Arthur Soffiati - Pró-manguezal
* Arthur Soffiati 30/11/2024 09:26 - Atualizado em 30/11/2024 09:26
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação
No Brasil, é assim: os governos federal, estaduais e municipais promulgam uma lei que, se cumprida, alcançaria seus objetivos. Mas, geralmente, isso não acontece. Então, os governos editam outra como se, agora, ocorrerá seu cumprimento. E assim vamos acumulando leis de tal modo que se torna possível distinguir um país legal de um país real. Comparando os dois, conclui-se que tudo corre às mil maravilhas no país legal, mas que, no país real, a situação é lastimável.

Sociedade que precisa de muitas leis é sociedade doente. A lei é como uma receita de remédio não tomado. Nas receitas, uma pessoa pode passar bem. Na realidade, passa muito mal. Voltando a atenção para as sociedades ágrafas, até pouco tempo atrás chamadas de sociedades primitivas, constataremos que, nelas, as instituições são respeitadas sem necessidade de leis escritas e instâncias responsáveis pelo seu cumprimento. Não havia sistema de escrita e todos internalizavam princípios e os respeitavam.
No mundo dominado por uma economia de mercado, a “lei” é descumprir as leis. Dito de outra forma, para controlar o individualismo, as leis se tornam necessárias, mas insuficientes. Durante 15 anos, acreditei nelas e colaborei com o Ministério Público. Afastei-me desolado.
Tomemos o caso do manguezal. Trata-se de um ecossistema intertropical que se desenvolve em todo o planeta Terra. É uma formação pioneira de influência fluviomarinha. Pioneira porque vai na frente. Fluviomarinha porque se adaptou aos ambientes estuarinos. O estuário é, em si, um ecossistema formado pelo encontro da água doce do rio com a água salgada do mar. Encontramos estuários dos círculos polares à linha do equador, mas o manguezal só se desenvolve nos estuários da zona intertropical, indo pouco acima e pouco abaixo dela. Plantas de manguezal também se enraízam em praias tropicais protegidas de fortes ondas e correntes, em lagoas costeiras e até em costões rochosos.
No Brasil, o manguezal é protegido por lei desde o século XVIII, o que não significa bem protegido. Pelo Código Florestal de 1965, ele se tornou Área de Preservação Permanente, ou seja, imune a corte em Unidade de Conservação instituída pelo poder público e no interior de propriedade privada. O novo Código Florestal, de 2012, manteve o estatuto de Área de Preservação Permanente para o manguezal, mas tirou do ecossistema o apicum, a área mais salgada dele, deixando apenas o bosque e o lavado (vias de circulação de água). Houve pressão dos criadores de camarão para deixar o apicum de fora. É ali que eles abrem tanques criatórios. Não é só o caso do Brasil, mas de toda a Ásia e Oceania.
Agora, confirmando a necessidade de promulgar leis exigindo o cumprimento da lei, o governo federal do Brasil publicou, em 5 de junho de 2024 (Dia do Meio Ambiente), o Decreto 12.045, denominado Pró-Manguezal. Ele se vale das mudanças climáticas para fazer mais uma tentativa de proteção desse tão importante ecossistema. É que, além da surrada explicação sobre a importância do manguezal para proteger a costa de ventos fortes, de ressacas e de servir como berçário e creche a espécies aquáticas de animais, descobriu-se que ele apresenta descomunal capacidade de absorver gás carbônico, o mais conhecido causador do efeito-estufa.
O apicum continua de fora, até porque um decreto não pode mudar uma lei. E essa planície costeira fortemente salgada é de fundamental importância para todo o manguezal. Não é por apresentar condições adversas (alta salinidade) que ele se mostra desértico. Existem plantas que crescem nele, resistindo ao sal mais que as espécies consideradas exclusivas e manguezal. O caranguejo guaiamum também se ambienta bem nele. Como mostrou o professor Gilberto Cintrón, em memorável palestra em Salvador no ano de 2000, o manguezal deve ser considerado um sistema complexo formado pelo bosque, pelo lavado e pelo apicum. O manguezal é um sistema dinâmico. O apicum pode ser colonizado pelo bosque em caso de mudanças ambientais naturais, assim como o bosque pode se transformar em apicum.
Tardiamente, a imprensa comum passou a dar atenção ao manguezal. Ele já era visivelmente importante no plano econômico, como mostraram a revolta por sua monopolização pelos Jesuítas no Rio de Janeiro, no fim do século XVII, privando a população de lenha e madeira. No século XVIII, ele foi campo de batalha entre curtidores, que desejavam retirar as cascas das árvores para curtumes, e pescadores, que defendiam a integridade das árvores. Agora, tardiamente, jornais de circulação nacional dedicam página inteira ao papel ecológico desempenhado pelo manguezal e até editoriais, assumindo sua defesa.
Quando olhamos em volta, porém, o estado dos manguezais, do rio Oiapoque à baía de Babitonga, em Santa Catarina, é lastimável. Embora ainda existam áreas expressivas de manguezal na costa brasileira, elas estão ameaçadas pelo lixo, poluição líquida, avanço das fronteira pecuárias e expansão urbana.
*Professor, historiador e ambientalista

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