Jogo de palavras
Ronaldo Junior
Fonte: Pixabay
A constância dos barulhos que cortam aquele asfalto – em caminhões carros motos bicicletas passos – faz da avenida vários pedaços cíclicos do mesmo lugar, sempre outro sob as mecânicas de cada instante, sempre o mesmo na alma de uma rua atravessada de rotinas.
 
O sinal fechava, e a fila de carros se amontoava até quase alcançar a segunda esquina, a perder de vista. Era um vermelho demorado para os que esperavam, mas também uma pausa forçada no meio do dia. Os pedestres se adiantavam para atravessar a extensão da faixa e n f i l e i r a d a enquanto os motoristas aproveitavam para mexer no celular.
 
Naquele momento de suspensão, surgia um menino que, de carro em carro, mostrava uma pequena caixa para os motoristas. A grande maioria, vidro fechado, sequer olhava para o lado. Outros, porém, desprendiam os olhos do celular e acabavam espantados não apenas pela pouca idade do garoto, mas pelo que ele oferecia.
 
Quanto é?, um curioso perguntou. O que é pra você?, o moleque devolveu.
 
Em diversos tamanhos e fontes e cores, palavras de jornais e revistas formavam um pequeno bolinho de papel que forrava todo o fundo da caixa levada debaixo do braço e aberta para poucos olhos.
 
Acompanhando o menino, um homem recitava poemas entre os carros com sua voz densa enquanto se esquivava das motos que cortavam caminho. Via o pequeno repetir seus passos de décadas naquele semáforo: dando aos motoristas a possibilidade momentânea de descobrir o valor das palavras e da liberdade de tê-las. Desde os primeiros anos, o garoto aprendia e ensinava que palavra não é algo que se usa de graça, nem algo que necessariamente se compra com dinheiro.
 
Não era um doce, nem uma bugiganga, mas uma palavra, banal e corriqueira como esta.
 
Cê vai querer uma só ou vai levar um jogo?, ele perguntava, oferecendo possibilidades numa frase inteira. Os motoristas que o conheciam já abriam um sorriso, mas os que só estavam de passagem torciam o nariz e até debochavam. E o menino seguia seu caminho enquanto ouvia o companheiro recitar versos.
 
Palavra, como os passantes habituais chamavam o homem, deu origem ao apelido do menor, Palavrinha. E o semáforo não tinha apenas o vermelho fatigante de parar os carros, mas também a possibilidade de expressar em gestos o que nem sempre as palavras conseguem dizer.
 
*Esta crônica faz parte da série “Cenas urbanas”.
**Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Sobre o autor

    Ronaldo Junior

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.