O que em mim pensa está sentindo, ao rio Macaé
*Afrânio Sobral - Atualizado em 06/12/2018 18:17
Não consigo pensar nem falar. Apenas sinto e não consigo externar meus sentimentos. Só uma pessoa sensível, que me conheça, consegue perceber o que se passa comigo. Vivo no meu mundo, num mundo bem fechado. Sei que meus parentes sabem do que estou falando, mas, mesmo com eles, não consigo trocar ideias. É triste viver num mundo fechado. Minha fala não tem palavras. Ninguém consegue ouvi-la. Apenas vê-la.
Enquanto exemplar, tenho pouco tempo. Talvez uns vinte anos. Não conheço o calendário dos humanos. Vim navegando pelo mar até me fixar aqui, onde me assentei, cresci e devo morrer arrancado, envenenado ou de velhice. Percebo, apenas percebo, que existe uma história muito longa atrás de mim. A história do meu povo e de meus colegas. Uma história de navegação paciente, sem a mínima pressa de ancorar num porto. Colonizamos as terras onde fincamos o pé, mas nunca a empobrecemos. Aliás, sempre tornamos mais ricos os locais que ocupamos. Não competimos com ninguém. Fugimos da competição. Mas há quem tente entrar na água salobra e roubar nosso espaço.
Nem sempre as condições em que vivemos, crescemos, reproduzimos e morremos permanecem saudáveis. Sou de uma estirpe muito maleável. Eu e meus colegas de outros grupos. Se o mar avança sobre o continente, nós também avançamos e vamos nos estabelecer na foz dos rios que desembocam no mar. Nossa exigência é que esses ambientes salobros se encontrem em ambiente quentes. Aguentamos até um pouco de friagem e nem sempre necessitamos de água doce misturada com água salgada. Temos um grande poder de adaptação. Somos resistentes.
Mas temos limites. Vocês estão entendo o que eu sinto? Será que estou sendo compreendido? Quando aportei aqui, o rio alcançava o mar depois de fazer muitas curvas. As águas eram limpas. Tive sorte de parar por aqui. Na verdade, não sei bem se foi sorte. Eu poderia ter parado em outro lugar mais acima. Não sei o que acontece, mas as condições costeiras abaixo desse rio não são boas para mim. Só uma espécie minha parente consegue se adaptar bem em direção ao sul. Preciso muito conversar sobre isso com essa parente, que também se adapta ao meu ambiente. Parece que os humanos discutiram e escreveram muito sobre isso. Mas o mundo dos humanos é impenetrável para nós.
Vi minha casa mudar ao longo dos anos. As lindas curvas do rio foram substituídas por linhas retas. Máquinas gigantes e assustadoras tiraram terra de um lugar e jogaram em outro. Tudo foi modificado. Elas criaram ilhas onde não existiam. Hoje, eu vivo numa dessas ilhas, parece que a maior. Não sei se destruíram a casa dos meus companheiros em outros lugares. Sinto que sim, pois o que sente em mim pensa. Será que isso é um pensamento ou apenas um estranhamento da minha constituição ancestral? Sei que minha espécie é muito antiga. Bem mais antiga que esses bichos estranhos que operam as máquinas destruidoras.
Depois de criarem essa ilha, construções esquisitas começaram a invadir as margens antigas e novas do rio. Começaram a nos cortar para ganhar espaço e construir mais casas. Existe um bicho azulado que vive nas bordas do bosque formado por meus parentes e companheiros. Notei que eles ficaram desorientados. Passaram a andar meio perdidos. Foi fácil matá-los, prendê-los, comê-los. Elas costumavam andar em fila, como todos os outros seus semelhantes. Mas cortaram o caminho deles. Agora, eles aparecem no quintal das casas e até dentro das casas que se ergueram no espaço em que eles viviam.
Havia um outro, que morava na lama. Ele também sumiu. O movimento das marés foi alterado. Quando elas baixam, a lama não fica mais exposta como antigamente. E não é só. As obras que fizeram aqui, permitem que muitos barcos de pesca entrem no rio e fiquem parados para descarregar peixes. Esses barcos soltam muito óleo na água. Aqui perto existe também um lugar onde umas máquinas muito estranhas descem e sobem. Não são como as garças e outras aves que pousam nos nossos galhos para dormir. São aves enormes feitas de ferro. O canto delas é muito barulhento. Elas roncam muito. Do ninho delas também sai muito óleo.
Tudo corre pra cá, na foz. A água fica toda manchada. Embora estropiado, o rio ainda consegue empurrar o óleo dos barcos e das aves metálicas. Consegue também empurrar para o mar o esgoto que sai das casas. Mas as marés cheias devolvem tudo.
Há tempos, estou notando mudanças estranhas em mim. O comportamento normal da minha espécie é começar com uma semente que vem boiando até encontrar um local em que para e se enraíza. Por sorte e por azar, eu parei aqui. Minhas raízes são como as das outras plantas. Elas crescem pra baixo da terra. Por meio dessas raízes, eu consigo o alimento necessário para crescer e me manter. Mas o chão é lama pura. Ele é muito compacto. Nele, não entra ar ou apenas entra muito pouco. Então, meu corpo lança raízes para a superfície. Elas partem das raízes que ficam em baixo da terra e sobem para respirar.
Sentimento meu que surge confuso no meu corpo: o que iguala todos os vivos e talvez os não vivos é o nascimento e a morte. Todos nascem e morrem. Mas quem me destrói acha que só nasce e que não vai morrer. Sei que minha morte pode ser provocada pelo avanço do mar, por ventos fortes e por mudanças das condições da água. Não vivemos apenas enquanto indivíduo, mas como espécie. Se eu morrer, outros integrantes da minha família continuarão vivendo e representando meu grupo.
Voltando à minha vida individual, tenho notado mudanças no meu corpo. Sinto que estou doente. Parece que as transformações da minha casa estão provocando a minha doença. Na parte mais alta do meu corpo, começam a sair raízes procurando a terra. Elas nascem perto da minha cabeça e não conseguem alcançar o chão. Elas não conseguirão obter alimento para me sustentar. Elas são muito peludas. E o pior é que delas saem as raízes que respiram. Não preciso de nenhuma das duas nessa parte do meu corpo. Uma raiz que não consegue obter alimentos para mim de nada me serve. No ponto em que as raízes respiratórias saem, também não servem para nada. Talvez sirvam.
Estou me estranhando. Acho mesmo que estou doente ou então me esforçando para viver num ambiente tão ruim. E ninguém ou muito poucos se interessam pela minha vida. Os bichos que pilotaram as máquinas para destruir minha casa e seus chefes nem olham para nós. Os pescadores não se importam conosco. Seus barcos vomitam óleo a todo momento. Parece que eles estão com dor de barriga. Mas eu não sei o que é uma barriga. As grandes aves também despejam vômitos em cima de nós. As casas a nossa volta fazem o mesmo, mas com um líquido ácido e uma pasta malcheirosa. E elas vão avançando sobre um espaço que era nosso no passado. Não sei mais por quanto tempo escaparei do corte e da morte.

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