É muito comum os historiadores confundirem cultura com Estado. É muito comum, atualmente, nivelar todas as culturas em sua complexidade. Nos planos paleolítico e neolítico, não se pode falar em Estado como no plano da civilização. Esta não é um nível elevado e aprimorado de cultura, como se costuma falar hoje em dia e como os marxistas tratavam as culturas: em estágios. Selvageria, barbárie e civilização. Até hoje, usa-se muito o contraste entre barbárie e civilização. Ela só vale no âmbito político e coloquial. No âmbito científico, não há mais lugar para este contraste, até porque as civilizações acentuam a violência e a guerra com mais frequência e intensidade que as sociedades paleolíticas e neolíticas.
A civilização mesopotâmica começou no norte dos rios Tigre e Eufrates, como mostrou detalhadamente James Mellaart em livro antigo, mas ainda hoje mencionado (“O Próximo Oriente”. Lisboa: Verbo, 1971). Um ou mais grupos neolíticos migraram para o sul da região, numa planície alagável e alagada. Para responder ao desafio dos pântanos e usar a terra fértil sob eles, era necessário um nível tecnológico mais aprimorado que o das culturas nômades. Esse ou esses grupos foram dominando as águas com canais e diques. Assim, foi possível a construção de cidades, palácios e templos. Acima de tudo, foi possível inventar o mais antigo sistema de escrita que se conhece.
Samuel Noah Kramer escreveu um livro intitulado “A história começou na Suméria” (Lisboa: Europa-América, 1963). Kramer foi um grande estudioso da Suméria num tempo em que ainda se confundia o início da história com as civilizações. Na visão da atualidade, a história começa com a criação da cultura, em torno de 1 milhão e 400 mil anos. Para os defensores da “Grande história” (“Big history”), a história começa na origem do Universo. Entre nós, sugiro a leitura de “Origens”, livro de David Christian (São Paulo: Companhia das Letras, 2019). Ao mesmo tempo, entendo que se trata de uma abordagem muito ambiciosa. Nem tanto nem tão pouco.
Mas, voltando à Suméria, verificamos que a cultura que se constituiu no sul da Mesopotâmia, há cerca de 5.200 anos antes do presente, não estava reunida num Estado. Pelo contrário, ela era partilhada por várias cidades-Estados. Houve centralizações parciais com Lugalzaguesi, com Sargão, com a Babilônia e com a Assíria. Mas a civilização sumeriana, ampliada pelo império acadiano, nunca foi encerrada num Estado. Ela esbarrou na civilização índica, a leste; na civilização cretense, a oeste, e na civilização egípcia, a sudoeste. Essas quatro civilizações tinham fronteiras robustas, conceito proposto por David Anthony (“The horse, the wheel and language: how bonze-age riders from the eurasiam steppes shaped the modern world”. Princeton: Princeton University Press, 2007). Eram fronteiras consistentes como as do mundo chinês, greco-romano, andino, centro-americano, hinduísta. As civilizações extrapolam as fronteiras políticas de Estados e Impérios.
A civilização mesopotâmica ou sumério-acadiana, como a denomina Arnold Tonybee, avançou por toda a Anatólia (Ásia Menor) e pelo planalto do Irã. Ao redor da Mesopotâmia, constituíram-se civilizações que o mesmo Toynbee denomina de satélites. Segundo ele, foram quatro: a elâmica, a hitita, de Urartu e a iraniana (“Um estudo da história”. Brasília/São Paulo: EdUnB/Martins Fontes, 1986). Revisando sua obra magna, o historiador britânico apenas retrata a alma das civilizações sem entrar no detalhe dos reis e das batalhas, o que ainda muito encontramos nos livros didáticos de história, que continuam valorizando os acontecimentos.
Civilização elâmica ou elamita
Sobre a civilização elâmica ou elamita, ele resume: “Elam é a bacia dos rios Karkheh e Karum ou atual Irã, juntando-se ao baixo curso dos rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque. Deverá a cultura elamita ser classificada, não simplesmente como uma província cultural local da civilização sumério-acadiana, mas como uma civilização característica filiada à sumério-acadiana? As bases para classificá-la como uma civilização diferenciada são a sua língua, que não se relaciona seja com a suméria seja com a acadiana-semita, e sua escrita nativa. Mas a invenção desta escrita pode ter sido inspirada por uma relação com a escrita suméria, e durante alguns períodos importantes da história elamita uma versão da escrita sumério-acadiana foi usada para transmitir a língua elamita”.
O território da civilização elamita corresponde ao atual sudoeste do Irã e pequena parte do sul do Iraque, a leste da Mesopotâmia. Os mais antigos registros históricos dessa civilização datam de 3000 a.C. O Elã ligou a civilização mesopotâmica à civilização iraniana a partir do império Aquemênida. A língua falada no mundo elamita parece ser uma língua de filiação ainda hoje não identificada, como o sumério e o basco.
De todas as primeiras civilizações periféricas às civilizações pioneiras, o Elã é a mais antiga a fazer registros de sua existência, que se estendeu de 2.700 a.C. a 539 a.C. A famosa cidade de Susa foi sua capital. Os elamitas lutaram contra os sumérios, os acádios e os babilônicos até serem dominados por Nabucodonosor II no século VII a. C.
Os habitantes do planalto elamita eram politeístas. Kiririsha foi uma das mais cultuadas deusas do panteão, indicando um culto matriarcal.
Civilização hitita
Toynbee escreve na última revisão de sua lista de civilizações (“Um estudo da história”. Brasília/São Paulo: EdUnB/Martins Fontes, 1986): “Seu domínio de civilização era a Ásia Menor (atualmente a Turquia), mas denominá-la ‘asiático’ seria criar confusão, pois a palavra ‘Ásia’ veio a denominar todo um continente, e não mais apenas a Ásia Menor. Os hititas, incluindo os predecessores locais de língua indo-europeia, ocuparam apenas uma dessas províncias na Anatólia, e a civilização alcançou seu zênite, e talvez o tenha ultrapassado, antes que os hititas e os luvitas (vizinhos ocidentais dos hititas) tivessem chegado à Ásia Menor”.
A capital do reino hitita, com cultura derivada da Mesopotâmia, foi Hatusa. A cultura material mostra clara influência sumério-acadiana. As civilizações vistas pelos estudiosos como secundárias deveriam ser estudadas pelas imagens que deixaram. A cultura material constitui o principal traço da gramática das civilizações, como entendia Fernand Braudel. Contudo, os livros didáticos estão cheios de informações que os estudantes logo esquecerão e pobres de ilustrações.
O mais estimado animal dos hititas era o cavalo. Calcula-se que os habitantes da Anatólia tenham entrado na Ásia Menor no século XX a. C. A escrita foi importada da Mesopotâmia e adaptada à cultura local. Os hititas enfrentaram o poderoso império egípcio em sua fase de expansão fora da África. Ramsés II, famoso faraó guerreiro do Egito, enfrentou o príncipe hitita Hatusil III na batalha de Kadesh, que terminou com a vitória hitita, algo que Ramsés II ocultou. A guerra sempre gerou informações confusas. O famoso Tratado de Kadesh, celebrado em 1259 a.C., estabeleceu um acordo de paz entre os impérios Egípcio e Hitita. É o tratado escrito mais antigo que se conhece.
Se a paz reinou entre as duas potências da época, no plano interno, os hititas se envolveram em guerras que esfacelaram o império. Os hititas representaram um grande perigo para o Oriente Médio. Na fronteira ocidental da Ásia Menor, eles ofereciam ameaça para os gregos. Na fronteira oriental, eles saquearam a cidade da Babilônia.
Civilização de Urartu
O território onde se desenvolveu a civilização de “Urartu (o nome desta região sobrevive com o nome do monte Ararat) coincide em área, aproximadamente, com a extremidade oriental da atual Turquia e com a atual República Soviética de Erivan. O núcleo central do reino de Urartu (séculos IX a VIII a.C.) era a bacia do lago Van, mas Urartu abrangia também as bacias superiores do rio Aras e do rio Eufrates, isto é, ambos os braços do Eufrates superior”. (Toynbee).
O reino de Urartu empregava a escrita cuneiforme sumério-acadiana para redigir textos em língua própria. A estela de Kelishin, redescoberta no século XIX, contém uma inscrição bilíngue em assírio e urartiano.
Civilizações judaica e iraniana
A primeira nasceu do encontro das civilizações mesopotâmica, egípcia, hitita e cretense, ganhando uma dimensão que ultrapassou o tempo e chegou aos nossos dias, embora bastante influenciada pelo ocidente. A segunda nasceu da influência mesopotâmica, judaica, islâmica e ocidental. Têm sido muito estudadas. Não precisam figurar nessa lista. Não são nada desprezadas.