Folha Letras - Crônica
* Arthur Soffiati 21/06/2018 18:49 - Atualizado em 22/06/2018 15:14
Continuarei fazendo coro ao consenso dos especialistas: a crônica é um gênero leve de literatura que nasceu no Brasil com Machado de Assis. Até hoje, estudiosos de diversas orientações tomam crônicas dele como lição para praticar o gênero. Mas teria sido Machado de Assis seu pai e mãe ao mesmo tempo ou devemos também dar um crédito a José de Alencar, ainda que não alcançado a leveza do autor de “Memórias póstumas de Brás Cubas”?
Afinal, como compreender o gênero crônica? Mário de Andrade e Cristovão Tezza teorizaram sobre ele. Mário limitou-se a dizer que a crônica se endereça ao jornal e à revista, predominando nela a literariedade, não a referencialidade, como no artigo. Em palavras simples, na crônica não há o compromisso do escritor com a precisão da realidade. Posso discorrer sobre uma topada não necessitando conhecer a arquitetura óssea do pé. O artigo é mais exigente, embora não requeira muito o lado literário.
Se a crônica nasceu no Brasil, assim como Deus, parece que ela foi exportada e praticada por escritores estrangeiros. Em 2017, foram republicadas “Cenas londrinas”, de Virginia Woolf (Rio de Janeiro: José Olympio). São escritos de dimensões medianas mas apresentam aspecto de crônica. O livro é um hino de amor a Londres. Em tom descomprometido, Virginia Woolf escreve sobre suas andanças por Londres: as docas, a maré de Oxford Street, casas de grande homens, abadias e catedrais, a Câmara dos Comuns, como uma legítima cronista. Por outro lado, Natália Ginzburg, em “As pequenas virtudes” (São Paulo: Cosac Naify, 2015) detestava Londres. Seu livro assume, em várias passagens, o tom de crônica longa. Foram publicadas também crônicas de Umberto Eco sob o título original de “Pape Satan Aleppe - crônicas de uma sociedade líquida”(Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2017). A meu ver, elas se assemelham mais a artigos. Eco iniciou sua colaboração na revista semanal “L’Espresso” em 1985 com a coluna “La Bustina di Minerva”. Esses artigos-crônica foram reunidos no espesso volume de “Pape”. O grande intelectual discorre sobre tudo praticamente. Não se trata de concordar ou discordar do autor. O que importa é reconhecer sua capacidade de abordar as questões do nosso tempo e de outros com leveza e profundidade simultaneamente.
Alguns dizem que o Brasil já teve grandes cronistas e que hoje não tem mais. O gênero brasileiro continua vivo. Em 2016, foram lançados “A máquina de caminhar”, de Cristovão Tezza (Rio de Janeiro/São Paulo: Record) e “Se for pra chorar que seja de alegria”, do octogenário Ignácio de Loyola Brandão (São Paulo: Global). Os dois autores conhecem a arte de escrever crônica e mantêm a tradição do gênero.
Tatiana Salem Levy, jovem escritora, lançou“O mundo não vai acabar”(Rio de Janeiro: José Olympio, 2017), reunindo crônicas quinzenais publicadas na revista “Valor Econômico” desde 2014. Tatiana é uma moça apaixonada pelo mundo e pela obra humana. Análise histórica não é o seu forte. Ela não consegue se distanciar do que examina. Olhando a sua volta, ela não vê sinais de declínio da civilização ocidental globalizada, mas não deixa de se preocupar com a questão. Diz, em suas crônicas, que vivemos numa época de transição. Ela usa um truísmo sem perceber. Num mundo em movimento permanente, vive-se sempre na transição. De onde saímos e para onde vamos? Da transição para a transição. Ela usa as expressões Antropoceno e capitalismo desenfreado sem qualquer aprofundamento. Não gosta do termo feminismo por repelir qualquer expressão que a aprisione. Defende o fim da guerra entre judeus e palestinos e um entendimento entre eles. Embora seja judia, ela não se apega tanto a sua condição como Moacyr Scliar.
Sua juventude não lhe permite clareza ao associar antropofagia e política internacional. Mas deseja ser clara. Para ela, o Facebook serve para proliferar banalidades, inflar o ego de seus usuários e nos fazer perder tempo. A autora se mostra perplexa quanto ao que fazer no presente. Tenta se aquietar com uma resposta fácil e vaga. Tatiana é mesmo passional. Ao acabar de ler “História do novo sobrenome”, de Elena Ferrante, ela teve “vontade de berrar, de subir as paredes, caminhar pelo teto, cravar as unhas na parede e arrancá-la (...) vontade de sair correndo, de dançar enlouquecidamente, de organizar uma festa e celebrar.” Sua passionalidade e sua ingenuidade deverão passar com o tempo. Ela escreve bem e deverá escrever melhor ainda quando compreender mais o mundo.
Outro judeu no Brasil (não consigo entender muito bem a noção de judeu) a ter suas crônicas reunidas em livro é Moacyr Scliar. Ele já deixou a Terra rumo ao sheol, mas legou-nos muitas crônicas espalhadas em “Zero Hora”, jornal de Porto Alegre com o qual colaborou durante 34 anos. As crônicas reunidas em “A nossa frágil condição humana”(São Paulo: Companhia das Letras, 2017) tratam do Estado de Israel e seu conflito com palestinos e demais países árabes. Ele sustenta que os judeus são como qualquer outra pessoa, mas não consegue convencer devidamente os não judeus. Pelo menos a mim, que descendo de italianos, mas sou brasileiro. Eu jamais diria que sou um italiano extraviado vivendo no Brasil.
Scliar era um socialista judaísta. Apesar de tudo, ele acreditava no sionismo e defendia Israel, país que idealizava. Mas também lhe fez ressalvas:“Erros foram cometidos nestes quarenta anos, erros graves até: frutos do fanatismo, da ambição, da ânsia do poder. Mas são os inevitáveis tropeços no caminho do amadurecimento.” Para ele, o “Sionismo nunca foi uma forma de racismo. O movimento sionista (...)adquiriu sua forma política no fim do século XIX, era apenas o equivalente judaico dos vários nacionalismos que então surgiam”. A questão é mais complexa. Scliar parece ingênuo na sua cruzada em favor de Israel e da paz no Oriente Médio.
Ao reconhecer a existência da sociedade de consumo, capaz de comercializar qualquer coisa, ele acaba de explicar também o projeto dos kibutzim, seu sonho de socialista. Dentro do capitalismo, o kibutz seria o sonho possível. Mas, ao escrever que o verdadeiro conflito atual no Oriente Médio trava-se entre fundamentalistas e modernizantes, ele parece mais desapaixonado. Israel estaria do lado modernizante. Ele nasceu de um pacote europeu encravado na região, diria eu.
Crônicas de Rubem Braga sobre intelectuais brasileiros foram reunidas em“O poeta e outras crônicas de literatura e vida”(São Paulo: Global, 2017). Seria ocioso afirmar que ele é o príncipe do gênero. Com elegância, ele implica com a Academia Brasileira de Letras e com Mário de Andrade. Homenageia Rodrigo Melo Franco de Andrade, Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Orlando Dantas, João Condé, Prudente de Morais, neto, Manuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco, Álvaro Moreyra, Mário Pedrosa, Clarice Lispector, Sérgio Milliet, Joel Silveira, Stanislaw Ponte Preta, Antônio de Alcântara Machado, Anibal Machado, Agrippino Grieco, Mário Quintana, Vianna Moog, Helio Pellegrino e Augusto Frederico Schmidt. Os intelectuais que Rubem Braga exalta adotavam posturas políticas diversas e até antagônicas, o que nos faz admirar mais ainda o cronista no nosso tempo de intolerância.
Nessa mesma linha, situa-se Otto Lara Resende. Seu clássico livro “O príncipe e o sabiá” foi reeditado pela Companhia das Letras (São Paulo: 2017). Numa escrita límpida, ele faz a apologia de vários amigos escritores e políticos. Já não se pode dizer o mesmo de Antonio Callado com suas crônicas reunidas em “O país que não teve infância” (Belo Horizonte: Autêntica, 2017), pois o escritor tinha posições políticas fortes. Mas, de modo nenhum, esse traço é um demérito para ele como escritor.
Por fim, a revelação para um leitor empenhado: uma seleção de crônicas de Luís Martins em “Melhores crônicas” (São Paulo: Global, 2017). Ele publicou mais de sete mil crônicas n’” Estado de São Paulo” durante 32 anos. Ele foi censurado por Getúlio Vargas pelo romance “Lapa”, de 1936, sobre prostituição. Retirou-se então para São Paulo. Foi casado com Tarsila do Amaral e com a contista Ana Maria Martins. Contando com um pequeno espaço diariamente, Luís Martins exerceu a arte da crônica como ninguém. Que Rubem Braga se cuide. Luís, sim, era capaz de escrever sobre o nada com elegância e leveza. Mas ele escrevia também sobre diversos temas, sempre de forma sucinta, dando a impressão de que não conseguiria entrar no assunto antes do fim. E sempre dava. “Devemos respeitar a silenciosa dignidade dos animais chamados inferiores — não os obrigando, por malícia humana, a se intrometerem nos complicados negócios dos homens.”“Ao contrário do personagem de Machado de Assis, eu abomino a espécie e amo o indivíduo.”“... no momento a única coisa que sinceramente desejaria descobrir era o jeito de terminar esta crônica.”“um decênio, no mundo vertiginoso em que vivemos, corresponde a quase um século.”“há muito desisti de entender o que está havendo neste País”. “Antigamente, ninguém morria de enfarte do miocárdio nem de distúrbios coronários; morria-se do coração. Nossos avós não conheceram o acidente de automóvel, o desastre de avião, a poluição atmosférica; e o próprio câncer (aliás, tumor maligno, na terminologia da época) ao que parece, não fazia tantas vítimas.” São passagens antológicas do cronista. Curiosíssima é a crônica sobre o encontro que Mário de Andrade marca com ele para um ano depois: “Ao L.M., confirmando o encontro marcado para 15 de dezembro de 1942, no bar do Esplanada, o Mário de Andrade. S. Paulo, 15 de dezembro de 1941”. Martins morreu em 1981 num acidente de carro. Fiquei encantado por conhecê-lo.

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