Arlete Sendra e sua obra
Matheus Berriel, Aluysio Abreu Barbosa e Cláudio Nogueira - Atualizado em 06/03/2024 10:09
Peça tem atuação de Pedro Fagundes, texto de Arlete Sendra e direção de Fernando Rossi
Peça tem atuação de Pedro Fagundes, texto de Arlete Sendra e direção de Fernando Rossi / Foto: Antônio Filho
Desde que estreou no teatro com “Eu fui Macabéa”, em maio de 2019, a professora e escritora campista Arlete Sendra consolidou-se como um dos grandes nomes da dramaturgia no interior fluminense. Além da peça em que dialoga com o último romance de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”, também são dela os textos de “Traídas e traidoras, somos todas Capitus” (2019), “Diadorim, o ser em labirinto” (2019), “Memórias de Sancho Pança: o fiel escudeiro de Dom Quixote de La Mancha” (2021) e “Diários de uma intimidade aberta - Capitu em exílio” (2023), levando das páginas para os palcos célebres personagens de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Miguel de Cervantes. Em entrevista ao “Folha no Ar”, da Folha FM 98,3, nessa terça-feira (5), Arlete passeou pela sua obra — comentando aspectos dos personagens evidenciados nas releituras — e destacou a importância da parceria com o diretor teatral Fernando Rossi, bem como revelou o próximo autor a entrar em cartaz pelas suas mãos: o português Fernando Pessoa.
Relação com a literatura
A literatura, na verdade, sempre constituiu um ABC de minha vida, desde menina, com um presente dado por um poeta. Eu estava com uns sete, oito anos, quando recebi “Alma de Poeta”, do Oscar Batista, e ele me fez uma dedicatória. Nessa dedicatória, ele propõe, prevê, sonha e idealiza uma Arlete que realmente se voltasse para a poesia. Esse talvez tenha sido um fato de observação dele. Perdi minha mãe muito cedo e, a partir dali, comecei a interiorizar a vida. Então, a literatura para mim é uma forma de exteriorizar algo muito interiorizado no decorrer da vida. Com essa interioridade, conversamos com nós mesmos.

Macabéa
A Clarice Lispector sempre foi para mim um desafio, porque a proposta da Clarice está muito além do texto que normalmente nós lemos. Clarice escreve em entrelinhas, o feminino dela está em entrelinhas. Macabéa é, realmente, a história da mulher que vai em busca do seu sonho. O preço que a Macabéa paga é o preço que a vida cobra a cada um na busca de sua própria realização. Então, ela, que vem do interior e também é uma menina órfã, vai enfrentando a cidade. Ela vem para a cidade, contra tudo e contra todos, apenas com o passaporte do seu querer; vem se realizar aqui no escritório. Mas, esse sonho era pouco para os ideais dela. Então, ela acha que uma cartomante seria capaz de contar para ela o seu amanhã. Ela teria, então, casacos de pele, que desconhece para que tê-los, pelo calor do Rio de Janeiro; mas haveria um rapaz, um homem bonito, um carro, uma outra vida. E ela, na expectativa de uma outra vida, perde o espaço real onde ela está e se deixa ser atropelada por um carro. Mas, embaixo do carro, já em territórios da morte, ela vai revelando o seu sonho e sonhando a vida que sonhara durante toda a sua vida. É uma morte alimentada pelo sonho. Eu acho que é uma das maiores personagens da literatura brasileira. As entrelinhas de Macabéa são intensas de vida, de ideais e de possibilidades de realização. Gosto muito dela.

Capitu
Fiz duas Capitus. A primeira, de “Traídas e traidoras, somos todas Capitus”, eu a escrevi vista por Machado de Assis. Mas, não é a Capitu verdadeira. O livro é publicado em 1900, então, é uma Capitu ainda do século XIX, com o olhar machadiano. É o olhar da mulher desse momento. O escrever de Machado de Assis não consegue ver a outra mulher. Ele pode, em alguns momentos, tentar trazer uma outra mulher. Mas, ele escreve uma Capitu dentro desse pensar machadiano, como via a mulher. Eu não gosto dele. Não gosto dessa Capitu e sempre desconfiei de que há uma outra Capitu dentro da Capitu, que Machado de Assis não apreendeu. Então, apanhei a Capitu que eu realmente vejo como a mulher da literatura; a Capitu que vive dentro da mulher. É uma Capitu que se alimenta do amor. Em momento nenhum ela deixou de amar Bentinho, mas é uma Capitu que também se assume, assume a família, assume o filho, assume a vida. É uma mulher forte! Para mim, o grande exemplo de mulher seria a Capitu 2, que eu escrevi, a quem eu visualizo e como eu vejo uma mulher que realmente vai em frente, assume a sua solidão e se alimenta de um amor que não mais existe, ou que existe, mas o Bentinho não tem a coragem de retomar. Bentinho era um fraco, essa é a minha leitura. Sobre a pergunta famosa, Capitu traiu Bentinho! Eu acho que em vários momentos você vai percebendo que existe uma traição em busca do prazer do corpo, que Bentinho não provocava nela. Somos corpo. Nossos corpos precisam ser atendidos em suas necessidades, assim como nossa alma precisa ser atendida. Bentinho não correspondia às necessidades de Capitu, e ela vai buscar, na verdade, quem poderia ajudá-la. Há o desejo de um filho. E é curioso o desejo dele de um filho. Ela não queria que nascesse um filho daquela relação fria entre eles; daquele homem, que, na verdade, não sabia se colocar diante do amor, usar do amor. Então, ela vai trair, sim. Será que isso é traição? É uma leitura muito complexa e muito difícil de ser feita e aceita pelo moralismo convencional. Quem primeiro traiu foi Bentinho. À medida em que ele não foi capaz de realizar a mulher que acreditava nele, que se entregou a ele, a primeira traição é dele. Agora, a culpa foi da mulher; foi ela quem traiu, mas ninguém via as traições anteriores dele. Traição não é só do corpo. Corpo é matéria. A grande traição acontece no nosso intelecto, que é alguma coisa superior; acontece na nossa alma. Sobre Ezequiel, é lógico que era filho de Escobar. O rapaz que ele se torna é o perfil escobariano, não o perfil do Bentinho.

Diadorim
É uma pessoa, um ser submisso às forças de uma paternidade que não aceitava não ser pai de um homem. Pelo preconceito da fragilidade de uma mulher, ele não queria mostrar que era pai dessa fragilidade. Então, ele traz Diadorim, vai imprimindo no seu Diadorim um homem que ele jamais poderia ser, mas foi. Foi homem enquanto de homem se vestiu. Ele se fantasiou de homem, passou uma vida fantasiada. Às escondidas, nas altas madrugadas, ele então vivia o tempo mistual que a mulher vive. Eram os tempos em que ele sumia, ninguém sabia de Diadorim. Ele estava pelas madrugadas vivendo a sua mulheridade; não a sua feminilidade, porque ele não tinha o direito de feminino ser. Ele só era feminino ao lado do Riobaldo. Para mim, é o personagem mais sofrido da literatura brasileira.

Sancho Pança
Normalmente, quando lemos “Dom Quixote”, lemos Dom Quixote. Não lemos o avesso, que eu diria que é o Sancho Pança. O Sancho é o grande personagem de “Dom Quixote”; é quem tenta acordar o Dom Quixote para a vida. Mas, a fantasia não é acordável. Não devemos acordar nossas fantasias. Se elas existem, é porque nós precisamos dessas fantasias. São elas que equilibram a vida. Então, o Sancho sempre mostrava que havia um outro lado, que era o lado vivível, mas o Quixote ia em busca de consertar o mundo. Ele queria consertar o mundo, mas não se conserta o mundo. Para o mundo ser consertável, seria necessário que nos consertássemos, e somos seres imperfeitos. Então, o Sancho é a grande realidade que alerta para as fantasias. Depois de todo esse percurso com Quixote, ele vai também se vestindo dos ideais quixotescos. E o Quixote, já no leito de morte, está sanchizado. Tanto que, depois de ele ter recebido extrema unção, quando o Sancho, diz para ele levantar e ir para os campos, ele diz que “em ninhos vazios, pássaros não cantam” e morre. Não havia mais tempo, ele estava esvaziado da própria vida e termina o seu tempo dessa forma. Então, para mim, o Sancho é o grande personagem da tentativa de manter a fantasia que faz parte do homem. Ele quer a vida como compreende a vida, não a vida sob o quinhão do poder.

Próximo espetáculo
Fernando Pessoa sempre foi, para mim, um desafio enquanto poeta. Aliás, todos eles me desafiam. A literatura me desafia, o pensamento me desafia. Mas, o Fernando Pessoa é muito maior do que eu alcanço. Eu começo a escrever sobre o Fernando Pessoa e vejo que não estou à altura. O Fernando Pessoa é construção dele próprio, não é uma construção de leituras e de experiências de vida. A vida estava dentro dele em intensidade. Então, eu começo a ler Fernando Pessoa e digo que ele é muito mais. Agora, é interessante... Inclusive, o (diretor teatral) Fernando Rossi aprovou. Fernando Rossi é um grande parceiro. As dimensões do que eu escrevo ganham extensão, profundidade e verticalidade pela linguagem do Fernando Rossi. Então, eu coloquei o Fernando em busca de Pessoa. Há um momento, principalmente na vida de Álvaro de Campos, em que o Álvaro questiona o Fernando Pessoa ter tirado o nome dele e ter se colocado. A obra é Fernando Pessoa. Fernando Pessoa é Álvaro de Campos, é Ricardo Reis... Fernando Pessoa é quem está dentro de todos esses heterônimos. E há muitos outros, porque a obra dele não está toda vista. O que eu estou tentando fazer em busca de Fernando Pessoa é que ele tire o nome dele e deixe que Ricardo Reis seja o Ricardo Reis, com a sua identidade, com o seu olhar à vida. A mesma coisa com o Caeiro e a mesma coisa com o Álvaro de Campos. Eles discutem isso com o Fernando Pessoa: “Se naquele momento nós surgimos; se você saiu de você e abriu espaço para que nós entrássemos, nós entramos e nos assumimos. De repente, você tem o poder e nos tira. Ou nós existimos por que você existe?”. A minha tentativa é essa: estabelecer uma discussão entre os heterônimos de Fernando Pessoa e o próprio Fernando Pessoa; ele justificando por que, naquele momento, ele foi Álvaro de Campos, que é o que mais se contrapõe a essa posição; naquele momento ele foi Ricardo Reis... Onde o “eu” Fernando Pessoa estava? Era outro eu escrevendo. E estou trazendo a Ofélia, a noiva dele. A Ofélia se encanta com o Fernandinho, e ele experimenta com ela o que é o amor. Há um momento na obra dele em que ele precisava conhecer o amor, e é por isso, então, que ele vai se aliar a ela. Não para amá-la, porque ele não a amou, mas para conhecer o que acontece dentro das pessoas em estado de amor.

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