'É uma derrota séria da esquerda'
Rodrigo Gonçalves, Aluysio Abreu Barbosa, Cláudio Nogueira e Ingrid Silva (estagiária) 22/11/2023 08:59 - Atualizado em 22/11/2023 08:59
Alberto Aggio
Alberto Aggio / Divulgação
“A vitória do Milei é uma derrota séria da esquerda, inclusive do personagem de esquerda na América Latina mais relevante do ponto de vista mundial, que é o presidente Lula”. A avaliação é do historiador, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e especialista de História da América Latina, Alberto Aggio, feita no Folha no Ar dessa terça (21), na Folha FM 98,3, sobre a eleição do anarcocapitalista Javier Milei a presidente da Argentina, no segundo turno do último domingo (19), em cima do peronista Sergio Massa. “A esquerda na América Latina já não é mais aquela velha esquerda dos anos 60, 70, 80, que nós conhecemos no século 20, e eu poderia dizer que a vitória do Milei talvez seja, efetivamente, o final do século 20 na América Latina”, analisou Aggio, que comentou também as causas da vitória de Mieli e possíveis consequências não só à Argentina e Brasil.
Direita vence — É uma eleição categórica. Não há nada a questionar, inclusive o Sergio Massa, mesmo antes dos resultados oficiais começarem a ser divulgados, se comunicou com ele e parabenizou pela vitória e fez uma declaração pública de que reconhecia, então, a derrota e a vitória do Milei. Como é que se explica tudo isso, já que Sergio Massa saiu na frente no primeiro turno, havia outros candidatos, que nós sabemos, especialmente uma terceira candidata que é de uma direita, digamos, mais liberal, mais moderada que é a Patrícia Bullrich, que uma figura importante do ponto de vista político e econômico na Argentina pela sua família e conseguiu um percentual de votos significativo que, daí, se pode começar a explicar a diferença de 12% para Milei em relação a Sergio Massa. Então, o fato é que no segundo turno houve uma reconfiguração de forças e, nessa reconfiguração de forças, a maior parte do eleitorado seguiu com Milei e não com Massa. E isso fez com que houvesse uma reviravolta: quem ficou em segundo no primeiro turno passou a primeiro lugar e abriu uma distância. Abriu uma distância porque não só Patrícia Bullrich apoia o Milei no segundo turno, mas como ex-presidente Mauricio Macri. São forças políticas similares, mas são diferentes, então se agregou mais ainda um percentual de votos através dessas duas lideranças. Enquanto que o Sergio Massa, como vem do mundo peronista e o mundo peronista sempre teve como grande adversário os setores da UCR, da União Cívica Radical na Argentina, de outras forças como socialistas, democráticos, etc. O que ocorre é que o Sergio Massa conseguiu uma ampliação da sua votação, mas uma ampliação muito menor.
Persona — Do ponto de vista geral, o que ficou claro é que, o Javier Milei faz uma campanha onde ele é um personagem, ele cria uma persona, não se sabe muito bem se essa persona será o novo presidente efetivamente ou não, muito provavelmente não, porque essa persona cumpre um papel e uma função eleitoral e não uma função de liderança política real nas circunstâncias políticas que está a Argentina agora. Então, o que ocorreu? Ocorreu que o Javier Milei, através dessa persona, estabeleceu algumas clivagens no processo eleitoral do primeiro turno, que era efetivamente o povo Argentina contra a casta exploradora que ele chama, referindo-se a todo o mundo político argentino. Então, esse foi o momento do Javier Milei no primeiro turno. Quando ele passa para segundo turno e, efetivamente, tem que ampliar a sua base, o seu consenso eleitoral e ganha, gradativamente, o apoio desses outros setores, o Javier Milei muda o seu discurso no final, no segundo turno. Seu discurso é absolutamente, claramente, aquilo que a Patrícia Bullrich havia estabelecido na eleição que é. Não mais Peronismo, não mais Kirchnerismo. Então, o Javier Milei passa a estabelecer essa clivagem e, nessa clivagem, ele isola mais ainda o Sérgio Massa e impedindo que o Sérgio Massa possa ou pudesse ampliar o seu consenso eleitoral. Então, aí você tem um aspecto de mudança importante que indica efetivamente que o Javier Milei não é inflexível dentro daquela persona que ele criou do ponto de vista eleitoral e ele vai fazer manobras políticas, como é claro, que deve ser feito e é necessário ser feito, porque não se pode governar a Argentina nem nenhum outro país onde o Estado tem uma configuração muito maior do que a ideia de um Estado apenas repressor, etc, um Estado ampliado. Vamos dizer assim, na linguagem gramsciana. Então, esse Javier Milei precisa efetivamente de levar em consideração o parlamento, o parlamento tem outras forças, ele é bastante minoritário no Parlamento. Então, nesse sentido, o apoio do Macri, o apoio da Bullrich é fundamental, foi na eleição, na vitória e será fundamental no decorrer do mandato. Alguns analistas falam claramente em um poder muito maior que o Macri recupera na Argentina no contexto da eleição no segundo turno. Nesse sentido, eu acho que tem muitas coisas que precisarão ser analisadas, etc, para que a gente possa acompanhar esse processo e ter alguma visão mais clara dele.
Sem medo — Ficou claro que enquanto o Sergio Massa adotou um discurso político eleitoral no final que tinha como ponto de estruturação a ideia do medo, como se fez já no Brasil, em diversas eleições, não é? “Não vote em fulano de tal, porque ele é o fim da nossa democracia, o fim de tudo”, enfim, o Milei dava essa demonstração, porque era é um candidato que aparece cheio de insights. Essa ideia do medo não foi capaz de suplantar a resposta que o Milei dá. O Milei dá a resposta que é: “Nós estamos fartos de todos vocês. Nós estamos fartos do Kirchnerismo, nós estamos fartos desse tipo de política, a Argentina precisa mudar” e aí todas as propostas que ele colocou que, certamente, ele vai moderar. Ele vai, digamos assim, mediatizar essas propostas se for efetivamente cumprir, mas o que aconteceu, do ponto de vista eleitoral é: se a se havia uma certa crença de que a palavra de ordem lulista “a esperança vence o medo”, na Argentina isso não colou para aquela sociedade e no final das contas, o Javier Milei ressuscita aquela ideia lá do 2001, “que se vayan todos”. E aí, a ideia do farto, não é? “Estamos fartos de todos vocês”. Então, eu acho que isso ocupou um lugar decisivo na reta final e que deu a vitória ao Milei.
Comparação com Trump e Bolsonaro — O Milei estabelece uma lógica política de mudança total e integral e ele vai ter que moderar, ele vai ter que mediatizar. Isso significa que também os seus vão estar insatisfeitos. Então, o cenário que aparece agora é um cenário muito complexo. Não é um cenário branco no preto, é um cenário de muitas variações, de muitas ponderações. Veja, no primeiro mandato de Trump, por mais que ele quisesse, era impossível e foi impossível ele estabelecer todas aquelas mudanças drásticas que ele queria colocar na sociedade Norte americana, que é muito estruturada. Ali, o Estado não está só no aparelho de Estado. Ali, o Estado está na sociedade como um todo. A democracia americana não é uma democracia frágil. Não é uma democracia que alguns grupos seja lá de onde aparecerem, tentem tomar o poder, isso não acontece (...) Há razão ao observar a possibilidade da vitória do Trump (nas próximas eleições), mas nada disso agora é como a do Milei, agora será uma vitória integral, que vai destruir a democracia. Então, eu não vejo como um fato seguro e certo de que é o caminho para essas forças consiga ser levado de maneira lisa e tranquila, apesar de todas as críticas e crispações que existem no cenário político nacional e também interno em cada país. Eu acho que isso aí é algo que a gente deve levar e entender com muita tranquilidade, muita capacidade de leitura crítica. Veja, as mudanças que o Milei pretende fazer só puderam ser feitas no Chile, a base de uma ditadura de 17 anos muito violenta. O Bolsonaro aqui sequer esboçou, praticamente, mudanças do ponto de vista econômico, estrutural, do lugar do Estado na sociedade brasileira. O Bolsonaro aqui foi muito pouco reformista do ponto de vista neoliberal. Ele foi um corporativista. Na verdade, um político menor. Eu acho que não é o caso do Milei. O Milei é diferente do Bolsonaro pela formação, por tudo, é um economista, é uma pessoa que, minimamente, sabe do que do que está falando. O problema do Milei, do ponto de vista da análise do ator político é bastante outro. Agora, veja, em nenhum outro país da América Latina isso aconteceu. Isso veio de maneira lisa, então, aquilo que é a verdade eleitoral não é, efetivamente, a verdade política para fazer com que o programa do Milei se afirme de maneira tranquila.
Discurso do liberalismo — Quanto ao neoliberalismo, é claro que em países como os Estados Unidos, como a Inglaterra, aí o cenário é outro, porque é uma outra cultura social que predomina naqueles países diferentes da América Latina, que só conseguiu construir a modernização a partir do Estado. E o que não é o que ocorreu na Inglaterra, o que não é o que ocorreu nos Estados Unidos. Então, esse discurso do liberalismo, do neoliberalismo ultrarradical, como Milei diz, ele fala que ele é o primeiro presidente liberal, libertário, da história da humanidade. Ele usa essas expressões. Ele pode ser o que ele quiser. Agora, eu não sei se o governo dele será efetivamente liberal libertário nos próprios termos que ele põe. Então, eu relativizo muito isso e essas mudanças na América Latina e, nessa perspetiva, são difíceis de se realizar por esses caminhos que estão sendo postos. Nós estamos em uma mudança, em uma transição estrutural, isso é certo. É por isso que esses atores que aparecem põem essas temáticas. E é por isso que a esquerda na América Latina já não é mais aquela velha esquerda dos anos 60, 70, 80, que nós conhecemos no século 20 e eu poderia dizer a vitória do Milei talvez seja, efetivamente, o final do século 20 na América Latina. E aí nós vamos entrar no século 21, não de uma maneira triunfante, como imaginemos que a América Latina toda unida na lógica Fidel Castro e Che Guevara, nós estamos muito longe disso. Nós não estamos também no momento em que as classes econômicas da burguesia, da indústria e dos trabalhadores vinculados num esquema tipo Varguismo, Peronismo, tenha se espalhado na América Latina como um todo, e aí o desenvolvimentismo, o mercado interno, toda essa lógica cepalina, que atravessou correntes políticas, essa também não é a expressão vitoriosa, triunfante para entrar no século 21.
Maior aceitação — O que aparece é que as forças políticas ideológicas da direita, dos liberais, nas suas várias correntes e figurações, estão tendo nesse momento muito maior aceitação, muito maior público, muito maior organização político discursiva do que a própria esquerda. É uma esquerda que não é mais a velha esquerda, mas também não é uma nova esquerda. Então o que acontece no Brasil de Lula? Lula e Boric têm visões diferentes sobre a América Latina. Boric e Petro também, e ainda mais, se formos ampliar para o México que é mais complicado ainda. Então, o século 20 populista latino-americano está acabando. E não é verdade que o Milei venceu e vai estabelecer uma lógica populista. O populismo é um conceito, digamos assim, preguiçoso para resolver explicar todas as situações. Imaginava-se que contra o populismo na América Latina, contra um populismo de direita, um populismo de esquerda venceria esse embate. A derrota do Massa na Argentina prova exatamente o contrário. Para enfrentar um tipo de candidato que aparece assim, que poderia ser definido como populista, um outro populismo peronista vai ser derrotado, e isso acontecerá aqui no Brasil, muito provavelmente. Se o caminho for nessa direção, muito provavelmente essas forças chamadas democráticas progressistas, perderão a eleição, se não forem capazes de conceber uma renovação profunda de dimensões globais, porque não se trata mais de uma política país a país somente.
Privatizações na Argentina — Eu acho que privatizar a companhia de petróleo é uma das grandes possibilidades do Milei, Inclusive para ter ingressos de dólares, ingressos de receita. Eu não vejo como um grande problema. Você vê que esse tema sempre é colocado aqui no Brasil, o processo de desestatização da Petrobras é algo já existente, mas não inteiramente não completo (...) O Milei vai mediatizando em certos pontos e mantendo a sua estratégia em outros. Isso tudo depende da capacidade de ele conseguir reproduzir aliança eleitoral no segundo turno, se ele conseguir reproduzir e se não houver nenhuma fissura, eu acho que ele tem grandes probabilidades. Se ele radicalizar e estabelecer aquela lógica figurativa, da persona que ele criou no primeiro turno, eu acho que aí efetivamente ele dura pouco. É um governo que dura pouco. Mas se ele conseguir, de certa forma, uma política mais mediatizada, mais equilibrada, mais de compromissos, o Milei não é um Pinochet e nem pode ser um Pinochet. Os cenários são de ação política.
Derrota de Lula — O Bolsonaro vai lá na posse do Milei. Por quê? Porque eu Lula rejeitou, porque o Lula estabeleceu um posicionamento na eleição da Argentina, que era tudo, ou nada. O Lula achou que ia ser um passeio. Lula achou que o Milei era um falastrão e que iria morrer na praia. E jogou assessores lá, jogou assessores pesados, gente que entende de eleição, de sociologia eleitoral, etc. e perderam. Fica difícil agora voltar para trás. Portanto, aquela nota de Lula é uma nota pífia. Por quê? Porque o erro está estabelecido. Então, no final das contas, a vitória do Milei é uma derrota da esquerda e é uma derrota séria da esquerda, inclusive do personagem de esquerda na América Latina mais relevante do ponto de vista mundial, que é o Lula. Lula sofre uma derrota extraordinária na eleição do Milei. Essas coisas, essas coisas pesam, então, se o Lula começava a perder prestígio, agora a derrota é séria. Eu vou citar aqui um historiador chamado Horácio Tarkus, que é um historiador argentino, com trabalhos muito interessantes e ele disse assim: “Estas eleições não representam só uma derrota kirchnerismo, da união pela pátria, ou do peronismo em geral. São, sobretudo, uma derrota da esquerda. O resultado dessas eleições, são sobretudo uma derrota política, social, cultural da esquerda, dos seus valores, das suas tradições, dos seus direitos conquistados e da sua credibilidade”. Então veja, nós podemos começar, como começamos aqui, na análise do movimento eleitoral, ganhou por quê? Como é que foi? Mas a coisa mais funda e deve ser vista com maior profundidade. Por que como o peronismo ressuscita desse tipo de situação? O peronismo perdeu nessa eleição em bases que eram tradicionalmente peronistas no interior da Argentina. Quase todas as províncias o Milei ganhou, e, em Buenos Aires, o Massa ganhou por pouquíssimo (...) Essa é uma situação, do meu ponto de vista, complexa o suficiente para a gente não ver, é preto no branco e a acompanhar com muito mais atenção. E eu posso dizer assim: meus amigos bem-vindos ao século 21. Acabou a história de que a América Latina unida contra o imperialismo, contra os colonizadores, etc. e tal, vencerá (...) Os conceitos foram ultrapassados, o populismo acabou. As forças políticas são muito mais diversas. E se a esquerda, democrática, progressista, não conseguir pensar de maneira diferente, a direita vai avançar.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS