A justiça e a Corte - Ucrânia e Rússia na ONU
Edmundo Siqueira 23/09/2023 14:20 - Atualizado em 23/09/2023 14:31
Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, na Holanda.
Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, na Holanda. / Foto: Reuters
As definições e as origens do que entendemos por justiça não são novas, muito menos consensuais. À medida que as relações humanas foram se tornando complexas, houve necessidade da criação — ou da consciência coletiva de sua necessidade — de um ente de integridade moral que julgasse não apenas os governados como os governantes.

A justiça, ou o poder judiciário, remonta da Grécia Antiga, onde dois dos principais pensadores se dedicaram a definir o que ela seria. Platão a definiu como um caminho para a “harmonia social”, já Aristóteles, seu discípulo, pensou a justiça como uma forma de garantir a igualdade proporcional. Ou seja: tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais, na proporção da sua desigualdade.

Em sua obra prima — e essencial para compreender o que vivemos ainda hoje —, “A República”, Platão nos conta uma história mitológica, onde Céfalo, um dos personagens do livro, diz que a justiça consiste “em dizer a verdade e devolver ao outro o que se lhe tomou”.

Essa imagem de justiça como restituição, é um conceito caro a uma instituição jurídica fundada em 1945 como o principal órgão judiciário da ONU (Organização das Nações Unidas): a Corte Internacional de Justiça.

A Corte tem um capítulo inteiro dedicado a ela na Carta das Nações Unidas, e seu Estatuto é parte integrante do mesmo documento. Diz o décimo quarto capítulo da Carta da ONU: “A Corte Internacional de Justiça será o principal órgão judiciário das Nações Unidas (…), baseado no Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional”, e que “todos os membros das Nações Unidas são ipso facto partes (pelo próprio fato, ou consequência automática) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça”.

A Carta das Nações Unidas é o documento constitutivo da ONU, aprovado por 50 governantes e diversas entidades, em 25 de abril de 1945, em São Francisco, no estado americano da Califórnia.

Guerra na Ucrânia

Em 26 de fevereiro de 2022, três dias após a invasão russa, a Ucrânia entrou com uma ação na Corte Internacional de Justiça (CIJ), questionando a legalidade da invasão e as alegações russas de que a Ucrânia teria cometido genocídio. A Ucrânia já havia acionado a CIJ em 2017 no contexto da invasão da Crimeia, e a situação da Ucrânia também está sob investigação do Tribunal Penal Internacional (TPI) desde março de 2022, bem como foi objeto de petição à Corte Europeia de Direitos Humanos.

Embora possam soar parecidos, o TPI e a CIJ são órgãos jurídicos diferentes, com atribuições distintas. O Tribunal foi criado pelo Estatuto de Roma, um tratado internacional do final dos anos 1990. Autônomo e interdependente, o TPI atua em parceria com a ONU, mas não é subordinado à ela, enquanto a Corte é vinculada diretamente às Nações Unidas.

Há outra diferença fundamental: o Tribunal Penal Internacional julga indivíduos, pessoas acusadas de crimes de maior gravidade e de alcance internacional como genocídio e crimes de guerra. A Corte Internacional de Justiça julga os Estados.

No pedido à CIJ, a Ucrânia questionou a alegação da Rússia para a ofensiva militar. Os russos justificaram a invasão ao país como necessária para impedir o crime de genocídio que supostamente estaria acontecendo no leste da Ucrânia. Nessa caso, a Corte julga se houve violação da Convenção do Genocídio por parte da Rússia, o que acontece caso a alegação seja um pretexto falso para interesses territoriais.

O conflito entre os países se intensificou em 2014, em uma disputa pelo território da Crimeia, que foi anexada pela Rússia naquele ano. Os ucranianos resistiram à tentativa de controle e expansão russa, e desde 2021 a presença militar de tropas russas na fronteira entre os países aumentou significativamente, até a invasão em fevereiro do ano seguinte.

A Corte na guerra

Letícia Machado Haertel, mestre em Direito e especialista em Direito Internacional com ênfase em Direitos Humanos, e assessora na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Costa Rica), explica que a Rússia “optou por não aceitar a sua jurisdição sobre qualquer disputa a envolvendo”.

Letícia Machado Haertel
Letícia Machado Haertel / Reprodução
“O caso que tramita perante a CIJ é extremamente complexo. Apesar de ser um Estado-parte do Estatuto da Corte, a Rússia optou por não aceitar a sua jurisdição sobre qualquer disputa a envolvendo, o que faz com que a Corte só possa avaliar a invasão da Ucrânia caso a situação represente uma violação de algum tratado ratificado pela Rússia que preveja especificamente o recurso à CIJ em caso de disputas”, explica Letícia.


No âmbito do Direito Internacional, foi instituída a “cláusula facultativa de jurisdição obrigatória”. Esse dispositivo recebe o nome de um ex-diplomata brasileiro, Raul Fernandes, e surge ainda nos trabalhos preparatórios do Estatuto da CPJI (Corte Permanente de Justiça Internacional, antecessora da Corte Internacional de Justiça).

A ideia central era tornar a CIJ um órgão de jurisdição obrigatória ao conjunto da comunidade internacional, sendo todos os Estados do Tratado Constitutivo das Nações Unidas automaticamente parte no Estatuto da Corte. A especialista em Direito Internacional avalia que o argumento da Ucrânia é “inovador”:

“A Ucrânia estruturou toda sua argumentação com base na Convenção sobre Genocídio de 1948, cujo artigo IX prevê a remissão do caso à Corte. Para tal, argumenta que a invasão da Ucrânia pela Rússia foi conduzida com base em um ‘falso pretexto’ de que a Ucrânia teria cometido genocídio da região do Donbas, o que configuraria uma utilização de má-fé da Convenção. O argumento é inovador e sem precedentes, de forma que não é possível antecipar se a Corte irá admiti-lo. O fato de que a Corte determinou em março de 2022 que o pleito ucraniano possuía fundamento o suficiente para que ela pudesse conceder uma tutela provisória, contudo, sinaliza que a Corte ao menos considera admitir o caso e proceder à análise de mérito da disputa”.

O litígio internacional julgado na CIJ ganhou contornos favoráveis ao país autor da ação, quando, em decisão preliminar, a Corte foi favorável à Ucrânia. Com base nessa decisão, foi ordenado que a Rússia cessasse imediatamente as ações militares no país vizinho, o que não foi obedecido.

A Rússia pede o arquivamento do caso, disputando frontalmente a jurisdição da Corte sobre o caso e, no mérito, alegando que teria agido por motivos justos. Os russos ainda acusam a Ucrânia de usar a CIJ como parte de sua narrativa, buscando convencer o mundo da ilegalidade da invasão.

A Corte, por sua vez, iniciou as oitivas dos representantes dos países em guerra. Na última terça-feira (19), Anton Korynevych, representante da Ucrânia, disse aos juízes que os russos estão usando "uma terrível mentira" para atacar seu país.

“A comunidade internacional adotou a Convenção sobre Genocídio para proteger. A Rússia invoca a Convenção sobre Genocídio para destruir. Um Estado pode usar falsas alegações de genocídio como pretexto para destruir cidades, bombardear civis e deportar crianças de suas casas? Quando a Convenção sobre Genocídio é abusada de forma tão cínica, este tribunal é impotente? A resposta a essas perguntas deve ser ‘não’”, disse Korynevych na CIJ.
Foto: UN Photo/ICJ-CIJ/Frank van Beek


Um dia antes, a Rússia havia pedido à Corte que rejeitasse o caso, alegando que os ucranianos estariam usando argumentos “irremediavelmente falhos". Embora a CIJ não tenha poder coercitivo, uma eventual decisão a favor da Ucrânia poderá servir para reparações e compensações futuras por parte da Rússia.

Justiça e guerra de informações

Para além das narrativas, as guerras podem — e devem — ser regidas por leis. Apesar de haver Tribunais e Cortes que julgam nações, o Direito Internacional não é uma força independente acima dos Estados, mas sim um esforço jurídico refletido em tratados e acordos que dependem essencialmente da adesão dos países para que ele funcione efetivamente.

Em qualquer conflito bélico, existem duas guerras em curso, uma que acontece nos fronts e outra de informações. Nos estudos da Escola Ibérica da Paz, consolidada no período de edificação dos impérios de Portugal e Espanha, a doutrina do "crime contra o gênero humano", ou "crimes contra a humanidade" surgem como instrumentos e princípios norteadores do direito internacional, que versa sobre guerra e informação, mas fundamentalmente sobre direitos humanos.

“O caso [Ucrânia X Rússia] escancara algo que nem sempre é levado em conta ao se analisar a atuação de Tribunais Internacionais. Apesar de serem instituições jurídicas por natureza, isso não as torna imunes a forças políticas que podem ser decisivas no resultado de determinados processos – independentemente da avaliação destes resultados como positivos ou negativos. No caso em trâmite perante a CIJ, 32 outros Estados se legitimaram como “interventores” e somam seus argumentos ao pleito Ucraniano, algo absolutamente sem precedentes e que ilustra o interesse (e investimento) da comunidade internacional em impactar este processo”, analisa Letícia Heartel.


Cabe à Corte Internacional de Justiça se ater aos princípios norteadores do direito, estes comuns a todo ser humano, de toda sociedade que habita o planeta. Direito de viver em tempos de paz, mas também de ouvir o personagem platônico Céfalo, e garantir a verdade e quem sabe devolver ao outro o que lhe tomaram.

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