‘Foi só um golpezinho!’
Edmundo Siqueira 18/03/2024 21:20 - Atualizado em 18/03/2024 21:36
Foto: Evaristo Sá/AFP

A diarista Rosana Urbano, de 57 anos, saiu de casa por volta das 4h da manhã do dia 11 de março de 2020 para ver a mãe, que estava internada no Hospital Municipal Carmino Caricchio, no Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Teria andado 25 km até chegar, Diabética e hipertensa, Rosana sentiu-se mal ao ver sua mãe entubada e foi internada na mesma unidade médica.

Rosana morreu um dia depois, após uma parada cardiorrespiratória. E foi registrada oficialmente como a primeira vítima do vírus Covid-19 no Brasil. Sua mãe, Gertrudes, veio a falecer três dias depois. Rosana deixou três filhos órfãos.

No mesmo dia que a diarista chegou ao hospital, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, anunciava que a crise sanitária causada pelo vírus era de fato uma pandemia. Naquele mesmo mês, o Brasil registrava 5.812 casos do coronavírus e 202 mortes.

Doze dias depois da morte de Rosana, o então presidente Jair Messias Bolsonaro fez um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, onde disse:

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, (...) e devemos, sim, voltar a normalidade (...) no meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.

No mesmo discurso, Bolsonaro culpava a imprensa por potencializar uma “histeria” descabida. Sobre as vacinas, o ex-presidente disse, em dezembro de 2021, que não havia tomado e que não iria tomar. E em março daquele ano disse:

“Tem idiota que a gente vê nas redes sociais, na imprensa, [dizendo] ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe…”.

Neste mês, em março de 2024, o Brasil soma mais de 38 milhões de casos, e 710.704 mortes

A tentativa de golpe e o ‘golpezinho’

Um dos principais alvos da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado, o general Walter Braga Netto, em 18 de novembro de 2022, no cercadinho (estrutura montada na saída do Palácio da Alvorada que Bolsonaro usava para conversar com convertidos), disse para uma apoiadora:

“Vocês não percam a fé. É só o que posso falar agora”.
 
Reuters


Bolsonaro já tinha perdido as eleições, mas Lula não havia ainda subido a rampa. Outro principal suspeito da tentativa de golpe, general Augusto Heleno, também tentava tranquilizar os apoiadores, dizendo que o presidente eleito não tomaria posse e que era preciso "esperar mais um pouco".
Com tudo que se sabe hoje, o golpe de Estado foi planejado por meses, com participação direta de alguns integrantes do alto comando das Forças Armadas — e com a recusa de outros. Os depoimentos tornaram-se públicos, os arquivos foram divulgados pela Polícia Federal,  e neles o ex-comandante do Exército e o ex-comandante da Aeronáutica acusam Bolsonaro de ter planejado um golpe de Estado.

Portanto, houve, como tudo vem sendo mostrado — e comprovado —, uma tentativa de corromper a ordem democrática e instaurar no país um regime autoritário. Outra vez na história Brasil, e orquestrado pelos mesmos atores.
Bolsonaro, por sua vez, tenta minimizar o problema. Ele e seus apoiadores dizem que essa história de golpe é toda inventada e que não houve nenhuma ilegalidade. O que houve, já admitido, foi apenas a discussão sobre declarar estado de Defesa ou estado de Sítio, que são previstos na Constituição.

Embora sejam instrumentos constitucionais existentes, não se justificariam naquele cenário. Não havia condicionantes para essas medidas, salvo quando criadas por ímpetos golpistas. Ademais, golpe de Estado é punível em sua forma tentada, já que quando consumado não há mais legalidade vigente.

O vírus do golpismo
Embora não seja possível traçar paralelos entre uma pandemia e um golpe de Estado, a ideia de subversão da democracia, do estado de direito e dos direitos fundamentais é a mesma. Ditaduras e pandemias matam pessoas.

Não é possível diminuir a gravidade do que foi tentado. É preciso esperar o julgamento e garantir ampla defesa e o contraditório, mas uma vez vencido essas etapas, quem pensou, planejou, confabulou e executou uma tentativa de golpe de Estado, e os crimes contra o Estado de Direito, devem ser punidos. Como manda a democracia.

A democracia não é um regime onde tudo pode. As liberdades e direitos individuais não são absolutos. E ela, a democracia, não pode ser tolerante com a intolerância. É preciso que se estimule que pessoas que são física ou socialmente diferentes, com opiniões opostas, como crenças políticas ou religiosas diversas, possam conviver. Não o contrário. Sob pena de permitir os golpes e a violência; e as mortes.
Quem usa o bolsonarismo radical como lema de campanha, ainda hoje, permite que se entenda que democracia e vidas não são valores inegociáveis. Quem ainda usa o nome de um ex-presidente que conduziu a pandemia negando a ciência e as vacinas, e planejava um golpe de Estado, compactua com essas ideias. 
As eleições municipais deste ano serão um bom termômetro para separar candidatos que pregam ideias de direita e do conservadorismo, de quem aceita o golpismo messiânico e as subversões do civilizatório.  Abraçar o bolsonarismo raiz definirá. 
Bolsonaro e quem o apoia dizem ter sido algo parecido com um golpe; um quase-golpe. Uma ideia que não foi à frente, ou uma doença que não se estabeleceu na democracia do Brasil. Um golpezinho.
 
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER

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