Cinema: O parto e os simbolismos
Felipe Fernandes 26/01/2021 13:27 - Atualizado em 27/01/2021 16:36
A gravidez é um ciclo natural, porém único. Mesmo que venha a se repetir para o mesmo casal, será experimentado de formas diferentes. É um processo muito íntimo e não é fácil, principalmente para a mãe, que precisa lidar com transformações físicas e hormonais enquanto vive uma relação de proteção e ligação física extrema com o filho sendo gerado dentro de seu próprio corpo.

Pieces of a woman” traz o parto, um momento intenso de diversas maneiras, como evento catalisador para contar um drama pesado sobre vida, morte, traumas, família e relações, em um filme emocionalmente forte e com boas atuações.

Na trama, Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf) estão nos preparativos para o nascimento da primeira filha do casal. Eles decidem por um parto em casa. Quando chega o momento, a parteira do casal está envolvida em um outro parto, e uma substituta de nome Eva (Molly Parker) chega para ajudar. Num procedimento extremamente difícil, os dois passam por uma experiência traumática e precisam lidar com as consequências dos acontecimentos em suas vidas.

Trata-se de um projeto bem pessoal, escrito pela atriz e roteirista húngara Kata Weber (“Deus branco”). O roteiro foi criado baseado na experiência pessoal dela, que, ao sofrer um aborto natural, precisou lidar com a dor e todas as questões que sucederam o ocorrido. Escrever sobre o tema foi a forma que ela encontrou para lidar com essas questões. O filme é dirigido por seu marido, Kornél Mundruczó (“Lua de Júpiter”), que, à sua maneira, também vivenciou os dramas da situação.

Em seu início, o filme estabelece um pouco da personalidade do casal e a natureza da sua relação. São cenas, importantes que permitem o contraste do que essa relação vai se tornar após o primeiro ato.

Depois dessa passagem, somos introduzidos ao grande momento do filme: uma longa sequência de quase 25 minutos, aparentemente sem cortes, que mostra todo o processo do parto vivido pelo casal. Uma decisão ousada por sua complexidade de execução e extremamente eficiente, pois a câmera trêmula que caminha entre os cômodos em meio a toda a tensão e a falta de cortes faz com que o espectador se sinta parte daquele momento, tornando tudo muito mais tenso.

O ápice dramático do longa chega com quase meia hora de filme, junto com seu título, deixando claro que ele faz menção ao que ocorre a partir dali, momento em que, assim como a personagem, o espectador já foi dragado para aquela situação.

O filme tem um tom naturalista, retrata seus personagens na intimidade e trabalha uma atmosfera pesada, com os personagens se fechando em si e se relacionando sempre de forma combativa. As características pessoais apresentadas no início ganham outro contorno: o vazio cria desarmonia, gerando conflitos pela forma como cada um deles lida com a situação.

O segundo ato tem um ritmo bem irregular, e a trama tem um desenvolvimento problemático. Fazendo uso de diversos simbolismos (alguns irritantemente óbvios), o filme se arrasta em seu clima pesado, com algumas ideias que não são bem exploradas, funcionando em uma decrescente dramática que incomoda.

Spoilers nos dois próximos parágrafos — No terceiro ato, a história dá uma guinada. O roteiro comete o erro de simplesmente abandonar Sean, retirando um personagem importantíssimo da história, sem dar a ele um desfecho. Os simbolismos começam a ganhar sentido, e o filme adiciona um julgamento (ideia que foi baseada em uma história real) que destoa um pouco, mas funciona como momento de libertação de Martha.

Ela que, durante todo o momento, buscou dar um propósito para a curta vida da filha (não por acaso ela doa o corpo para estudos). Ao ver sua imagem com a filha ainda viva que, Martha ressignifica tudo pelo que passou, e ao perdoar a parteira, que não por acaso se chama Eva, ela consegue se reconectar com a vida e seus brotos de maçã (claro) começam a dar vida. — Fim dos spoilers

O elenco tem grandes atuações. Shia LaBeouf (“Indianas Jones” e “O reino da caveira de cristal”) entrega uma atuação intensa, de um homem que aparenta estar prestes a explodir a todo momento, sensação que é presente desde o seu primeiro momento.

A veterana e excelente Ellen Burstyn (“Réquiem para um sonho”) compõe uma personagem controladora, que busca impor suas vontades ao casal, e suas atitudes invasivas num momento tão delicado causam um incômodo potencializado pelo trabalho da atriz.

A grande força do filme é o trabalho visceral de Vanessa Kirby (“The Crown”). A entrega da atriz na grandiosa cena do parto é impressionante, e o peso que ela carrega durante todo o filme faz do seu trabalho digno de estar presente na temporada de premiações.

Pieces of a woman” é um filme forte e que trata de assuntos delicados. Tem ótimas atuações e um ritmo irregular, mas será lembrado pelo seu primeiro ato: uma sequência longa e angustiante, que provoca no espectador o desespero de estar naquela situação. Esse tipo de conquista poucas obras conseguem proporcionar. Uma pena que o que acontece em seguida não consiga manter o nível. Tinha potencial para ser um dos melhores filmes do ano.

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