Férias e feijoada, é o que precisamos
Edmundo Siqueira 22/12/2023 21:49 - Atualizado em 22/12/2023 21:57
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Um murmúrio que vinha acompanhado de um cheiro. Entro na cozinha e a concentração silenciosa de minha mãe me deixou ouvir e ver charmosamente aquele balé de bolhas que subiam e estouravam, formando um som murmurado, quase como se fosse uma algazarra entre as bolhas de vapor e água que estavam em ebulição, vindo da panela preferida dela. E o cheiro vinha junto; uma mistura de alho, cebola e amido, que se misturaram alguns minutos antes, através da gordura, e agora fundem-se no branco granulado e perfurado.
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Tinha-se o costume de fazer o arroz antes, em dias de feijoada. Ele, meu pai, preparava as carnes de véspera — uma carne-seca suculenta recebia a última limpeza, cortava-se ao meio gordos paios e o toucinho reluzente escolhido literalmente a dedo, na antevéspera, fechava o que havia de embutidos e proteínas. Dormiam na geladeira, com plástico filme cobrindo para não passar cheiro e perder sabor, e logo de manhãzinha (quase sempre aos domingos), já estavam separadas sobre a pia, cada qual em um pote, previamente combinado entre os cozinheiros. Aí se iniciavam os trabalhos da feijoada.
Com o arroz já pronto e sua panela devidamente embrulhada com um pano de prato, o preparo do guisado iniciava-se. O feijão preto afogado em água limpa precisaria de umas três horas de cozimento, não mais que isso, pois precisava estar al dente. Algumas folhas de louro foram lembradas pelo meu pai inutilmente, respondido com uma pergunta ácida por parte de minha mãe, onde o preparo mudaria de mãos a depender da resposta. No mesmo fogão, as carnes também recebiam uma quentura, que servia para retirar um pouco do sal concentrado para conservação, e dar maciez. Daí chegava a melhor parte para mim; o refogado com bacon, linguiça e alho quase torrado, que misturava-se com algumas conchas de feijão e depois todos os ingredientes iam juntos para o fogo. Meu pai sempre se queixava da ausência de pés e orelhas suínas, partes que minha mãe tinha aversão. E, claro, era respeitado.
A segunda melhor parte para quem assistiu impávido e ansioso todo aquele preparo dançante se dava à mesa. A panela maior, de duas orelhas laterais redondas, que meu pai trouxe com auxílio do mesmo pano que encobria o arroz, era aberta, e todos aqueles odores e sabores brindaram-nos com a primeira fumaça que era expulsa, na retirada da tampa. Couve e farofa acompanhavam, e alguns gomos de laranja descascada estavam ao alcance de quem quisesse quebrar um pouco da gordura, que apesar de deliciosa era pesada. A comida nos abraçava, e nos dava um sentimento de família, algo comum a nós ali naquela mesa. Era deliciosa, mas, caso não fosse, seria do mesmo jeito naquela ambientação mágica.

A feijoada, embora seja um prato, da maneira como feito por minha mãe e meu pai, tipicamente brasileiro, não foi criado nos quilombos e senzalas, como um certo romantismo intelectual quis vender por aqui, o mesmo que tentou emplacar a ideia de uma democracia racial, ou uma "escravidão branda" no Brasil. Já havia o cozido português, que era uma espécie de feijoada, e em terras brasilis, ainda bem longe das senzalas, o alimento básico era uma mistura de feijão com farinha, de herança indígena. Com os portugueses, essa mistura recebeu o acréscimo da carne guisada, refogada; cozidos conjuntamente.

Já o feijão é mais de antes. Sim, veio das Américas, e há registros de seu consumo há pelo menos nove mil anos antes de Cristo. Delas, das Américas, essa leguminosa espalhou-se pelo mundo. Os egípcios antigos acreditavam que os feijões, por terem forma de fetos, continham as almas dos mortos. No Japão, era usado para exorcizar maus espíritos, e na Europa o feijão ganhou destaque nos campos mediterrâneos e no norte, ainda no século 13.

Já a farinha sim, é nossa. De origem tupi, antes da colonização, as raízes de mandioca eram o elemento principal de cultivo e nutrição dos Tupinambás, e os tupis-guaranis colocaram milho na conversa. Como eram nômades, o consumo da farinha de milho, feita do cereal seco triturado no pilão de madeira, principalmente no sudeste do Brasil, ficou conhecido como “o pão da terra”. Era de fácil armazenamento e durava bastante.

Mas o Brasil se apropriou dessas culturas, elevou a feijoada à enésima potência, e como toda cultura popular bem trabalhada, transformou-se em identidade. Cada um com um segredinho, cada região incluindo ou retirando ingredientes, mas essencialmente semelhante e produtora de sentimentos comuns. Assim como a música, a literatura e a arte. Elementos que nos transformam em um povo, que trazem as mesmas memórias afetivas em um país continental. Ou pelo menos, as mesmas referências.
A feijoada lá de casa era agregadora, quase uma tradição que nos mantinha, como ingredientes daquele núcleo familiar cozido e refogado em dores e sabores, unidos. Claro que havia diferenças, o paladar não era igual, tampouco a percepção minha ou de minhas irmãs eram as mesmas. Trago aqui as minhas, que podem ser diametralmente opostas de outras percepções vindas do mesmo ambiente. Meus pais, conservadores por assim terem sido criados, decidiram que aquele ia ser um lar de liberdade e conhecimento; sempre incentivados, ambos os conceitos.
Ao meu alcance e de minhas irmãs, e de quem passasse por lá, estava o “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de Marx, na mesma estante de “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Convivemos com essas misturas, como convive a feijoada. De resultado, saiu alguém social-democrata, ou social-liberal (ainda em construção e influenciado pelo contexto histórico de um país complexo), como eu, e uma progressista quase radical, psolista de carteirinha, como minha irmã mais velha. É óbvio que as discussões, mesmo em dia de feijoada, aconteciam. E por vezes as palavras eram advindas do fígado, e não da razão. Mas, havia convivência e respeito mútuo. Esses, aprendidos na mistura, na miscigenação e no refogar de ideias velhas e no cozimento de outras, antes estratificadas, que mudaram de forma com o calor. Sentávamos à mesa misturados, não separados à direita e à esquerda, como girondinos e jacobinos.

Como referência intelectual, até por sua ligação com Campos dos Goytacazes (nome indígena em uma cidade conservadora), sempre li e me alimentei de Darcy Ribeiro. E sempre relutei em aceitar a tal “democracia racial” da Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Darcy queria entender a miscigenação, compreender um povo formado por pessoas escravizadas africanas, indígenas nativos e portugueses fugidos. Entendia que o mestiço era o trunfo da nação, assim como Freyre, mas com necessidade de luta, de processos emancipatórios e compensatórios.

Darcy não pode ver, mas há dez anos nosso Brasil cindiu. Rachou ao meio. Desde de 2013 passamos a nos odiar por opções eleitorais e ideológicas. Perdemos o sentido da feijoada. Precisamos recuperá-lo, achar os ingredientes que estragaram e tentar refazer a receita de um país minimamente civilizado, onde não se queira fritar um adversário, ou dar tapas na cara de quem veste camisa da seleção brasileira. Devemos saber sentir a dor de sangue preto escorrendo nas ruas, sem rasgar placas feitas em sua homenagem e lembrança.

Como cantou e versou Chico, talvez devêssemos aproveitar a gordura da frigideira, melhor temperar a couve mineira. Fazer uma feijoada nova, achar um Brasil que saia dessa fumaça aromática. E se estivermos duros para uma feijoada completa, podemos pendurar a fatura no nosso irmão. E botar água no feijão, que deve dar para todos.

*Vou tirar uns dias deste espaço, retornando em meados de janeiro. Deixo essa mensagem de fim de ano, que embora um tanto quanto idealizada, é sinceramente esperançada. Ao leitor, agradeço a parceria neste ano, e digo que sou muito honrado em receber todos os retornos positivos que sempre recebo. Até as críticas, essas necessárias, são bem vindas; e refogadas. Até a volta!

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