Primórdios da comédia romântica
Edgar Vianna Andrade 16/10/2018 10:58 - Atualizado em 16/10/2018 18:29
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Alguns esboços de comédia romântica e da emancipação feminina no cinema podem ser encontrados nas origens da nova arte. No entanto, creio que nenhum outro filme da época foi mais explícito quanto aos dois temas que “Eu não quero ser um homem” (no original, “Ichmöchtekeinmannsein”), do genial Ernst Lubitsch, de 1918. O cineasta ainda vivia na Alemanha, de onde se transferiria para os Estados Unidos na década de 1920, tornando-se um dos maiores cineastas de todos os tempos.
Não sei se movimento passageiro ou progressivo, o feminismo devia olhar para esse filme de 45 minutos produzido há um século, no último ano da Primeira Guerra Mundial. Ele escalou a atriz Ossi Oswalda para o papel de mocinha rebelde. Oswalda e Pola Negri serão suas prediletas na fase alemã. Ela figurou em vários outros filmes do diretor.
O filme começa com a moça jogando e fumando entre homens. A criada da família a repreende por seus modos liberais e masculinos. No entanto, a criada experimenta o cigarro na sua solidão. Em casa, Ossi entorna um cálice de bebida. O pai a surpreende e chama a sua atenção. Longe de qualquer olhar, o pai faz o mesmo. Além de mostrar a emancipação feminina, já em curso naquele tempo, o filme mostra também a hipocrisia dos mais velhos. O fim da Belle Époque começou a liberar as mulheres.
Para controlar a menina levada, sua mãe contrata um preceptor a fim de domar a filha e formar uma dama de sociedade. Curt Goetz faz o papel do professor autoritário. Oswalda se pergunta por que nasceu mulher. Ela gostaria de ser um homem para gozar de mais liberdade. Então, ela decide se travestir. Não se trata de transexualidade, mas de experimentar o papel masculino. É antigo o tema de mulher vestida de homem. Ele está presente na cultura popular e erudita. Vejam-se os casos de Joana D’Arc e do romance entre Diadorim e Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.
Disfarçada de homem, Oswalda frequenta um bar superlotado de homens e mulheres de má reputação. Ela não convence o espectador de hoje quanto ao seu papel masculino, mas é cortejada por alguns homens no lugar público. Lá, ela encontra seu professor e acaba se envolvendo amorosamente com ele. Em vários filmes de Lubitsch, os homens se beijam, mas não de forma erótica. Aqui, temos um homem já embriagado com uma mulher, também embriagada, que ele julga ser um homem de verdade. Trata-se de um caso de homossexualismo retratado com ousadia no longínquo ano de 1918. O diretor trabalha bem o relacionamento. Goetz não sabe que o homem com quem troca carícias eróticas é uma mulher, mas o espectador sabe.
Nos anos de 1950, Alfred Kinsey divulgou sua famosa escala de orientações sexuais com sete posições. No zero, está o exclusivamente heterossexual. No 6, está o exclusivamente homossexual. No meio, há várias combinações. Há situações em que o mais convicto heterossexual tem descuidos homossexuais, como na embriaguez, por exemplo. Ele fica vulnerável com outro heterossexual, trocando com ele abraços e carícias. Lubitsch fugiu da crítica exatamente colocando dois homens nessa situação, sendo que um deles é uma mulher disfarçada.
No filme, há ainda a antológica cena de homens sob a sacada de Ossi, desejando lhe fazer uma serenata. Com suas bengalas usadas como símbolo fálico, eles sugerem o que desejam com a moça. Por fim, ela e Goetz se enamoram. Ela não gostou do papel de homem. “Eu não quero ser um homem” é o filme principal a ser exibido amanhã no Cine Clube Goytacá.

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