Fecha aqui, por favor, preciso ir embora
Edmundo Siqueira 07/08/2022 00:44 - Atualizado em 07/08/2022 11:17
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Aqui na cidade é costume os bares começarem a encher lá pelas onze horas, onze e meia. Os amantes da noite de Campos gostam mais da madrugada, nunca entendi bem o porquê.
Há algum tempo, era mais jovem e solteiro, e as saídas eram mais frequentes. Praticamente todas as semanas; começava nas quintas. Numa dessas acabei percebendo que era mais notívago que diurnal, mesmo. Não somente para os bares e outros eventos, mas também em outras searas. Acho que para quem cultiva a necessidade — mais que o hábito — de escrever, as noites são melhores. Seja para o ato intelectual solitário, ou para convivência pessoal, sempre mais rica em mesa de bar.
Numa dessas quintas pedi a conta mais cedo, contrariando os conterrâneos goytacá.
— Fecha aqui, amigo, por favor — pedi a Assis, dono do Terapia´s Bar, que na época era ali perto do Liceu.
O Terapias era um ponto frequente para algumas cervejas, e às vezes uma língua bovina com batatas, feita por Dona Ângela, esposa de Assis. O bar era costumeiramente frequentado por gente do jornalismo e da intelectualidade campista. Wellington Cordeiro, Esdras Pereira, Orávio de Campos, Jorge Rocha, Vitor Menezes, Aluysio Abreu Barbosa, e tantos outros. Joca Muylaert era habitué.
— Foram três cervejas, um cigarro e uma dose de uísque — disse um taciturno Assis, que estava para pouca conversa, chateado com a derrota do Botafogo na noite anterior.
Peguei as chaves do carro que estava no balcão, conferi os bolsos, acenei para Dona Ângela e entreguei o uísque ao Joca, que havia me pedido, e estava sentado na mesa de esquina. “Carga rápida”, dizia ele sobre o bourbon. Ainda de pé o abracei, arqueando o corpo, e disse que precisava ir mais cedo.
O motivo da antecipação da volta para casa era o "Programa do Jô". O talk show que Jô Soares apresentava nas madrugadas da Rede Globo. Naqueles tempos não havia algum YouTube que permitisse ver o programa depois. Havia umas repetições, um canal de TV a cabo que passava programas antigos e a possiblidade de gravar o programa no videocassete. Mas parecia ser mais especial ver na exibição primeira do programa.
Nos dias que não saía era mais fácil e inevitável assistir Jô. Se no outro dia precisasse acordar mais cedo, era obrigado a perder o programa, mas não sem lastimar silenciosamente antes de dormir. Ainda não trabalhava, fazia apenas a Uenf, e podia me dar ao luxo de dormir tarde para ver um programa de televisão e ainda me achar notívago, igual ao apresentador.
Naquele dia a entrevista era com Ariano Suassuna. Imperdível. Suassuna, autor de "Auto da Compadecida" e "O Romance d'A Pedra do Reino", poeta, advogado e professor, era sempre uma aula. Ele e Jô Soares, uma magna.

Ainda na casa dos vinte e poucos, sem streaming e com pouca opção de qualidade nas produções televisivas, o Programa do Jô era um oásis para mim na TV aberta. Claro, havia o cinema e os livros, mas aquele gordo das madrugadas fazia parte da minha formação cultural. O Jazz e o Blues chegaram a mim, também, pela porta analógica que Jô abria nas madrugadas.
O Jô era — muito — além daquele programa. Poliglota, quase diplomata de carreira, ator, músico, produtor cultural, escritor e dono de uma opinião política coerente e corajosa. Um democrata, convicto, como todos que se prezem. O Jô falado era tão bom quanto o escrito, e isso não é tão fácil e corriqueiro para um intelectual. Era um privilégio poder acompanhar suas entrevistas.
A obra literária de Jô Soares chegou para mim aos poucos. "O Xangô de Baker Street", de 1995, que virou filme, e "O Homem que Matou Getúlio Vargas", de 1998. Todos mais tarde. Sim, inicia-se na juventude jovem, mas me acompanha depois.
Quando abandono definitivamente o esquema faculdade-cinema-bar-televisão, sentia saudades do gordo. Mas sabia que o conhecimento apreendido estava comigo. Assistir Jô na TV era uma espécie de credencial, nos tempos juvenis. Depois, uma forma de alicerçar outras formas de adquirir cultura.
Mesmo sem mais assisti-lo na TV, soube de um quadro novo do seu programa: “Meninas do Jô”. Ali ele recebia jornalistas para formar uma roda de conversa sobre o momento político do Brasil. Esse quadro assisti algumas vezes já com a facilidade de redes sociais, em horários possíveis dentro dos poucos momentos de liberdade que o capitalismo concede.
Sem qualquer incoerência, o 'Meninas' era tão profundo quanto descontraído, e trazia mulheres para o centro do debate político em um contexto que isso era absolutamente necessário. O quadro foi ao ar até 2016. “Para mim, em todos esses 28 anos, a coisa mais gratificante foi a criação do ‘Meninas do Jô’”, disse Jô Soares.
Não conheci Jô pessoalmente, não fui ao auditório do seu programa, não entreguei um livro em suas mãos para que ele o autografasse. Esses privilégios, não tive. Mas, nos bares notívagos de Campos — mesmo no Terapia´s que sempre fechou cedo —, pude tê-lo à mesa, pois internalizados estavam os aprendizados de cultura, refino literário, irreverência ácida, simplicidade sofisticada e a certeza que escrever e aprender são mais que hábitos. São, para alguns, condições essenciais para viver 84 anos, ou mais.
Gabriela Biló
"Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. Estou no soprar dos ventos, nas tempestades de verão e nos chuviscos suaves da primavera. Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. Estou no brilho das estrelas e no cantar alegre dos pássaros. Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá, eu não morri". Mary Elizabeth Frye.

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