O debate da mobilidade urbana em Campos dos Goytacazes para além das novas ciclofaixas
Érica Tavares, Daniela Bogado, Juciano Rodrigues 18/03/2024 21:07 - Atualizado em 19/03/2024 15:17
 
Foto: IMTT Campos.
Ações no campo da mobilidade ocupam cada vez mais um papel central nas transformações urbanas experimentadas em diversas cidades ao redor do mundo. Grandes cidades, como Hamburgo, Copenhague, Estocolmo, Milão, Paris e Londres, por exemplo, já vêm empreendendo alterações consideráveis na forma de utilização de suas áreas centrais, onde há maior circulação de pessoas, comércio e serviços. Tais mudanças são o ponto de partida para promover uma cidade mais acessível, justa, igualitária, democrática, viva e sustentável, sobretudo em razão da necessária transição ecológica e da urgente descarbonização da mobilidade.

O debate atual, em geral, apresenta um ponto de partida trágico que é o modelo de mobilidade urbana prevalecente ao longo da constituição das cidades brasileiras no século XX. O planejamento dos sistemas de transporte sempre foi orientado pelo modelo rodoviarista, baseado na implementação de infraestrutura, no incentivo à indústria automobilística e no consumo de combustíveis fósseis.
Historicamente, no Brasil, o transporte se expandiu como contrapartida das soluções debilitadas de moradia, com a população sendo empurrada para espaços mais distantes das melhores infraestruturas, equipamentos e recursos. Nesse processo de periferização, a população se torna dependente de um sistema de transporte precário, insuficiente e inseguro para acessar os empregos concentrados nas áreas centrais. Assim, à medida que algumas famílias experimentam inserção no mercado de trabalho e aumento da renda, a solução sempre almejada para contornar os desafios de se locomover na cidade é a aquisição do carro particular ou, como tem ocorrido mais recentemente, optar pela solução mais barata que é a motocicleta.
Ambas as soluções são problemáticas para a boa utilização do espaço urbano.
Diante do caos instalado em boa parte das cidades, da insuficiência do transporte público escancarada pela pandemia e do cenário adverso das mudanças climáticas, esse modelo mostra claros sinais de que é insustentável.

Ações voltadas para a promoção da mobilidade urbana sustentável são fundamentais
Os problemas evidenciam a necessidade inadiável de medidas direcionadas para o rompimento do modelo rodoviarista e do privilégio assegurado ao transporte individual. No rol dessas soluções, estão ações que priorizem os transportes públicos coletivos e os meios ativos (bicicleta e caminhada), inclusive em cidades de porte médio, como Campos em Goytacazes. No atual contexto, caminhar nessa direção requer, obviamente, muito engajamento político, programas de sensibilização e mobilização coletiva. Portanto, para melhorar as condições de deslocamento e enfrentar os efeitos das mudanças climáticas sentidos diretamente pela população – como alagamentos, inundações, calor intenso –, a promoção da mobilidade urbana sustentável é fundamental.
Em que pesem as ações pontuais, dificuldades, incompletude do traçado, transtornos e questionamentos, a ampliação da malha cicloviária de Campos ganha ainda mais importância se for observada a partir desse contexto, especialmente ao considerarmos a característica geográfica de ser uma planície e todo o seu potencial para o deslocamento ativo. Até porque, é preciso ter foco na melhoria das condições de mobilidade urbana, de modo universalista, para atender a todos os grupos sociais e demandas populacionais, o que requer ponderação quanto aos previsíveis conflitos de interesses. Enquanto há questões urgentes e necessárias, discussões pontuais não podem ofuscar a importância inquestionável dessa política pública.
Sob essa ótica, é preciso estar atento aos princípios estabelecidos pela Lei Nacional de Mobilidade urbana (Lei nº 12.587/12), assim como, ao nível local, ao Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (Lei Municipal nº 9.137/2022) e ao Plano Diretor de Campos dos Goytacazes (Lei Complementar Municipal nº 015/2020) – instrumento básico de planejamento urbano que exige a observância da função socioambiental da cidade e que reforça o quanto a mobilidade urbana está associada às diretrizes básicas para o uso e ocupação do solo urbano. Tais leis precisam, inclusive, ser interpretadas e implementadas em conformidade com o Estatuto da Cidade e o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Em termos normativos, as ciclofaixas devem atender aos critérios, métricas e condições estabelecidas nas resoluções vigentes, como as do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Assim sendo, uma discussão sobre ser maior ou menor não é o que mais importa. Por outro lado, aumentar os quilômetros de ciclofaixa é uma ação restrita se não dialogar com as reais demandas da população para a promoção de um bom uso do espaço livre público.
O discurso de que “tirar vaga de carro” diminui a circulação de consumidores também precisa ser visto com cuidado e a longo prazo. A princípio, é muito mais interessante ter um espaço público favorável para circulação de pedestres e ciclistas, numa escala que prioriza a dimensão humana, do que uma vaga de carro que fica ocupada por horas, muitas vezes para o deslocamento de uma pessoa que nem interage com os equipamentos e serviços disponíveis.
Diversas experiências no mundo mostraram que a implementação de ciclovias é boa para o comércio local. Estacionar um pouco mais distante do local exato de destino aumenta a caminhabilidade e, consequentemente, a circulação. Ou seja, é justamente o inverso. Pode não parecer bom, num primeiro momento, para um estabelecimento específico, mas para o coletivo dos estabelecimentos em áreas comerciais e para a economia da cidade como um todo, pode haver um impacto positivo a médio e longo prazo. Por isso precisamos mudar essa perspectiva, fugir do lugar comum e abrir as possibilidades para pensar que quem compra no comércio são as pessoas e não os carros.

A população precisa participar dos processos decisórios relativos à mobilidade
Valorizar as áreas centrais para o deslocamento por bicicleta em detrimento dos carros é importantíssimo e está alinhado ao que tem sido adotado em diversas parte do mundo, com relativo sucesso. No entanto, é também consenso que essas ações precisam vir acompanhadas de outras medidas, como aumento da oferta e da qualidade dos serviços de transporte público, segurança na estrutura viária e melhoria das condições de caminhabilidade nas calçadas, na ótica da acessibilidade para todas e todos.
Também é importante a promoção de campanhas de educação no trânsito e de sensibilização da população em torno dos efeitos positivos da ampliação da malha cicloviária. É imprescindível criar um ambiente colaborativo, onde a população se sinta parte do processo decisório, com o poder público garantindo o planejamento e a gestão urbana efetivamente participativos.
Neste sentido, cabe pensarmos que é o momento para reforçar a atuação do Conselho Municipal de Mobilidade Urbana, assim como integrar e articular as ações da Secretaria de Planejamento Urbano, Mobilidade e Meio Ambiente (SEMPUMMA) e do Instituto Municipal de Trânsito e Transporte (IMTT). Não podemos perder a chance de priorizar os modos de transporte menos poluentes, mais sustentáveis, mais acessíveis e os de caráter coletivo, como meio de concretizar o direito à cidade.
O cenário eleitoral torna ainda mais importante o debate local sobre os caminhos para a mobilidade urbana sustentável e inclusiva, considerando que a agenda em torno desse tema está na ordem do dia, em consonância com a Meta 11.2 do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 11 da Agenda 2030 da ONU que visa ao “acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis, sustentáveis e a preço acessível para todos”. Qualquer proposta de governo municipal precisa lidar com essas questões, não apenas as cidades metropolitanas, mas também as cidades em nível intermediário na hierarquia urbana que já apresentam questões sérias para serem enfrentadas em seus centros urbanos, como as cidades do Norte Fluminense.
Érica Tavares é professora da UFF Campos, pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do Núcleo de Estudos Socioambientais da UFF
Daniela Bogado é professora do IFF Campos e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do APPA/MobiRede
Juciano Rodrigues é pesquisador e membro do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles. Professor colaborador no IPUUR/UFRJ e bolsista de pós-doutorado sênior da FAPERJ
 

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