Capítulo 20: A outra face da verdade
07/09/2017 18:10 - Atualizado em 08/09/2017 13:56
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Anteriormente em Quando Nasce um Ser Humano:
“Silenciosamente, os policiais se posicionam ao lado da porta, estão prontos para entrar. O líder dá o sinal para que arrombem.
***
Minutos antes
(...)
Tango a soltou, seus pés cederam às suas pernas que não teve forças para suportar o peso do seu corpo. Tremendo, ela agachou e se recostou na parede, olhando de baixo Tango aparentava ser ainda maior. Observou-o ir até a porta com alguns amassados e arranhões, onde supostamente estaria seu pai.
O malfeitor enfiou a mão no bolso e tirou um pequeno chaveiro com uma grossa chave em formato cilíndrico, colocou-a na porta e girou.
Jéssica escutou o barulho da grande porta ao ser destravada, ruindo e impregnando sua pele, que se arrepiava ao escutar cada decibel daquele ruir.
O quarto estava aberto.”
Já era noite quando os policiais arrombaram a porta de madeira da casa e entraram todos checando cada cômodo e certificando-se de que não havia ninguém.
Os móveis de madeira, uns estavam quebrados, outros corroídos por cupins ou escassez de cuidados. Havia uma crosta de poeira por todo o piso de tábuas, as janelas quebradas, outras remendadas com lascas de pau que as cobriam por completo, vedando a casa.
Foi uma grande decepção quando Erasmo entrou pela porta caída e não achou sua filha. Pensaram ter recebido uma pista falsa, talvez algo forjado.
Os investigadores vasculharam a casa em busca de alguma prova, ou algum indício de que ali fora o cativeiro antes da polícia chegar, mas nada indicava tais circunstâncias; aparentava ser uma casa de família, abandonada, talvez pela morte de alguma pessoa sem parentes ou herdeiros. Havia bons materiais que um dia tiveram valor e com certeza alguém os pegaria se lhe pertencesse. A casa estava aos pedaços e da sala podia-se ver todo o céu estrelado com uma beleza que não é possível ser vista da cidade grande.
Erasmo chorou toda a sua decepção, suas expectativas frustradas. Lágrimas que escorriam como ácido, queimando por dentro as suas esperanças. Lágrimas de sangue, que escorrem pesadas, fazendo o seu corpo trepidar. Lágrimas condenadas, sentia-se culpado pelo sequestro de Jéssica. Como não haviam pedido uma recompensa até o momento, não descartava a possibilidade de que fosse por motivos políticos.
Ao voltarem até o carro, a noite os engolia por completo, só era possível enxergar com as lanternas acopladas às armas dos policiais, as quais tinham longo alcance. As árvores espessas e compridas se aglomeravam ao final com seus galhos e folhas, o que impedia a passagem da luz lunar, fazendo com que seus reflexos moldassem um tipo de simetria artística à medida que iam andando. Os sons ensurdecedores de cigarras cantando os acompanhavam a todo passo, era possível escutar outro som de algum animal maior, mas Erasmo não teve medo, estava em um grande grupo.
Rápidas passadas eram dadas em direção ao carro, chegando à estrada, todos iluminam o interior da caminhonete roubada. Se não fosse pelas circunstâncias norteadoras daquele momento, esse seria um lindo espetáculo, as luzes refletiam pela lataria desgastada, resplandeciam neles mesmos e se perdiam na imensidão da noite.
Um dos policiais enfiou um pino de aço em uma das portas e logo a destrancou. Entrou na caminhonete, vasculhou tudo, não havia nada. Abriu o porta-luvas com cuidado para não tirar as digitais, caso houvesse alguma, e viu um envelope de carta com as seguintes palavras grafadas:
“Aqui se encontra a minha alma”.
***
(No Cativeiro)
Com um gesto cortês, que lembra a época medieval, curvando-se ao abrir os braços com as palmas das mãos abertas descrevendo um semicírculo, Tango indica que Jéssica poderia entrar no quarto. Ela une forças para se levantar e ao caminhar até a porta sente seu coração cada vez mais acelerado, sente como se levitasse, o formigamento que sobe pelo seu corpo a impede de sentir seus pés tocarem o chão.
Ao entrar no quarto depara com o susto de uma beleza doentia. Era lindo, todas as paredes decoradas em azul e branco, havia roupinhas de bebê em cima de uma estante, do outro lado, fraldas. Havia um berço branco com roupa de cama de carrinhos azuis. Acima, um cordão com aviõezinhos pendurados. O ambiente era muito bem iluminado com luzes embutidas no teto, cobertas com um vidro esfumaçado, de modo que os raios de luz não machucavam os olhos. Tudo se encontrava em perfeita harmonia.
Jéssica reparou que Tango tinha uma preferência por menino. Com toda aquela preparação, aparentava ser inadmissível ter uma menina, não havia nenhum objeto feminino no quarto, nada que indicasse que uma garota seria bem-vinda naquele local. Imaginou o que aconteceria se a tivesse.
Ao olhar para a porta de ferro com tranca para o lado de fora, entendeu que o bebê a entrar naquele quarto jamais sairia, ficaria para sempre trancado. Ela logo notou que não havia ninguém ali, como então poderia ter ouvido uma conversa vindo daquele local e deduzido que era seu pai?
Tango vai até um criado-mudo onde repousava um pequeno MP3, pega-o e dá play. A voz de seu pai tomara todo o ambiente convergindo para os ouvidos de Jéssica, que ouvia extasiada. Tango deixou tocar apenas uma frase e parou. Repetiu o que ele falava imitando a entonação e a maneira de falar. Tocou mais uma frase de seu pai em uma entrevista; imitou novamente, mais uma frase e emendou com pequenos gritos sufocados: “Não! Volta! Por favor!”, com o sotaque e a maneira de falar de Erasmo.
Com todas as provas e circunstâncias de que seu pai fora sequestrado, uma espessa parede ao lado distorcendo o som que chegava aos seus ouvidos, a preocupação e o desejo de reencontrar seu pai, sua mente tenderia a identificar qualquer tom de voz como a de Erasmo e Tango sabia disso. Enganara Jéssica mais uma vez.
Pensava enquanto recuperava o senso de realidade de que fora enganada, lembrou do vídeo e o contestou. Tango, com a calma que carregava em si, pegou o celular, aproximou-se rente ao seu lado e mostrou a ela: era um trecho de um filme onde um homem, refém de guerra, sofrido e torturado, encontrava-se amarrado à uma cadeira enferrujada. O corpo era bem parecido com o de Erasmo, um senhor de 70 anos, em forma, provavelmente um oficial. Tango deslizou o dedo na tela do aparelho e a foto do pai de Jéssica apareceu. Passou o dedo em volta da cabeça, como se acariciasse a foto. Automaticamente o aplicativo do celular recortou o rosto da foto e retornou ao vídeo. Tango pressionou o dedo em cima do tracejado e o aplicativo fez a montagem do rosto de seu pai para o rosto do homem, mudando a textura, agregando o pano molhado e sujo que tapava a sua visão, alguns arranhões e o suor. Em menos de dois minutos, estava pronto e não havia como discernir que não era ele ali.
— Custou seis reais – diz Tango, ao se referir ao aplicativo.
Jéssica estava completamente desnorteada, não sabia mais em que acreditar.
— Você achou que eu sequestraria alguém? Eu sou incapaz de cometer tamanha maldade com alguma pessoa. Ainda mais seu pai, que foi o genitor do ser que mais amo. O ser que me dará o meu maior tesouro.
Oh, meu deus! Jéssica pensou no bebê, na gravidez. Mas agora é tarde, não tinha mais volta, fora enganada, não havia como desfazer a gravidez naquelas condições.
Percebe com os dizeres de Tango – incapaz de tamanha maldade – que ele talvez realmente pense que não a sequestrou e pense ser uma boa pessoa fazendo uma boa ação.
A agressividade de Jéssica aos poucos aumenta, é possível ver o bufar entre os dentes trincados na sua boca. Tango repara na mão fechada contra a barriga, receia que o sentimento tenha se voltado contra o seu filho.
— O ódio fará crescer o inferno dentro de você.
— Ele já está dentro de mim!
Jéssica corre até a porta e pega o chaveiro. Corre, mas seu corpo está frágil e é capturada por Tango no corredor, abraçando-a por trás. Antes que ele pudesse voltar a apertá-la, ela empunha a chave cilíndrica com cravas por toda a direção e enfia no pescoço de Tango, bem no início, onde começa o ombro.
Acometido por uma imensa dor, talvez tenha acertado o seu nervo, Tango cai com as mãos banhadas em sangue, que pulsava de seu pescoço. Jéssica continua a correr, nervosa, exalando gemidos de força a cada passada que seus músculos se redobravam em dar, cada vez com mais força. Seus olhos sentiam a pressão do vento bater com a corrida, sua mente decolava e já podia ver o horizonte fora daquela prisão. Ela finalmente conseguiria.
Desceu as escadas correndo, tropeçou, teve medo de cair, sua visão vertiginou ao olhar a altura da qual cairia, mas segurou no corrimão e tudo ficou bem. Recuperou o fôlego, correu até a primeira porta, estava aberta, seu sonho se aproximava cada vez mais da realidade. Só faltava uma porta e, dali em diante, sua vida a esperava para ser vivida.
Correu o máximo que pôde e deixou seus ombros baterem contra a porta na intenção de arrombá-la, sem antes mesmo ver se estava aberta. Aproveitara o impulso da corrida para lhe dar mais forças, o que lhe causou uma enorme dor nos ombros, pois bateu de mal jeito e sentia tê-lo deslocado de tanta dor.
Tentou abrir a porta, mas estava trancada, chutou-a com a maior força que podia, chutou-a novamente, mais uma vez, outra vez. Suas pernas já não estavam respondendo, desgastara-se muito. Batia com os braços, gritava de desespero, jogou seu ombro novamente contra a porta, não se importou em quebrá-lo contanto que saísse dali. Jogou-o mais uma vez e chorou, esperneou espancando aquela maldita porta.
Um estrondo a fez olhar para trás, era Tango. Ensanguentado, sofria para manter seu corpo em pé, mas isso não o abalaria em deixar a sua presa escapar. Havia algo na sua mão direita. Era uma seringa com uma agulha acoplada e um líquido marrom, alguma droga que Tango devia ter guardado caso fosse preciso usar em momentos como esse; já tinha previsto até mesmo que isso poderia acontecer. Ela não queria imaginar o que aquela droga faria em seu organismo.
Jéssica bateu com mais força na porta enquanto Tango se aproximava, bufando e prendendo com a palma da mão esquerda o sangue que jorrava do seu pescoço, já o havia deixado pálido. Aquelas últimas batidas foram o último lapso de energia de Jéssica, sentiu seu corpo amolecer e a visão vertiginar. Ao olhar para trás, Tango já estava rente a ela, com a vacina injetada em seu pescoço. Ela nem mesmo sentiu e apagou logo depois.
Continua...
Por Fabio Bottrel

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