Arthur Soffiati - Naufrágio da civilização moderna
Arthur Soffiati 30/07/2022 07:59 - Atualizado em 30/07/2022 07:59
Não repetiremos o Titanic. Os engenheiros que o conceberam acreditavam piamente que detinham conhecimento e tecnologia insuperáveis para construir um magnífico transatlântico. Pensavam eles que a ciência havia chegado ao final, que nada mais poderia ser concebido. Ora, o Titanic não passava de uma caravela gigante e vulnerável. Alexander Carlise e Thomas Andrews, os engenheiros que o conceberam, não passavam de construtores de barcaças modernas. A Harland and Wolff, estaleiro que o construiu, era uma espécie de Escola de Sagres metida à besta, e a empresa White Star Line, que operava o navio, parecia um Cristóvão Colombo do século XX.
Logo na sua primeira viagem, em 1912, o transatlântico inafundável, como se dizia, afundou. Chocou-se com um icebergue e naufragou. Morreu muita gente. Havia uma série de pontos vulneráveis quanto à segurança do navio. Anotamos tudo e não repetiremos os erros. O mundo agora é outro. Avançamos muito em termos de tecnologia. Enviamos naves ao espaço. Levamos humanos à Lua. Chegamos a outros planetas do sistema solar e já saímos em direção a pontos distantes do cosmos. Veja agora. Colocamos em atividade o telescópio espacial James Webb. Ele é capaz de captar imagens não apenas no espaço, mas no tempo. Pode recuar às origens do Universo. Imagine o que é voltar 13 bilhões de anos no tempo e surpreender o Universo em seus primórdios!
Agora sim, creio que chegamos ao máximo em termos de ciência e tecnologia. Claro que sempre se pode aperfeiçoar. Mas já estamos a caminho de conquistar o Universo. Não apenas nosso sistema solar e nossa galáxia. Reconheço que estragamos a Terra, mas foi necessário. O aperfeiçoamento da tecnologia tem seu preço. Estragamos e podemos consertar. Ainda encontramos espíritos tacanhos. Essas pessoas saudosistas, esquerdistas, ecologistas, sei lá, é tanto ismo que não convém memorizar o nome de todos. Aliás, para quê memorizar se podemos transferir todas as informações para supercomputadores? Sejamos otimistas.
Mas vamos ao que interessa. Vamos ao super-transatlântico, já a caminho em nossos laboratórios. Estaleiros? São coisa do passado. Como assim? Transatlântico numa época dessa? Sim. Ainda existe mar. Ainda estamos no planeta Terra. De fato, não precisaríamos de um navio invulnerável. Podemos cruzar o mundo em nossos magníficos aviões. Já temos até naves espaciais preparadas para isso. A questão é que temos um ajuste com o passado. O naufrágio do Titanic por colisão com um icebergue foi uma desonra à nossa tecnologia. O afundamento dele desmoralizou a superioridade ocidental, hoje distribuída pelo mundo todo, mas em outros lugares ainda inferior aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Como? A guerra da Ucrânia? Ora, devemos reconhecer que ainda existem países atrasados no mundo de hoje. A Rússia é um exemplo. Mas superaremos isso tudo ao deixarmos esse planeta e construirmos uma civilização perfeita em outro. Antes, lançaremos o Invictus no mar para mostramos a nossa superioridade.
Muito bem, vamos inaugurar o Invictus à moda antiga, quebrando uma garrafa de champanhe em seu casco. É só um gesto simbólico. Escolhemos passageiros de todas as classes sociais. A viagem será gratuita. Não queremos ganhar dinheiro. Não precisamos. Nem mesmo com esse navio. É só uma questão de ajuste com o passado. Convidamos um pescador para avalizar a embarcação, assim como engenheiros e leigos. Mas, de antemão, temos certeza de que nenhum obstáculo vai nos deter. Nem icebergue, nem rochedo nem um míssil da Rússia.
Boa viagem a todos, todas e todes. Acompanharemos a travessia Nova Iorque-Londres por satélites e computadores. Boa viagem. E aquele monstro marinho singra as águas tranquilamente, soberano. Desafia mesmo os obstáculos, passando perto de rochedos e icebergue. Os marinheiros foram educados para exibir arrogância tecnológica diante da natureza. Mas o pescador os alertou a evitar esses perigos desnecessariamente, só por exibicionismo. De maneira antiga, disse que não se deve abusar. Falou com o comandante que Deus protege os humildes. Ora Deus, pensou o comandante. Nem Deus pode nos deter. Mas o que é isso? Que ruído é esse? Quero informação de todos os computadores. Como, um rochedo furou o casco? Como assim? Deve haver engano. Está fazendo água? Vai afundar? Não é possível. Deem um jeito. Afinal, o Invictus é o triunfo da tecnologia sobre a natureza.
Toca para a esquerda em direção à costa, disse o pescador. Vamos encalhar o navio numa ilha. Conheço bem essa região. E que todos os passageiros rezem, cada um na sua crença, para Deus nos ajudar. Vamos encalhar essa “maravilha”. A gente perde o navio mas não perde a vida. Esses caras nunca vão aprender que o homem é limitado e que sempre deve respeitar a natureza.

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