Arthur Soffiati: Goa e Campos no contexto da globalização (II)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 27/01/2024 08:17
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação
Complexus
O território da capitania de São Tomé alcançou sua extensão máxima no século XVI. Ao norte, seu limite foi fixado no rio Itapemirim por acordo entre Pero de Gois e Vasco Fernandes Coutinho, donatário da capitania do Espírito Santo. No século XVII, com o início de uma colonização contínua em moldes europeus, os famosos Sete Capitães requereram sesmarias dentro da capitania que oficialmente fora devolvida à Coroa Ibérica por Gil de Góis. Salvador Correia de Sá e Benevides requereu a antiga capitania para seu irmão e sobrinho. Eles reclamaram a devolução das terras entre os rios Itabapoana e Itapemirim.

Traços de uma cultura presente em todo o império colonial português começam a se fixar em Paraíba do Sul, o novo nome da capitania: dois núcleos urbanos (vilas) em moldes europeus (Campos e São João da Barra), casas simples, mas no padrão português, igrejas católicas, gado bovino e cana-de-açúcar. Como não houvesse mais espaço para o gado na baía do Rio de Janeiro, ele encontrou vastas terras na capitania de Paraíba do Sul, cuja sede era Campos. Porém, a extensa planície aluvial embrejada representava limitações para a criação de gado e para o plantio de cana.

Um goense que visitasse Campos no século XVII encontraria um ambiente natural parecido com sua terra natal: um território com montanhas, terras médias e terras baixas junto à costa; rios navegáveis com tantas derivações que pareciam formar ilhas e densas florestas nas terras altas e médias. Não encontraria hindus e muçulmanos, mas povos indígenas considerados bárbaros. A cana-de-açúcar, de origem indiana, recordaria seu lar. Aquele boi solto nas vastas terras deve ter vindo de Portugal. Os dois núcleos urbanos que foram implantados no século XVII eram bem inferiores a Goa, mas familiares ao goês por suas construções e, sobretudo, por suas igrejas.

O goês, ainda que de origem portuguesa, não encontraria templos hinduístas, islâmicos e parses. Comparada aos domínios portugueses na Ásia, Campos era mais semelhante a Lisboa, embora em nível extremamente inferior, que Goa, Damão, Diu, Ormuz, Malaca e Macau porque as culturas encontradas pelos portugueses na Ásia eram sedentárias e havia desenvolvido economia e cultura material pujantes. As resistências à implantação de uma cultura europeia na Ásia eram muito fortes. Só mesmo fazendo concessões em todos os níveis. Por mais cruel que tenha sido a inquisição em Goa, o cristianismo teve de fazer concessões. As marcas do hinduísmo e do islamismo estão presentes na sociedade e na cultura material de Goa, como mostram diversos autores.

No Distrito de Campos, como mostra o cartógrafo militar Manuel Martins do Couto Reis em 1785, os povos nativos, do grupo linguístico macro-jê, estavam sendo acuados, dizimados e maltratados. Sua cultura não deixou marcas nem na língua portuguesa, a exemplo das línguas tupi e guarani. Muito menos na culinária, na religião e na cultura material. No caso da igreja matriz de São Fidélis, afirma-se que integrantes desses povos, mas já cristianizados, ajudaram na sua construção.

Talvez haja alguma similaridade entre Goa e Campos na atividade pesqueira. Tanto aqui quanto lá, a pesca de águas doce e salgada se desenvolveram. Aqui, sabe-se que a pesca de subsistência era praticada pelos povos nativos. Tinha de ser atividade de subsistência porque eles não conheciam a economia de mercado. Em Goa, a pesca também antecede a conquista portuguesa. Em Portugal, também existia uma economia pesqueira forte, mas em Campos, há indícios da influência nativa na atividade pesqueira, que se desenvolveu silenciosamente à sobra do cultivo de cana e da criação de gado bovino. Inclusive, a vila de São João da Praia, depois São João da Barra, foi fundada na foz do rio Paraíba do Sul por pescadores, que exercem ainda sua atividade nos rios e no mar.

Enfim, pareceria que qualquer comparação e intercâmbio entre Goa e a capitania de São Tomé, com todos os nomes que a capitania terá no futuro, limitam-se às semelhanças na topografia e na hidrografia. O único ecossistema mais perecido entre os dois distantes pontos do império colonial português é o mangal ou manguezal. Como em todo mundo tropical, ele se desenvolve em foz de rios no mar (ambiente conhecido como estuário). As espécies são distintas, mas o comportamento do ecossistema é o mesmo em todo o mundo tropical.

Em termos culturais, tanto lá quanto cá, a colonização ocidental em sua feição portuguesa deixou marcas: as edificações, os núcleos urbanos, as igrejas, a cruz (o mais forte símbolo católico em todo o mundo), a economia de mercado, a cana e o boi. Procuremos elos entre Goa e Campos em territórios pouco explorados pelos historiadores. Prestemos atenção às plantas rasteiras e arbóreas. Encontraremos o oriente através de Goa no norte/noroeste fluminense mais do que podemos supor. Assunto para outro artigo.

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