Mill, Google e o produtor de milho
Edmundo Siqueira 04/05/2023 21:06 - Atualizado em 04/05/2023 21:13
Poder demais concentrado — em um indivíduo, governo ou corporação — sempre representa um risco. Ditaduras nascem dessa concentração, e pode decorrer dela todo tipo de violência, abuso e ímpetos ditatoriais de quem atrai para si uma quantidade abissal de dinheiro e poder.

Uma das principais armas para derrubar poderes abusivos (ou para mantê-los, a depender da perspectiva) é a informação. A palavra, principalmente em sua forma escrita, adquire a capacidade de transformar realidades, para o bem e para o mal, quando divulgada. Sem que ela seja propagada para um número relevante de pessoas, em percentual representativo de uma comunidade ou de um país, ela diminui consideravelmente seu potencial danoso. Mas o contrário é igualmente verdadeiro.

John Stuart Mill
John Stuart Mill / Reprodução
John Stuart Mill, considerado sem favor o filósofo de língua inglesa mais influente do século XIX, teve como um de seus principais objetos de estudo a liberdade de expressão e de opinião. Era um defensor da possibilidade de que a liberdade de falar e se expressar fosse bastante ampla, entendendo que era necessário garantir a todos esse direito.

Mas ele não a entendia como um direito absoluto. Na sua visão, na realidade material e social em que vivia, a liberdade de dizer o que se pensava sobre determinado assunto significava a libertação do indivíduo de amarras governamentais e imperiais. A censura era por vezes a morte do emissor da mensagem, de quem emitisse uma opinião que o status quo definisse como perigosa ou indesejável.

Para Mill, a premissa da liberdade de expressão era a cordialidade e a lealdade. Ou seja: não se teria o direito de dizer o que pensa sem haver a devida responsabilização. Não haveria liberdade se a comunicação se desse em bases desleais — usando inverdades ou tentando desconstruir afirmações alheias com ódio e narrativas falsas.
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Era preciso compreender que a liberdade de expressão termina quando ela causa algum dano relevante. A analogia milliana para explicar esse conceito era a de um produtor de milho. Qualquer um teria o direito de dizer, em qualquer veículo que divulgasse a ideia, que um produtor de milho mataria pobres de fome, ou que a produção de milho de determinado fazendeiro provocaria mal à saúde. Por mais que a informação não estivesse baseada em estudos, ou mesmo não fosse totalmente verdadeira, na visão de Mill, ela poderia ser expressa e divulgada.

O problema estaria no dano. Ainda na analogia, a mesma opinião sobre o produtor não poderia ser dita enquanto uma turba enfurecida estivesse invadindo a sua casa. Naquela situação, a opinião não teria a liberdade — e o direito — de ser emitida. A mesma opinião antes legítima — que o produtor de milho causava fome — poderia inflamar ainda mais os invasores a agir com violência, ou mesmo matar o agricultor.

O mundo de Stuart Mill e o de hoje são radicalmente diferentes. Talvez ele sequer pudesse prever que as informações fossem ser compartilhadas de forma tão rápida e para tanta gente. A ideia de que boa parte da população mundial tivesse em mãos um aparelho capaz de receber informação de forma instantânea e emitir opiniões ou gravar em vídeos e áudios do que estivesse vendo a sua frente é bastante recente.

As plataformas digitais permitiram que todos pudessem falar, se expressar de alguma forma, desde de divulgar uma inocente foto de seu cachorro, a conversar em tempo real com uma autoridade pública sobre suas opiniões. O acesso ficou democratizado, amplo e possível para milhões de pessoas que puderam encontrar quem pensa igual e discutir com quem pensa de forma oposta.

A questão é que o que era para ser essencialmente livre se tornou manipulado e hegemônico. Grandes corporações controlam e direcionam as plataformas a que temos acesso para expor nossas opiniões ou fotos de nossos cachorros. Somos constantemente direcionados a ler e ouvir as opiniões que concordamos e estimulados a nos digladiar com quem pensa diferente.
Maiores empresas do mundo atualmente, em valores de mercado.
Maiores empresas do mundo atualmente, em valores de mercado. / Reprodução
Mecanismos automatizados cuidam para que essa lógica perversa permaneça. E eles que nos faz voltar às informações que apenas confirmem o que pensamos e nos mantenham arredios a qualquer contestação.

Empresas como Google e Meta não apenas cultivam esses mecanismos como editam suas preferências. São veículos de comunicação, mais que plataformas de redes sociais. As vozes mais difundidas não necessariamente são as mais aceitas, mas por vezes as mais massificadas por decisões racionais e humanas de quem controla essas corporações.

O rádio permitiu o fascismo e o comunismo fossem possíveis e se espalhacem, assim como a internet permite que eleições sejam direcionadas e uma quantidade absurda de ódio seja cultivada dia a dia. A diferença das informações de jornais impressos de séculos passados está na quantidade. Centenas de milhões de pessoas são impactadas pelas mídias digitais, que seguem uma lógica própria.

Regulamentar a internet é necessário pelo mesmo motivo que a imprensa é regulada pelo Estado, por sindicatos, por regimentos internos, por códigos de ética e pelos leitores. Sim, os jornais possuem linhas editoriais. As notícias que são veiculadas são editadas, escolhidas para circularem em detrimento de outras. Mas os veículos de imprensa não são hegemônicas nas democracias.

Alguém pode ficar impedido de expressar um tipo de opinião em um jornal, ou aprovar trabalhos científicos em bancas de universidades. Mas certamente encontrará algum veículo ou academia que se interesse em divulgá-las. Em ditaduras acontece o contrário. Apenas um tipo de notícia ou informação é permitida, e para isso jornais são fechados e a liberdade de imprensa é tolhida.

A censura real acontece quando ela é feita de forma prévia ou que não exista espaço em nenhum lugar para determinado tipo de opinião. Regular não é censurar, e sim delimitar na lei o que pode ou não ser dito sem que haja consequências.
Dizer que um produtor de milho provoca a fome não é crime, mas incitar pessoas a matarem esse produtor dizendo a mesma coisa, enquanto invadem sua casa, pode ser considerado uma forma de participar de assassinato. Nos tempos de Mill e de hoje.

A liberdade não é absoluta. Os pactos sociais são formas de limitar liberdades para que se viva em mínimas condições de segurança e civilidade. Não pode existir em comunidades humanas um território onde não haja consequências. Em expressões humanas virtuais ou não, em formas de se relacionar digitais ou reais, sempre haverá danos possíveis por extrapolações de direitos e liberdades.
Impedir, então?
Por outro lado, impedir previamente opiniões ou transformar espaços públicos como as redes sociais em ambientes policialescos, onde o judiciário ou algum ente estatal exerça controle constante sobre o que é dito ou sobre opiniões de grupos empresariais acabam por configurar o mesmo problema anterior. A questão é a hegemonia, em última análise. A questão são os abusos de poder.

Quando o poder é muito concentrado, ele acaba por determinar as relações que o circundam. E quando essa concentração de poder é forte o suficiente para que essas determinações atinjam milhões de pessoas, temos um problema. Quando pessoas deixam de se vacinar por essas imposições, ou invadem prédios públicos pedindo regimes de exceção, temos um enorme problema.

A linguagem sempre será o código fonte da humanidade. A Bíblia e o Corão são palavras escritas, formas de linguagem que acreditamos serem sagradas. Constituições são palavras escritas e uma forma de linguagem que acreditamos ser a lei maior numa democracia. Mas apesar de exercerem poder e determinações seguidas por milhões de pessoas, não são hegemônicas. Há pluralidade de religiões e países seguem Constituições distintas.

Se concentramos poder demais, poderemos perder a capacidade de discernir se devemos ou não matar um produtor de milho.

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