A modernidade e a pornografia
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 30 de junho de 2017
A modernidade e a pornografia
Aparício Torres
 
Nudez não é sinônimo de pornografia. Nas sociedades paleolíticas, a nudez feminina e masculina era comum e cultuada como símbolo da fertilidade. Haja vista as Vênus do paleolítico superior europeu. As figuras femininas são representadas com excessivo realismo, sem poupar aquilo que as mulheres atuais abominam: celulite, culote, estrias, seios flácidos. As figuras masculinas, por sua vez, ostentam com tranquilidade pênis livres. Nas culturas neolíticas e nas civilizações pré-europeias também não se conhece o que denominamos de pornografia. Bem ao contrário, a vida sexual era tratada com normalidade e dela participavam todos: adultos, crianças e idosos. Não ativamente. Às crianças, porém, não havia mistérios sobre sexualidade e reprodução. Livros como “Kama Sutra” não tinham por fim ensinar posições pornográficas, mas buscar espiritualidade mediante a vida sexual.
Entre os egípcios, cretenses, chineses, japoneses, gregos, etruscos, romanos, andinos e astecas, nudez, seios, vaginas e pênis tanto quanto atos sexuais eram entendidos como parte natural do corpo humano e como atividades comuns. Quando e onde, afinal, criou-se a pornografia, ou seja, imagens e palavras com vistas à excitação sexual? Lynn Hunt, um especialista no assunto, sustenta que foi no século XVI, na Europa Ocidental. A conclusão está em “Obscenidade e as origens da modernidade”. (HUNT, Lynn (org.) “A invenção da pornografia”. São Paulo: Hedra, 1999).
O primeiro autor a escrever um livro claramente classificado como pornográfico teria sido Pietro Aretino (Itália, 1492-1556) com "Diálogo das prostitutas". Num contexto cristão, pornografia vincula-se à subversão política e religiosa. Melhor dizendo, ela assume um significado dúbio. Por um lado, ela contesta a cultura vigente, perseguida e jogada nos porões. Por outro lado, ela é vista por certos intelectuais como forma de libertação.
Ainda Hunt com a palavra: “Embora o desejo, a sensualidade, o erotismo e até a representação explícita dos órgãos sexuais possam ser encontrados em muitos, senão em todos os tempos e lugares, a pornografia como categoria legal e artística parece ser um conceito tipicamente ocidental, com cronologia e geografia particulares.” Ela está “Vinculada ao livre-pensamento e à heresia, à ciência, à filosofia natural e aos ataques à autoridade política absolutista, ressalta especialmente as diferenças de gênero que se desenvolviam na cultura da modernidade.”
A pornografia está associada a uma economia de mercado, sobretudo em sua forma impressa. Ela foi e ainda é um produto feito por homens para homens. Eles podem escrever obras de pornografia com pseudônimo até as atribuindo a mulheres. Até hoje, a mulher é representada na pornografia como tendo a lascívia e a luxúria masculinas. Ainda hoje, atribui-se à mulher uma sexualidade que lhe é estranha. Por exemplo, uma mulher se relacionando com vários homens ao mesmo tempo. De fato, tal imagem escrita, desenhada ou fotografada expressa o que os homens desejam das mulheres, não o que desejam as próprias mulheres. A pornografia é um campo em que o machismo ainda predomina.
Em toda a primeira fase da Modernidade, do século XV ao XVIII, “Os homens respeitáveis não mantinham em suas bibliotecas obras consideradas ‘muito lascivas’, embora frequentemente as procurassem para os seus prazeres privados.” (Hunt). Apenas autores declaradamente contestadores, como o Marquês de Sade, por exemplo, assumiam o prazer com a pornografia. Trata-se de um autor icônico. Ele associa Eros a Tanatos em seus escritos. No livro “Os 120 dias de Sodoma”, ele aproxima o prazer sexual, que depende do corpo, à extinção desse corpo. Pasolini associou esse impulso ao fascismo.
Os intelectuais progressistas costumam defender a pornografia, mas hesitam diante de certos excessos, como a urolagnia, a coprolagnia e a violência. O estupro está intimamente ligado à pornografia clássica, mas hoje é condenada. Normalidade ou anomalia? Aceitar ou repudiar? A sexualidade ainda anda sobre o fio de uma navalha no ocidente.
No final do século XIX e no século XX, proliferaram os livros de pornografia. Um bastante conhecido é “A vênus de quinze anos” (São Paulo: Hedra, 2014), de Charles Swinburne, narrando as aventuras sexuais de uma ninfeta. Embora redigido por um famoso escritor, o livro apela para sensações fáceis. Idem com “Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada” (São Paulo: Hedra, 2014), de Anna P. A autora tanto pode ser uma homem como uma mulher. Pornografia vende.
No Brasil, Carlos Zéfiro, pseudônimo de Alcides Aguiar Caminha, modesto funcionário público morto em 1992, marcou época. Ele fez desenhos com fins nitidamente pornográficos entre as décadas de 1950 e 1970. Esses desenhos figuravam em revistinhas vendidas sigilosamente em bancas de jornal porque eram proibidas e podiam gerar prisão para os vendedores. Apenas pessoas da confiança dos donos de bancas podiam comprá-las. Essas pessoas repassavam as revistas aos amigos. Sua função era ajudar adolescentes a alcançar mais prazer nas masturbações. Não me consta que fossem lidas por moças. Os desenhos eram meio grotescos, mas funcionavam. Perto de morrer, a identidade de Zéfiro foi revelada. Hoje, suas histórias são objeto de estudo de antropólogos e artistas plásticos. Marisa Monte usou desenhos dele no encarte do cd “Barulinho bom – uma viagem musical”. Enfim, Zéfiro se tornou cult. Hoje, é livremente vendido em livrarias de alto nível.
Ainda no Brasil, autores como Glauco Mattoso (e seu fetiche por pés masculinos), Reinaldo Moraes e Hilda Hilst flertam ou assumem claramente um viés pornográfico em sua poesia e prosa. Da literatura, a pornografia saltou para as artes da imagem. No século XVIII europeu, proliferaram desenhos pornográficos. Desenhos sequenciados deram origem às histórias em quadrinho e às animações. Robert Crumb, Milo Manara e Giovanna Casotto retratam o erotismo em primorosos quadrinhos. Casotto é de grande explicitude em seus desenhos altamente estéticos.
Com a invenção da máquina fotográfica, a imagem captada da realidade permitiu fotos de pornografia. Colocadas em sequência, tais fotos deram origem à fotonovela e ao cinema. Já nos primórdios do cinema, as casas de prostituição eram animadas com filmes pornôs. Uma coletânea deles nos anos de 1920 pode ser vista no DVD “Vintage erotique” (Magnus Opus, 2010). Atualmente, produtos pornográficos não estão cercados da aura de proibição. Qualquer adolescente pode ter acesso a desenhos, fotos, quadrinhos, animações e filmes pornográficos na Internet.

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    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

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