Folha Letras: Terror na literatura brasileira
* Arthur Soffiati 31/01/2024 13:56 - Atualizado em 31/01/2024 13:56
Reprodução
Com certa frequência, comentaristas de literatura têm publicado artigos de jornal arrolando nomes de ficcionistas brasileiros que estão trabalhando com temas de terror. Primeiramente, confunde-se terror com ficção cientifica e distopia, além de algo como uma trama recheada de cenas que provocam tensão. É preciso mais rigor em definir o gênero terror. Entendo que ele envolve dois fatores distintivos: o sobrenatural e o medo. Podemos sentir medo num romance policial, mas ele se movimenta no mundo terreno. Certos “monstros” nos infundem muitos sustos, mas eles são naturais e não sobrenaturais. Um filme com o fator sobrenatural, como “O sexto sentido”, não nos assusta. Apenas pode nos surpreender no final. Filmes elementares, como “O lago dos zumbis” e “Os mortos vivos”, têm roteiros sofríveis e mal aproveitados, mas são característicos do gênero “terror”.

Na segunda metade do século XIX, Araripe Júnior escreveu que as assombrações europeias não atravessaram o Atlântico para entrar numa literatura produzida num país solar como o Brasil. Ele não havia examinado bem a produção literária do seu século. Mesmo no ambiente tropical brasileiro, encontram-se entidades sobrenaturais nos rios, nas florestas, nos mangues, nas cidades abandonadas, nos cemitérios esquecidos. O livro Tênebra: narrativas brasileiras de horror [1839-1899], organizado por Júlio França e Oscar Nestarez (São Paulo: Fósforo, 2022), reúne contos pouco conhecidos de autores brasileiros do século XIX, alguns clássicos. Entre eles, estão Joaquim Manuel de Macedo, Couto de Magalhães, Fagundes Varella, Franklin Távora, Juvenal Galeno, Bernardo Guimarães, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, Aluisio Azevedo, Afonso Celso, Cruz e Souza e, claro, Machado de Assim. Aliás, o marco temporal da coletânea começa em 1939, ano em que nasceu o maior escritor brasileiro.
Reprodução

Mas os organizadores também não foram rigorosos em definir o gênero “terror”. Para eles, o grotesco, o sórdido, o espantoso, o violento, o assustador, a sátira, o moralismo definem o terror. Tanto o natural quanto o sobrenatural estão na coletânea. Por esta razão, pincei relatos nos quais o elemento sobrenatural aparece. No conto “Missa do galo” (1939), de Maciel da Costa, aparece um fantasma ensanguentado, mas, por se tratar de uma assombração moralista, tenho dúvida quanto à intenção do autor. “A feiticeira” (1849), de Antônio Joaquim da Rosa, parece mesmo um conto de terror: “Essas visões lutuosas, essas crianças que ela tantas vezes sacrificou ao seu furor brutal, agora lhe estendem lá de outro abismo seus bracinhos mirrados pela morte, e nos seus lábios franzinos despontava um riso de desdém.” Dante parece ter influenciado muito o autor.

Cícero Pontes, em “Festim no cemitério” (1864), apela para arquétipos do terror: piar lúgubre do mocho, risada infernal do demônio, cemitério em ruínas, sexta-feira, tempestade. Escreve um pequeno conto convencional e fraco sobre amantes: “Sobre a campa de um sepulcro jazia um cadáver dilacerado. Uma multidão de esqueletos com gestos endemoniados o rodeavam [...] bebiam em crânios reluzentes um sangue negro e pútrido”. Em “Senhor das caças” (1871), Juvenal Galeno recorre a entidades brasileiras, como caapora e uiara, e demonstra que a América solar também tem assombrações. Mas o conto soa como mentira de caçador.

Em “Jupira” (1884), Bernardo Guimarães ambienta a narrativa em contexto rural brasileiro, representando bem o indianismo romântico à moda de José de Alencar. A maneira de escrever se afasta do português de Portugal. Palavras tupis são frequentes. O conto retrata uma história fatal. Machado de Assis não foi muito de cortejar o sobrenatural. Seu naturalismo sutil não permitiu que escrevesse contos de fantasmas com frequência. Contudo, em “Sem olhos” (1876), ele coloca o pé nesse mundo, sempre pronto a tirá-lo em seguida. O fulcro é a violência contra a mulher com visões, aparições e sugestionamentos.

Um dos melhores contos da coletânea, senão o melhor, é “O acauã” (1893), de Inglês de Souza, demonstrando que entidades da cultura popular brasileira dispensam os demônios, as bruxas e os fantasmas europeus. “... hirta como uma defunta, com os cabelos transformados em horrendas cobras, com as narinas dilatadas e a tez verde-negra, Vitória fixava em Aninhas um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio, que parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca entreaberta deixava aparecer uma língua fina, partida em duas, como a língua das serpentes. Uma ligeira fumaça azulada saía-lhe da boca e subia até o teto da igreja.” O autor abrasileira o português, embora ainda recorra palavras típicas de Portugal. O sobrenatural é amazônico. Cruz e Sousa escreve um intenso libelo contra a perversidade escravocrata, associando-a ao terror em “Consciência tranquila” (1897).

Não há, entre nós, um escritor que tenha explorado tão bem o terror na literatura como os norte-americanos Edgar Allan Poe, no século XIX, e Stephen King, nos séculos XX-XXI. O primeiro escreve poemas, contos e romances góticos (também não aprecio a classificação de gótico). Já King incorpora elementos do mundo moderno aos seus escritos, como automóveis (“Christine, o carro assassino”) e aviões (“Voo noturno”), textos que visivelmente parecem roteiros para filmes.

O Brasil atual conserva ainda elementos de assombrações que pululavam no passado. Autores como Chisthiano Aguiar, em “Gótico nordestino” (Alfaguara, 2022) e Marcelo Ferroni (Companhia das Letras, 2023) podem praticar o gênero “terror”. No primeiro, o sobrenatural é brando. No segundo, ele usa a realidade brasileira, que tem aspectos naturais aterrorizantes. Assim, esses autores mais parodiam o natural com o sobrenatural.

Entramos, então, em novo assunto, sei sair do primeiro: a crítica literária. Formei-me na escola de autores que consideravam a crítica como uma arte, não como ciência. Eles comentavam livros que liam, opinando sobre eles com propriedade a partir de uma visão. Eram parciais? Sim. Mas estavam abertos à polêmica, que geralmente acontecia. Alguns apelavam para a pilhéria e criavam máximas de efeito, como Agripino Grieco. Mas eram cultos. Silvio Romero, Andrade Muricy, Mário de Andrade, Álvaro Lins, Tristão de Athayde, Antonio Candido são alguns nomes. Eles saíam de suas cátedras e escreviam para jornais, embora apenas os interessados os lessem. Mais recentemente, destaca-se o nome de Alcir Pécora.
Afranio Coutinho puxou a crítica literária para a academia, considerando que os críticos eram muito subjetivos. Consolidaram-se, assim, os estudos literários, coisa de especialistas que não dialogavam com interessados. Estes ficaram à mercê das próprias opiniões. Até pouco tempo atrás, os jornais de grande circulação consultavam críticos sobre os melhores livros publicados no ano que findava. Agora, eles perguntam a leitores de diversas áreas profissionais. Como a leitura está se tornando rara, o consultado menciona os livros que leu, não os que são significativos.
E o crítico do passado foi substituído por leitores curiosos. Rodrigo Casarin é um exemplo. Trata-se de um jornalista que gosta de ler. Tem cultura. Mantém uma coluna sobre livros no UOL. Escreve bem. Bom existirem pessoas que façam a ligação entre a literatura e o leigo interessado em linguagem simples. Não gosto muito, porém, das abordagens: “qual o melhor livro que você já leu?”, “Quanto tempo devemos levar para ler um livro?”, “Quando parar a leitura e dar um pé na bunda do livro?” “A maravilha que é ser um leitor fracassado”, “Quem você escolheria para escrever a história de Jair Bolsonaro?” Etc. (“A biblioteca no fim do túnel: um leitor em seu tempo”. Arquipélago Editorial, 2023).
A
Quero dizer que a apreciação de livros está se transformando em reportagem. Ana Paula Maia, escritora que muito admiro, escreve livros com temas apocalípticos, não propriamente sobre o terror decorrido do sobrenatural. As autoras latino-americanas citadas na reportagem “Brasil, uma história de terror” (O Globo, 15/1/2024) escrevem contos na linha do realismo fantástico. O mundo horroriza sem que seja necessário recorrer ao sobrenatural. O medo que esses autores tentam infundir em seus escritos são mais metáforas que uma incursão no mundo sobrenatural.

*Professor, historiador, ambientalista, membro da Academia Campista de Letras (ACL)

ÚLTIMAS NOTÍCIAS