O BBB parecia uma oportunidade da crítica necessária ao identitarismo - mas é o contrário
12/02/2021 15:02 - Atualizado em 12/02/2021 15:13
O BBB parecia uma oportunidade da crítica necessária ao identitarismo – mas é o contrário
“Eu não assisto o BBB, mas...”. Invariavelmente, análises e comentários sobre o programa da Rede Globo, Big Brother Brasil, são precedidos de uma justificativa nesses moldes. É como se, ao reconhecer que é um espectador, a intelectualidade do interlocutor fosse automaticamente diminuída. Não é uma verdade, em princípio (apesar de por vezes confirmar o pré-conceito). Admitir o gosto pelo gênero da telerrealidade não diz nada sobre a capacidade cognitiva. O BBB deve ser visto como ele realmente é: um entretenimento.
Sim, ele pode trazer diversas análises sobre comportamento humano e ser base para outros tantos processos dialéticos, mas, em resumo, é uma diversão comercial televisiva. Porém, a edição atual do programa transcendeu as fronteiras do mero divertimento e foi para a política. E está trazendo resultados ruins para o país, em um momento que não deveria acontecer.
Estivesse o Brasil presidido por alguém menos nocivo, que promovesse conciliação e retificação social, a discussão poderia ser gerada com as bases teóricas e políticas misteres para uma crítica necessária ao identitarismo. Mas, é o contrário. Fruto de um movimento de extrema-direita mundial, Bolsonaro atua no radicalismo ideológico, no fundamentalismo religioso, na cisão, no estímulo ao que é anticientífico e na desconstrução de lutas progressistas essenciais para produzirmos uma sociedade mais justa.
Ademais, são tempos que provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) dão como resposta certa para o fato de uma mulher negra se recusar a alisar o cabelo, uma “postura de imaturidade”. Depois de críticas severas, mudou-se o gabarito para uma “atitude de resistência”.
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Não restam dúvidas que o BBB é um fato histórico lateral. Contudo, estes também são relevantes e por vezes essenciais para entender a complexidade do estado de coisas de certa época. A edição 21 do programa global trouxe para o centro do debate político as questões relacionadas ao racismo, igualdade de gênero e identitarismo. Antes de qualquer análise mais detida, é preciso entender que as narrativas que o programa imprime são produtos de edição e direção, protagonizadas por pessoas escolhidas. Distancia-se muito de processos aleatórios e resultados puramente empíricos. O material bruto produzido pode levar a diversas interpretações e conclusões. Porém, como objeto desta análise, a narrativa predominante deve ser interpretada, independentemente de sua motivação editorial ou financeira.
O identitarismo de boutique
A personagem do reality television que trouxe as maiores discussões por suas ações e posicionamentos foi a rapper Karol Conká. Sob a égide do combate ao racismo, monopolizava os mesmos “lugares de fala” que a luta real, que não se resume às questões raciais, tenta ocupar. Disputando a personificação da militância com outro participante, o também rapper Lucas Penteado, Conká foi acusada de violência psicológica e de excluí-lo do convívio com os outros participantes. Concorrendo na mesma linha, a psicóloga Lumena Aleluia é vista como agressiva e ditatorial. Segundo o jornal O Dia, Lumena foi acusada formalmente de racismo, em notícia-crime apresentada pelo deputado estadual Anderson Moraes (PSL-RJ), na Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), ontem (9). Segundo o deputado, a psicóloga teria agido de forma "pejorativa e ofensiva à raça branca" e teria criticado a aparência da atriz e participante do programa, Carla Diaz, chamando-a de “sem melanina e desbotada”.
A rapper, apesar de se autodeclarar como uma militante, pratica também preconceito de origem. Por ser natural de Curitiba, capital do estado do Paraná, na região sul do Brasil, tentou diminuir outra participante por sua origem nordestina, deixando a entender que existe uma hierarquia entre as regiões brasileiras e que em Curitiba haveria mais “educação para tratar as pessoas”. Conká foi acusada de xenofobia nas redes sociais pela declaração.
As posturas de Conká e Lumena são exemplos de um identitarismo de boutique que é crescente no país. Transformam a identidade em um ato de exclusão e inverte a lógica da luta justa, da militância real e necessária que nos escancara a existência de diversas identidades subalternizadas, marginalizadas dos processos sociais por diversos tipos de preconceito. A militância festiva, que quer monopolizar o debate e se apropria da luta de gente pobre e excluída, para ganhos políticos.
Os exemplos negativos do programa evidenciam a existência deste tipo de identitarismo. E ele deve ser combatido, pois reforça as mesmas características perversas de um modo autoritário de fazer política. Mas, ainda que haja a necessidade de condenar a prática, a exposição televisiva, generalista e usada par justificar narrativas intencionais, traz prejuízo para o combate ao preconceito racial, de gênero e de classe. Distorce a luta e a demoniza. Faz crer que a dificuldade é ser branco, hetero e de classe média ou alta. Justifica omissões confortáveis de espectadores que negam um racismo cruel, estrutural e manifesto cotidianamente.
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O identitarismo de boutique embaraça o combate, mas não abona preconceitos. Causa desgaste, mas não invalida a batalha contra os privilégios. Mas, é o que faz o BBB nesta edição. Pode levar a afirmações como: “Viu? É por isso que digo. Esse pessoal é muito chato”. Reduzindo a questão nesses exemplos caricatos.
As lutas reais – e necessárias
A luta contra as opressões não deve ser necessariamente identitária. O dito “lugar de fala” é um conceito amplo que foi distorcido pelo identitarismo, trazendo exclusão, contraditoriamente, e um particularismo extremado. Um branco com privilégios também tem seu lugar de fala. Por óbvio, cada indivíduo tem vivencias particulares que determinam suas interpretações e pode expor melhor suas mazelas.
Esses movimentos particularistas não possuem uma perspectiva emancipatória, não objetivam o fim do racismo ou da desigualdade de gênero, tentam inverter a lógica opressiva vigente, criando comunidades ou sociedades exclusivamente negras ou femininas, de forma unificada. O que não quer dizer que não exista identidade. As identidades existem e as lutas pelas suas afirmações são parte da luta de classes, pensadas e estruturadas referencialmente por Karl Marx e Friedrich Engels, no século 19. Marx e Engels, dois dos principais teóricos das forças políticas de esquerda, são considerados racistas e por vezes são deslegitimados por algumas correntes progressistas. Embora seja possível perceber que, inevitavelmente, o colonialismo europeu influenciou o pensamento de ambos, não é possível negar as enormes contribuições do pensamento marxista para as lutas de classes e de identidades subalternizadas. Vale lembrar que Marx percebeu que a classe traria enormes dificuldades para um burguês ter uma mentalidade proletária, mesmo ele nunca ter se aproximado da condição de ser um proletário explorado.
O identitarismo costuma cair neste negacionismo sociológico e particularismo exagerado, que tem como um de seus expoentes o pensamento do jamaicano pan-africanista Marcus Garvey, que acreditava que a África deveria ser reservada aos africanos e que se organizasse o regresso à África dos negros de outros continentes. Caso a teoria se concretizasse, negros vindos do outro lado do Atlântico constituiriam uma elite, e automaticamente poderiam se transformar em exploradores da mão-de-obra nativa. Garvey afirmou que os pretos emigrantes iriam “ajudar a civilizar as tribos africanas atrasadas”.
Os “Panteras Negras”, organização urbana socialista revolucionária, fundada por Bobby Seale e Huey Newton nos EUA, em outubro de 1966, aceitaram o marxismo e consequentemente os deixou contrários às teses de retorno à África, defendidas por Marcus Garvey. Os Panteras acreditavam que o país norte americano era a sua terra atual, não continente africano. Eram frontalmente contra o nacionalismo pan-africano, que pretendia estabelecer a cultura africana como a verdadeira cultura do negro estadunidense.
BBB não atua nas estruturas – o 'empoderamento' também não
Voltemos ao Brasil e ao programa de realidade assistida. Apesar de não refletir a sociedade brasileira e ser um recorte pobre para qualquer paralelo responsável, e ainda por receber manipulações diversas e imposições de narrativas, o BBB traz consequências desastrosas às lutas necessárias. Através de caricaturas, tenta passar a ideia de que é exagerado o combate ao racismo, às desigualdades de gênero e a homofobia. Ignoram que as cadeias brasileiras são quase que exclusivamente composta por pessoas pretas e pardas. Ou que a maioria esmagadora de crianças mortas por bala perdida são negras. Ou ainda que praticamente inexistam pretos em escolas particulares, faculdades e em restaurantes caros. Ignoram que a maioria das mortes por Covid-19 são de negros.
A sociedade brasileira é dilacerada por marcadores sociais e conflitos de classe, trazendo consigo um raro traço humanitário. As identidades que não se assemelham à cor de pele, religiosidade, orientação sexual e condição financeira dos perfis hegemônicos – ou que se pretendem como tal – são subalternizadas, folclorizadas e se tornam invisíveis. Ou pior: se reduzem a condições sub-humanas levando a genocídios frequentes em favelas e comunidades de povos originários.
O país acostumou-se com a barbárie. Aceita a desigualdade extrema como natural, entende o preconceito como uma proteção e vê o assassinato de alguém unicamente por ser homossexual como uma “justiça divina”. Vivemos a “banalidade do mal”, para trazer a expressão criada por Hannah Arendt, teórica política alemã, em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, sobre o julgamento de Adolf Eichmann – arquiteto do Holocausto, a Solução Final do nazismo. No Alemanha nazista as omissões foram coniventes; no Brasil de hoje também.
Identitarismo de boutique e palavras da moda como “empoderamento” não mexem nas estruturas e pouco influenciam para a formação de uma sociedade onde raça ou o fenótipo não constituam marcadores sociais estruturantes das relações sociais. A complexidade das lutas necessárias passa por identitarismo de boutique e programas de entretenimento. Mas, não podem se restringir as narrativas oportunistas de ambos, devendo ser de todos, espectadores ou não do BBB.
 
 
 

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    Edmundo Siqueira

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