"O combate ao tráfico e as milícias exige investigação e menos espetáculo", diz membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Edmundo Siqueira 26/10/2023 20:23 - Atualizado em 26/10/2023 20:25
Na última segunda-feira (23), a Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro sofreu o maior ataque em um único dia a coletivos urbanos. Ao menos 30 ônibus foram incendiados, e mais 5 BRTs (veículos articulados usados em corredores expressos). O caos afetou oito bairros, diversas vias foram fechadas e milhares de trabalhadores ficaram sem poder voltar para as suas casas.

O motivo dos atos de terror foram uma resposta do poder paralelo que assola o Rio há décadas: a milícia. Após a morte em uma ação da Polícia Civil de Matheus da Silva Rezende, o Faustão, um dos líderes da maior milícia do Estado, os criminosos demonstraram força e mostraram que aquele território é comandado por eles.

“Não adianta fazer operação policial com milhares de policiais, invadir territórios controlados por criminosos e ter confrontos que colocam policiais e inocentes em risco para no final apreender 1 fuzil e 100 kg de cocaína. O trabalho de combate a esse tipo de crime exige investigação e menos espetáculo”, disse Roberto Uchôa, policial federal, doutorando em Democracia do Século XXI, na Universidade de Coimbra, e membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a este espaço na Folha1.

A reação à morte do miliciano Faustão foi um recado às autoridades do Rio de que o poder em praticamente toda Zona Oeste pertence à milícia que hoje é liderada por Zinho, tio de Faustão, e um dos chefes do grupo conhecido como “Família Braga”, considerada a maior milícia da cidade desde a última década.

Segundo a Polícia Civil, das 833 áreas dominadas pela milícia, 812 têm influência da Família Braga. Em 2010, sob o comando de “CL” ou “Carlinhos Três Pontes”, a milícia se uniu ao tráfico de drogas. Com estrutura de máfia, os criminosos controlaram não apenas o território como as principais atividades econômicas de uma parte significativa do Rio.

Participação ou omissão do Estado — Como resposta aos atos da segunda-feira, o governador Cláudio Castro comemorou a prisão de 12 suspeitos que teriam participado da destruição dos ônibus e BRTs, e segundo o governador eles irão responder pelo crime de terrorismo. Todos foram encaminhados para prisões federais.

A estratégia do Governo do Rio até aqui é a prisão dos líderes do tráfico e da milícia, ou da máfia que os grupos criminosos formam em conjunto, hoje. Porém, é praticamente um consenso entre especialistas em segurança pública que prender lideranças apenas não soluciona o problema, uma vez que a estrutura não se altera e outras pessoas assumem os comandos.

Segundo Uchôa, “esse tipo de postura é para dar a impressão de que as milícias estão sendo combatidas, quando na verdade nada muda” e que “a forma como as milícias se estruturaram ao longo tempo hoje permite que elas permaneçam funcionando mesmo com a troca de líderes”.
Mais 35 ônibus foram incendiados no Rio de Janeiro após morte de suspeito apontado como líder de milícia (folha de S.Paulo).
Mais 35 ônibus foram incendiados no Rio de Janeiro após morte de suspeito apontado como líder de milícia (folha de S.Paulo). / Reprodução/TV Globo
“Então promover uma caçada sem atacar essas estruturas é inócuo e serve somente para possíveis ganhos políticos. Não há crime organizado sem participação ou omissão de agentes do Estado e o que vimos nas últimas décadas foi um exemplo claro disso. Governos foram omissos ao impedir que agentes de segurança fizessem parte da criação e do crescimento dessas organizações. Isso acontecia porque muitos entendiam que era um mal menor e que o mais importante era combater os narcotraficantes. Vale lembrar, policiais criaram as milícias. E a simbiose de políticos e integrantes de milícias foi além”, explica o pesquisador.

Autor do livro “Armas para Quem? A busca por armas de fogo”, Uchôa desenvolveu grande parte de sua pesquisa em entender como as armas legais iam parar na mão dos criminosos e como uma política pública que flexibilizasse a compra e o porte de armas aumentaria o poder de fogo de milícias e do tráfico.

Sobre o comércio de armas e o envolvimento da política nas questões relacionadas à segurança pública, ele é enfático e propõe um caminho para além de uma intervenção federal no Rio:
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— Através do domínio armado de territórios, os criminosos além do controle econômico tinham também o controle político, o que atraiu o interesse de muitos. Tivemos caso inclusive de integrante de milícia sendo homenageado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Então se houver realmente o desejo de combater esse tipo de organização criminosa é preciso começar pelo ataque às suas estruturas, que hoje estão entranhadas em muitas estruturas do poder público. Defendo que o combate a esse tipo de atividade novamente passa pela necessidade de ações do Governo Federal. Mas não o envio de força nacional. É necessária a criação de uma força tarefa composta pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal com apoio integral do governo federal e liberdade de ação. Aí sim podemos vislumbrar alguma mudança futura.


A segurança pública em um Estado que permitiu um nível de apodrecimento institucional que o Rio de Janeiro apresenta hoje é altamente complexa e as soluções que os sucessivos governos dos últimos anos apresentaram não enfrentaram o problema, permitindo seu agravamento.

Além dos territórios ocupados, milícias e o tráfico fortaleceram seus braços financeiros e possuem denso e pesado armamento, ao ponto de desafiar o poder do Estado frontalmente, como na última segunda-feira.

Segundo Uchôa, as flexibilizações na legislação de armas impostas pelo governo Bolsonaro permitiram que os criminosos tivessem “mais uma fonte” de armamento pesado.

— Historicamente as fontes de armamento pesado, como fuzis e pistolas de calibres restritos, eram o tráfico internacional de armas e desvios de instituições públicas como quartéis, batalhões e delegacias, como vimos recentemente no caso das metralhadoras furtadas dos militares. Essas armas não estavam disponíveis no mercado interno. Com a flexibilização da legislação promovida durante o governo Bolsonaro houve uma mudança no mercado já que fuzis e pistolas de calibres que antes eram restritos passaram a ser acessíveis à população. Isso permitiu que criminosos tivessem mais uma fonte para conseguirem esse tipo de armamento, só que agora por um custo menor e menos riscos. Seja através do uso de "laranjas", de repasse ou até mesmo compra direta, não são poucos os casos noticiados de criminosos que aproveitaram as facilidades para conseguirem armas. Em recente pesquisa que fiz analisei um caso onde milicianos se registraram como CACs e adquiriram armas legais diretamente. Todos foram presos em flagrante em atividade de milícia com as armas legais. Claro que foi um caso, mas se fossemos citar todos os que estão sendo descobertos, faltaria espaço nessa entrevista. Ao encerrar a corrida armamentista que ocorreu nos últimos anos, o Governo Federal (atual, Lula III) deu um importante passo, mas é preciso ir além.

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