Arthur Soffiati: Itacuruçá - 1956
* Arthur Soffiati 13/01/2024 08:34 - Atualizado em 13/01/2024 10:40
Depois de passar 9 anos peregrinando por Campinas, Curitiba e Paranaguá, voltamos ao Rio de Janeiro. Fomos morar no apartamento que meu avô deu de presente de casamento para minha mãe. Ele ainda existe no final do Cosme Velho. Só então fui matriculado numa escola. Eu contava com nove anos de idade. Estava bastante atrasado.

No fim de 1956, no nosso primeiro ano de Rio de Janeiro, meu pai decidiu passar férias em Itacuruçá, distrito de Mangaratiba. Não sei o motivo da escolha. Lembro que, na época, meu pai comprou livros de tupi e resolveu estudar a língua geral do Brasil, aquela que os missionários escolheram para catequizar os povos encontrados pelos europeus nesse território que se transformou no Estado nacional brasileiro a partir de 1822. O interesse do meu pai não passou de curiosidade. Ele explicava que Itacuruçá significa pedra da cruz. Ita é pedra em tupi, mas curuçá foi uma palavra criada para designar cruz. Não conseguindo pronunciá-la, os nativos falavam curuçá, assim como chamava cavalo de cabaru. O estudo do meu pai resumia-se a curiosidades.

Fomos para Itacuruçá não sei por que meio de transporte. Acho que meu pai já tinha uma baratinha com apenas o banco da frente, em que sentavam os quatro membros da família e viajavam apertados. Hospedamo-nos num hotel sofrível, bem de acordo com nossa renda familiar. Só não sei bem por que um casal de tios nos acompanhou em outro carro. Eles não estavam acostumados a passar férias em lugares como aquele. Eram mais exigentes. Contudo, passaram conosco o mesmo tempo em que nos hospedamos lá e no mesmo hotel. Tenho a lembrança clara de minha tia reclamar que meu tio havia ferido sua perna com a unha do pé quando dormiam.

A distração da minha mãe, do meu irmão e minha era tomar banho de mar de manhã. De tarde, tomávamos sorvete. De manhã e de tarde, meu pai ficava sentado num bar tomando cerveja. Certa manhã, eu estava sozinho na praia sob o olhar vigilante do meu pai sentado numa cadeira do bar. Um menino mais novo do que eu começou a se afogar um pouco mais longe. Dei uma de salva-vidas. Aproximei-me do menino para ajudá-lo. De forma muito estranha, pareceu que ele saltou da sua condição de afogado, como se tomasse impulso em alguma base sólida no fundo do mar, e pulou nas minhas costas. Ele me empurrava para baixo. Passei da condição de salva-vidas para a de afogado. Eu não tinha nenhuma técnica de salvamento aos nove anos. Só a intenção de ajudar.

Do bar, meu pai viu tudo e acionou ajuda. Um homem forte foi nos tirar daquela situação perigosa. Hoje, sei que os dois meninos de idades próximas não tinham a mínima experiência para tomar banho de mar. Nas vezes em que fui ao Rio visitar parentes, quando estava fora, evitava o mar por medo. Acho que, depois da experiência frustrada de salva-vidas, tornei-me mais ousado.

Não posso precisar se nossas férias em Itacuruçá ocorreram em 1956 ou 1957. Preciso de tempo cronológico para encaixar todas as lembranças de infância que carrego comigo. Mas isso não importa muito. O que conta é eu registar essas memórias para mim tão somente porque elas não apresentam qualquer interesse para outras pessoas. Creio que ninguém se interessará pelas férias de um menino tímido em Itacuruçá, lugar em que quase se afogou ao tentar salvar outro menino mais jovem.

Tudo indica, porém, que essas férias estranhas ocorrerem em 1956, pois estreava o filme “O gato de madame”, roteirizado e dirigido por Agostinho Martins Pereira. Tenho esse filme em DVD e reassisti a ele recentemente. O papel principal é desempenhado por Mazzaropi, já conhecido. Nele, estrelava Odete Lara, que, posteriormente será uma das musas do Cinema Novo.

O filme estava sendo exibido no único cinema de Itacuruçá. Com censura livre, pude vê-lo. Fiquei impressionado com a beleza de Odete Lara. Mais tarde, esse encantamento aumentou. Ela trabalhou em vários filmes ao lado de Norma Benguell, que ostentava sensualidade. Mas a beleza clássica de Odete Lara parecia insuperável para uma criança e adolescente tímido que sentia muito o mundo.

Não sei quanto tempo duraram essas misteriosas férias. Seis pessoas participaram dela. Quatro já morreram. Creio que, enquanto vivas, essas férias nada significaram para essas pessoas. Meu irmão ainda vive, mas não se recorda de quase nada de sua história. Da minha parte, fiquei marcado por minha trajetória. Embora tendo lapsos de memória, essas antigas recordações pululam em minha mente e pedem para ser registradas. De Itacuruçá, ficaram as lembranças do meu afogamento e da descoberta de Odete Lara. A idade deixa a gente comovido como o diabo. Parodio Drummund.

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