do corrente ano operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu criminoso que era registrado como CAC (colecionador, atirador e caçador) e adquiria armas e munições legais para repassar diretamente para integrantes do Comando Vermelho. Com ele foram apreendidos mais de vinte fuzis, dezenas de pistolas e milhares de munições, todos adquiridos legalmente. Em junho, operação da Polícia Civil de São Paulo, que investigava esquema de fraude comandado por integrantes do PCC, descobriu esquema de aquisição de armas legais para a facção utilizando laranjas. Com um conhecido integrante da organização foram encontrados fuzil, carabina, vários tipos de pistolas e revólveres, bem como grande quantidade de munição, todas compradas legalmente em nome de um parente. Agora em julho, operação da Polícia Federal descobriu que outro integrante do PCC, baseado em Uberlândia/MG, tinha conseguido ele mesmo o registro de CAC e adquirido fuzil, carabina, revólver e pistolas legalmente em seu nome, mesmo sendo um criminoso conhecido e que responde a mais de 16 processos criminais por delitos como homicídio e tráfico de drogas.
Divulgação
Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Três dos principais estados da federação, três casos de armas adquiridas legalmente que tinham como destino integrantes de duas das maiores facções criminosas do país, o CV e o PCC. No início do ano escrevi artigo onde apontava para a conexão entre os mercados legal e ilegal de armas de fogo e como a flexibilização do controle sobre a circulação de armas e munições no país, promovida pelo governo Bolsonaro, facilitaria a aquisição de armas por criminosos. Fui taxado de desarmamentista, comunista e até de petista, mas infelizmente os fatos recentes provaram que eu, assim como qualquer pessoa que reflita sobre segurança pública com um mínimo de seriedade, sabia: na festa das armas, um dos principais convidados é o crime organizado.
Existem várias formas de armas legais serem desviadas para os mercados ilegais e a partir de então serem utilizadas por criminosos. Historicamente as principais formas eram o roubo e furto de residências, de agentes de segurança privada, de quartéis militares, de delegacias, batalhões de polícias e de fóruns do Judiciário. A CPI da ALERJ (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) realizada em 2015 apresentou em seu relatório dados que mostravam que parcela relevante das armas apreendidas em atividades criminosas no estado tinham uma dessas origens, mas também ficou claro que com relação às armas de maior poder de destruição, como fuzis, eram em sua maioria fruto de contrabando.
Portanto, até 2019, se criminosos tivessem interesse em adquirir fuzis só havia duas opções disponíveis, furtar ou roubar diretamente de instituições policiais, quartéis militares ou fóruns, ou acessar a rede de tráfico internacional de armas e aguardar que o armamento chegasse ao país através das fronteiras, portos e aeroportos. Essa dificuldade se refletia no preço final do material e cada fuzil chegava a custar cerca de R$ 60.000,00 no mercado negro. A venda desse tipo de armamento no mercado interno era muito restrita e praticamente impossível para civis, por essa razão poucas pessoas no país possuíam legalmente fuzis em casa.
Com a chegada de Bolsonaro ao poder e a sequência de mais de 30 medidas com o objetivo de facilitar o acesso da população às armas de fogo, desde 2020 passou a ser permitido que pessoas registradas como CACs pudessem adquirir fuzis. E não um ou dois, mas até trinta fuzis por pessoa e mais trinta pistolas, possibilitando que as pessoas pudessem possuir verdadeiros arsenais em suas residências. Isso somado à possibilidade de compra de até 180.000 munições por ano, transformou o mercado legal fazendo com que ser CAC se tornasse o objetivo de muitos que estavam em busca de armas mais potentes e em grandes quantidades.

O número de CACs desde então aumentou consideravelmente. Segundo dados do Instituto Sou da Paz obtidos com o Exército, o número de pessoas com licença de CAC aumentou 262% entre julho de 2019 e março de 2022. Eles passaram de 167.390 para 605.313 pessoas. Ao todo, aumentaram 437.923 registros no período, uma média de 449 novos CACs por dia. E o crescimento do número de clubes de tiro e lojas de armas seguiu pelo mesmo caminho. Números obtidos pelo Instituto Igarapé com o Exército, ao qual cabe fiscalizar o comércio de armas e munições, mostram que entre junho de 2021 e março deste ano, o número de clubes de tiro ativos no país subiu de 1.458 para 2.070, um crescimento de mais de 41% em apenas nove meses. Já entre junho de 2021 e maio passado, foram abertas 620 novas lojas para venda de armas.
Enquanto defensores da política armamentista de Bolsonaro afirmam que esse crescimento acentuado tem a ver com o “gosto” do brasileiro pelo tiro desportivo, esporte olímpico que teria rendido a primeira medalha olímpica para o país, a realidade mostra algo distinto. Durante as pesquisas para o livro “Armas para Quem? A busca por Armas de Fogo” que começaram antes da chegada de Bolsonaro ao poder, já ficava clara uma movimentação diferente de pessoas interessadas em se tornarem CACs. Grande parte não tinha muito interesse no esporte e sim na possibilidade de possuir e portar armas.

É que no ano de 2017, ainda durante o governo Temer, foi editada uma portaria que possibilitava que os CACs pudessem andar armados durante os trajetos entre suas residências e clubes de tiro. A justificativa é que ao possibilitar que o CAC andasse com a arma pronta para ser usada era uma forma de evitar que a arma fosse furtada ou roubada, ou seja, o objetivo era a pessoa andar armada para proteger a própria arma. Algo que não há paralelo na legislação estrangeira. Foi uma mudança que atraiu um público diferente do que era tradicionalmente registrado como CAC. Eram pessoas em busca de armas.
Desde então o número de CACs, de armas de fogo, de clubes de tiro e de lojas cresce continuamente e hoje há estimativas de que se todos os CACs adquirissem a quantidade de armas para as quais já são autorizados, entrariam em circulação mais de 40 milhões de armas, o que colocaria o Brasil seguramente entre os três países com a maior quantidade de armas em poder da população.
Crer que esse cenário não iria beneficiar o crime organizado é ingenuidade ou má-fé. Se antes a logística para trazer fuzis ao país envolvia aeronaves e pagamento de propina a forças policiais, agora basta ir a uma loja e adquirir armas, munições e pólvora. Com as mudanças efetuadas na legislação, um único criminoso pode adquirir, com um registro de caçador, 30 armas, sendo 15 fuzis, e 90 mil munições por ano. Se tiver também a licença de atirador, consegue comprar mais 60 armas, 30 fuzis, e outras 180 mil munições. Se obtiver ainda o registro de colecionador, não terá limite de compra de armas, apenas a orientação de comprar só cinco de cada modelo, ou seja, até cinco de cada modelo de fuzil existente no mercado. A própria Taurus, maior fabricante de armas do país e uma das maiores do mundo celebrou em fevereiro desse ano a marca de 60.000 fuzis do modelo T4 vendidos, e para comemorar criaram a T4 week para venda de fuzis em “condições especiais”.

Um fuzil como o T4 fabricado e vendido pela Taurus custa no mercado interno um terço do que os criminosos costumam pagar por armamento similar contrabandeado do exterior, e o fuzil nacional chega via transportadora, com nota fiscal em endereço escolhido pelos criminosos, sem necessidade de pagamento de subornos ou passar por fiscalizações, tudo legal e autorizado pelo Exército brasileiro. Em período de alta inflacionária como o atual, os criminosos parecem ser os únicos que obtiveram abatimentos de quase 65% para aquisição de fuzis. Mas a dúvida que fica é: como os militares deixam isso acontecer?
Ocorre que enquanto as vendas de armas aumentaram exponencialmente e o número de clubes de tiro e lojas de armas seguiram a mesma trajetória, o orçamento para fiscalização caiu drasticamente. Segundo reportagem de Aline Ribeiro para o Jornal O Globo, “nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, o Exército reduziu para menos da metade o orçamento destinado à fiscalização de acervos privados de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), lojas e clubes de tiros. Em meio à explosão do setor armamentista e de novos registros de armas, o órgão investiu quase R$ 1,7 milhão em visitas e operações para vistorias em 2021, 54% menos do que os R$ 3,6 milhões alocados para o mesmo fim em 2018”. Uma equação que só fecha na cabeça de quem é a favor dessa política armamentista.
Os próprios militares admitiram que sequer conseguem detalhar as armas que estão em posse dos CACs por problemas de preenchimentos nos campos dos requerimentos no SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas). Em resposta a requisição feita via Lei de Acesso à Informação os militares informaram que erros permitiram que até canhões tivessem sido incluídos como armas pertencentes a CACs, o que é proibido. Atualmente há cerca de 900.000 armas registradas para quase 700.000 CACs e esse tipo de apagão mostra a fragilidade no controle sobre as armas em circulação.
Além disso, o caso ocorrido em Uberlândia mostra outra faceta dessa fragilidade. Um criminoso que respondia a mais de uma dezena de processos foi autorizado pelo Exército a se registrar como CAC e adquirir várias armas e munições. Em nota, após a divulgação do ocorrido, que só ocorreu em razão de investigação feita pela Polícia Federal, o Exército afirmou que a documentação apresentada pelo criminoso estava correta e que ele havia apresentado uma autodeclaração de idoneidade e que a responsabilidade pela apresentação da documentação é do requerente e não dos militares. Ou seja, para eles, o criminoso também era culpado por mentir e enganar os militares. Um constrangimento que poderia ter sido evitado com uma simples pesquisa de antecedentes como a própria Polícia Federal faz quando há solicitação para compra de armas.
Seja através de repasse de armas compradas legalmente, seja através do uso de laranjas para aquisição ou até mesmo os próprios criminosos comprarem diretamente, a verdade é que as organizações criminosas estão aproveitando a “festa” das armas no país para adquirir armamento por preços muito inferiores ao que tinham que pagar através das redes internacionais de tráfico de armas. Casos como os citados estão aparecendo com frequência cada vez maior no noticiário e tem preocupado instituições encarregadas de combater essas organizações. Recentemente a hashtag #bolsonaroarmouotrafico ficou entre as mais citadas no twitter diante de tantos casos de repercussão. O problema é que mesmo que a política armamentista seja modificada voluntariamente por Bolsonaro, ou que entre outro em seu lugar, armas de fogo são bens que duram décadas e os efeitos desse derrame de armas na sociedade será sentido por longo tempo. O problema é que nessa festa os que mais irão sofrer são justamente os que não foram convidados.

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