A linguagem dos quadrinhos
09/05/2019 18:26 - Atualizado em 15/05/2019 20:22
Li vários livros de Moacy Cirne, considerado pelos amantes dos quadrinhos um dos melhores teóricos no tema. Confesso que não concordei. Entendi que Cyrne não fez uma devida reflexão sobre essa linguagem que apareceu no século XIX. Um dos entendimentos questionáveis é a falta de contextualização. É aceitar que os quadrinhos têm origem na antiguidade. Outro é classificar o balão usado nos quadrinhos também pelo conteúdo e não pela só pela forma. Se um quadrinho de fala explícita contém desenhos indicadores de xingamento, como cobras e lagartos, Cyrne o classifica como balão de ofensas. Assim, ele faz uma lista interminável de balões.
Antes de entrar na questão específica dos quadrinhos, tentemos definir sua posição entre as artes. O que conta primeiro é inseri-lo nas artes da imagem em duas dimensões. Estas compreendem o desenho e a pintura. Do outro lado, está a fotografia. Do casamento das imagens em duas dimensões, nascem os quadrinhos, a animação clássica, a fotonovela e o cinema. Will Eisner classifica os quadrinhos como arte sequencial. Ora, o desenho animado, a fotonovela e o cinema também são sequenciais. A rigor, a literatura é sequencial.
O cinema atual usa 24 fotogramas por segundo. Se a linguagem do cinema fosse transposta para os quadrinhos, seriam necessários 24 quadrinhos para criar uma sensação de movimento. Mesmo assim, tal transferência seria inútil, pois, no cinema, a imagem corre diante dos olhos do leitor enquanto que, nos quadrinhos, os olhos do leitor é que correm sobre o desenho. Assim, o quadrinista seleciona o que denomino de fotograma significativo par gerar a sensação de movimento. Algo mais parecido com os filminhos da máquina Barlam (poucos se lembram dela) do que do cinema. No desenho animado clássico são necessários 24 desenhos por segundo para transmitir a noção de movimento. Daí a dificuldade que eles apresentavam ao criador quando ainda não existia computação gráfica. A fotonovela usa o princípio dos quadrinhos: bastam fotos significativas de movimento, sem a necessidade de muitas fotos entre uma e outra para criar a sensação de movimento completo.
Os quadrinhos podem dispensar texto para transmitir o enredo. Trata-se do quadrinho mudo, em que o desenho puro conta a história. Exemplos de quadrinhos que dispensam palavras são “Reizinho” e “Pinduca”. Nos dois, o segredo está em produzir histórias curtas. No geral, os quadrinhos precisam recorrer à palavra, o que associa desenho e literatura. A palavra é usada para esclarecer o desenho e pode ser colocada no rodapé do quadrinho ou dentro do balão, uma característica dos quadrinhos e da fotonovela durante muito tempo.
Devemos classificar o balão pela forma e não pelo conteúdo. O balão tradicional tem forma ovoide, mas pode apresentar outra forma geométrica. O balão de linha contínua indica fala explícita. O balão de linha tracejada significa sussurro. O balão cheio de pontas pode indicar grito ou choque do personagem. O balão que se derrete indica frio de quem fala. O balão em forma de nuvem em que a ponta ligada ao falante é substituída por bolinhas indica sonho ou pensamento. O balão pode mesmo adquirir vida própria dentro do quadrinho. Como, a rigor, o balão é abstrato, algo mesmo que não existe, ao adquirir vida própria, ele se torna elemento de metalinguagem. O balão indicador de discurso explícito com várias pontas corresponde a fala coletiva.O balão, inclusive, pode ser personagem e ter a sua fala contida em outro balão. De fato, o balão é uma invenção genial dos quadrinhos que já está sendo utilizada pelo cinema.
O quadrinho que separa um desenho significativo de outro pode assumir vários formatos. O mais comum é o quadrinho quadrangular ou retangular, mas pode também ser circular, com formas geométricas irregulares ou mesmo não existir. O quadrinho é também um elemento que permite a criatividade do desenhista. O brasileiro Joselito era mestre em usar os quadrinhos como meta linguagem. Ele passava a existir concretamente e a participar de forma objetiva do desenho.
Outro elemento indispensável aos quadrinhos são os efeitos especiais. Eles diferem do cinema. São constituídos por algo que não se pode pegar, mas se pode ver. Geralmente são onomatopeias, como CRASH, BANG, PLAFT, ZIING e tantas outras à disposição do desenhista. Em “O gato Félix”, por exemplo, um sinal de interrogação serve de gancho, de anzol ou outra coisa que se queira. Então, a onomatopeia ganha vida material e adquire também a condição de metalinguagem.
Mais ainda, a própria narrativa pode assumir o caráter de metalinguagem. Mais uma vez, tomo os desenhos de Joselito para exemplificar. Em vários deles, o personagem se dirige ao desenhista, fazendo sugestões ou reclamações. Poucos sabem quem foi Joselito. Ele merecerá minha atenção em artigo próximo, agora que expus sumariamente a linguagem dos quadrinhos.
Por último, houve um tempo em que se pretendeu conferir aos quadrinhos o papel de literatura ou de mostrar que eles podiam estar no mesmo nível da literatura. Trata-se de uma discussão capciosa. Não se pode transpor para os quadrinhos um livro como “Em busca do tempo perdido”, de Proust, ou “Ulisses”, de Joyce, por exemplo. Algumas transposições foram até felizes, mas sempre empobreceram a obra literária transposta. Os quadrinhos devem ser vistos como uma forma de arte que pode produzir suas próprias obras sem querer ombrear-se com a pintura e a literatura.

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