Crítica de cinema - Horror, humor e reflexão
- Atualizado em 22/03/2019 18:37
(Nós) - O novo filme do cineasta Jordan Peele (Corra) tem um título que é perfeito no conceito da obra. O título original “Us”(Nós, é uma tradução literal que infelizmente tira a força semântica do título), essa duas letras remetem as primeiras palavras e à forma como alguns americanos se referem resumidamente ao nome do próprio país e ao mesmo tempo abrange a todos como primeira pessoa do plural (esse efeito não se perde na tradução).
Desde seu título “Nós” já apresenta uma série de detalhes importantes que vão construir essa experiência cinematográfica. Após o sucesso do surpreendente “Corra”, Peele volta com um projeto ainda mais ousado, tanto temática como visualmente, em um longa recheado de camadas, aberto a diferentes interpretações, que mistura o horror com um humor negro muito forte como bases de uma narrativa que vai além da exibição, é um filme que fica na cabeça do espectador.
Na trama, uma família vai para uma casa de veraneio para relaxar e após alguns estranhos acontecimentos, eles viram reféns de criaturas com aparências iguais as suas. Agora eles precisam lutar para sobreviver, enquanto descobrem a verdadeira natureza sobre tudo o que vem acontecendo.
Esse é o segundo longa de Peele como diretor e é invejável a segurança de seu trabalho, mesmo com tão poucos longas em seu currículo. Essa segurança já havia sido demonstrada em “Corra”, um filme que surpreendeu a todos com sua mistura de horror psicológico com crítica social, mas aqui o fator surpresa já não está mais presente, pelo contrário, poderia trabalhar contra o trabalho do diretor, que aqui realiza um filme de ambições diferentes, mas com algumas características similares e um refinamento visual que impressiona. Não é um filme tão incomodo quanto seu trabalho anterior, mas certamente é mais tenso.
O longa abre com uma espécie de prólogo que traz cenas aparentemente desconexas, mas que já trazem detalhes importantes sobre os acontecimentos futuros e trabalham a sensação de que algo está errado. Com movimentos de câmera sutis e uma trilha sonora perfeita na função de causar essa sensação (composta por Michael Abels, repetindo a parceria do longa de 2017), Peele já constrói o clima e a ambientação que vão permear o restante da produção.
Se em “Corra”, toda a tensão era trabalhada sobre o poder da sugestão, aqui ela é trabalhada de forma mais direta. Com a invasão dos duplos (ou sombras, como chama o filme), o longa ganha em tensão e os acontecimentos causam mais perguntas que respostas. Esses duplos têm um visual ameaçador, mas ao mesmo tempo transparecem uma história trágica por trás de tudo aquilo.
Um elemento que certamente vai dividir o público é o humor do filme. Peele é oriundo da comédia e traz diversas gags que surgem nos momentos mais inesperados e surpreendentemente funciona em grande parte das cenas. É um artifício ousado, pois se mal utilizado pode tirar o espectador do clima de tensão, mas o diretor demonstra que entende muito dos dois gêneros, conforme o mesmo já ressaltou em entrevistas, ambos podem partir do absurdo e Peele parte dessa regra para misturar dois gêneros conflitantes de forma tão coesa.
Outra características forte no trabalho do diretor, é a inversão de convenções, aqui por exemplo é a protagonista Adelaide (Lupita Nyongo’o) quem assume o papel de defensora da família. Não por acaso, no momento em que os invasores adentram a casa, surge a imagem da família amedrontada, mas ao lado tem fácil visualização um pôster com um desenho de uma mulher adulta e uma menina, ambas com braços erguidos em posição que demonstra força.
Merece destaque o elenco do filme, principalmente o núcleo da família. Com destaque para Winston Duke, que interpreta o pai e consegue trazer uma leveza diferente, os maiores momentos de humor acontecem com seu personagem, mas Duke consegue trazer carisma sem tornar o personagem irritante.
Mas o filme é todo de Lupita, a atriz tem duas interpretações impressionantes (como Adelaide e como seu duplo), consegue soar frágil e ameaçadora e é impressionante, como com o aumento da violência, as duas vão se tornando cada vez mais parecidas.
O maior problema do longa está em seu ato final, onde precisa se explicar de mais, acaba soando um pouco didático em um determinado momento, mesmo que ainda deixe muito para a interpretação do público.
Jordan Peele, mais uma vez entrega um filme que funciona como entretenimento provocativo e envolvente, traz mensagens políticas em seu subtexto, faz críticas contundentes a sociedade atual, tudo isso dentro de um filme intrigante, tenso e de visual caprichado. É um cinema que faz pensar e te faz ter vontade de revisar o filme. Em um cinema mainstream de filmes cada vez mais “descartáveis”, essa é a prova definitiva que o cinema de Peele veio pra ficar.

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