O combustível do incêndio no Hotel Flávio é o descaso
Edmundo Siqueira 19/11/2022 17:38 - Atualizado em 19/11/2022 17:45
Genilson Soares
Para quem acompanha o patrimônio histórico em Campos dos Goytacazes, o incêndio no Hotel Flávio, nesta madrugada, não foi nenhuma surpresa. O imóvel é apenas um dos muitos em estado de abandono completo na cidade. Alguns surpreendentemente ainda estão de pé.

Invariavelmente, um patrimônio histórico só resiste ao tempo quando lhe é conferido uso. A exploração do espaço — via poder público ou iniciativa privada — oferece acessibilidade, preservação e cumprimento das obrigações exigidas pelos órgãos de controle, como o Iphan. Exemplos não faltam no Brasil e no mundo.

Mas Campos é um caso sui generis. Uma de suas primeiras edificações — um emblemático Solar incrustado na Baixada Campista — tem uso (lá funciona o Arquivo Municipal) e recurso para restauro (R$ 20 milhões em caixa da Uenf) há quase um ano, e mesmo assim corre sério risco de acontecer o mesmo com o Hotel Flávio.

No que assemelha-se às outras cidades que destroem seu patrimônio, Campos não consegue criar a sensação de pertencimento necessária em seus habitantes. Apesar de ser uma cidade histórica, com mais de 400 anos, e ter sido uma das mais importantes do Império, os campistas comemoram seu aniversário em 28 de março, que remete a apenas 187 anos de história, “apagando” os eventos anteriores.
Centro de Campos, anos 1950.
Centro de Campos, anos 1950. / Reprodução

Quem acompanha este espaço, ou teve acesso ao meu livro “Antes que seja tarde”, sabe que o Solar dos Airizes (casarão às margens da BR-356, a caminho de São João da Barra) é outro patrimônio que está em estado calamitoso, mesmo havendo decisão judicial que determina seu restauro.

Prédio da Lira de Apolo em chamas, em Campos, nos anos 1990.
Prédio da Lira de Apolo em chamas, em Campos, nos anos 1990. / Reprodução
No mesmo centro histórico do Hotel Flávio, o campista viu as chamas — do mesmo descaso — quase destruírem o belíssimo prédio da Lira de Apolo. Viu também a emblemática construção da Santa Casa de Misericórdia se transformar em um estacionamento e o antigo Teatro Trianon numa agência bancária.
O incêndio no Hotel Flávio (caso não seja criminoso, situação que precisa ser investigada) foi alastrado pelo combustível do descaso. Do poder público? Também. O Hotel chegou a ser doado para a prefeitura pelo espólio da senhora Zilda Carneiro da Silva, mas devolvido pelo governo Rafael Diniz. Ainda pior: sob os olhos do Conselho de Preservação do Patrimônio Arquitetônico Municipal (Coppam).

Mas o descaso e a culpa pela destruição de mais um patrimônio histórico é de todos nós. É preciso criar identificação e respeito pelo passado. Personagens históricos são transformados em caricaturas e construções em problema. Os processos que trouxeram a sociedade ao tempo presente não são problematizados, não são apresentados às crianças nas escolas. Pelo menos não como deveria.
Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa demolidas em 1961
Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa demolidas em 1961 / Reprodução

Sem esse trabalho, sem educação patrimonial e sentimento de pertencimento, não se resolve a questão dos patrimônios apenas com dinheiro. Os museus vão continuar vazios, os prédios vão continuar caindo e a história vai continuar desvalorizada.
O restauro de um prédio como o Solar dos Airizes por si só não cria nada relevante. Porém, em condições físicas melhores, ele pode ser palco de exposições, de visitas escolares, do recebimento de turistas, da exploração de restaurantes e comércios em geral e aos poucos passar a ser de todos; não “de ninguém”.
Reformar o prédio centenário do Mercado Municipal não resolve se ele continuar invisível, coberto por estruturas metálicas que não deviam estar onde estão. Reconstruir o Solar do Colégio não adiantará se o acervo que ele abriga for queimado pelo descaso de quem tem o recurso.

O descaso — provoque ele incêndios ou não — impede que adultos e crianças entendam que é indo ao museu, visitando uma construção histórica, pesquisando em um Arquivo ou aproveitando uma exposição, que elas vão adquirir a cidadania, a memória, a história, o passado, e valorizar a sua cidade e o seu país.

O Hotel Flávio foi apenas mais um que sucumbiu pelo descaso em Campos. Outros tantos anunciam o mesmo fim. A tragédia é perdermos o pouco da identidade construída e não criarmos condições para aumentá-la.

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