Cinema: Trilha sonora
*Edgar Vianna de Andrade 13/07/2020 19:32 - Atualizado em 24/07/2020 18:40
Antes do advento do cinema, a música considerada erudita podia ser agrupada em duas grandes categorias: de um lado, a música pura; de outro, a música de programa. A pura é aquela que não pretende descrever nada, resumindo-se a criar arte com sons. Antes da música de vanguarda, nunca se conseguiu que a música pura fosse realmente absoluta. Ela sempre transmitiu algum tipo de emoção. A música pura de Bach está repleta de religiosidade. A música pura de Mozart retrata a aristocracia em seus estertores, com sua frivolidade. A música pura de Beethoven é de uma rebeldia nervosa. A música puríssima de Brahms reflete a nostalgia pelo fim da velha Alemanha e do romantismo.
A música de programa pretende narrar uma história com sons. O exemplo que mais se aproxima da música pura é o poema sinfônico. Richard Strauss pretendeu que se imaginasse o estertor de uma pessoa em “Morte e transfiguração”. Uma espécie de composição a descrever algo que se vê é a música para dança, gênero em que Tchaikovsky se tornou famoso. Contudo, o gênero mais ambicioso de música de programa é a ópera. Nela, os sons não apenas sugerem algo à visão ou descrevem algo que se vê, mas ela mesma – a música – é entoada pelos participantes, que, além de cantarem, também representam uma peça teatral.
Com a invenção do cinema, cria-se uma nova categoria: a trilha sonora. Desde os tempos do cinema mudo, a música foi usada, fora da película, como acompanhamento. Um pianista, um violoncelista ou um pequeno grupo produziam sons de acordo com os movimentos da tela, ora mais calmos, ora mais agitados. Estudiosos da nova arte afirmam que era possível acoplar a música diretamente à fita, mas tratava-se de um processo demorado e caro.
Quando, em 1927, conseguiu-se reunir imagem e som na película, a trilha sonora começou a ganhar importância no cinema. O genial cineasta alemão Ernst Lubitsch, trabalhando nos Estados Unidos, dirigiu “A parada do amor” em 1929, o primeiro musical do cinema. Daí em diante, o cinema não mais dispensou a música. Mas não podia ser qualquer música. Por duas ocasiões, Villa-Lobos, que tocou violoncelo em cinema quando jovem, foi convidado para compor trilhas sonoras. Ele se saiu bem em todos os gêneros musicais, mas fracassou na composição de trilhas sonoras por considerar o cinema uma arte menor que a música. A primeira experiência foi com o filme “O descobrimento do Brasil”, dirigido por Humberto Mauro em 1937. Para ele, Villa-Lobos compôs uma belíssima cantata, porém mais longa que o filme. Sua última composição foi “A floresta amazônica”, de 1959, também escrita sob encomenda para musicar um filme norte-americano medíocre. Foi um fracasso. Só um autor compôs trilhas sonoras sobre cada quadro de filmes. Trata-se de Philip Glass, nos filmes “Koyaanisqatsi” (1982), “Powaqqatsi” e (2002) “Naqoyqatsi” (2002) do inspirado cineasta Godfrey Reggio, dono de uma reduzida filmografia. Glass compôs muitas outras trilhas sonoras, mas elas foram editadas de acordo com os filmes. Os três mencionados são documentários sem palavras. Daí a música poder ser apresentada na íntegra.
O grande compositor de trilha sonora deve ter a humildade de reconhecer que sua música não é maior que o filme e que deve ilustrá-lo. Assim, ele pode se tornar grande. Pode-se dizer que a Itália produziu três mestres em trilhas sonoras: Mario Nascimbene, Nino Rota e Ennio Morricone, este último falecido recentemente. Nascimbene é autor das trilhas sonoras de “A condessa descalça” (1954), “Alexandre, o grande” (1956), “Os vikings” (1958), “Salomão e a rainha de Sabá” (1959), “Cartago em chamas” (1960), “Constantino e a cruz” (1961), “Francisco de Assis” (1961), “Os Mongóis” (1961), “Barrabaá” (1961) e muitos outros.
Nino Rota imortalizou-se como compositor das trilhas sonoras dos filmes de Federico Fellini. Dos três, Ennio Morricone é o mais conhecido e aclamado. Suas trilhas sonoras são criativas, experimentalista que ele foi, usando ocarina e sons ambientes. Quando um fagote emitindo notas mais graves do que o comum entrou na trilha de “Os oito odiados”, de Quentin Tarantino, disse a mim mesmo: essa trilhe merece o Oscar. Acertei. Ele o arrebatou sem hesitação. Não cabe listar suas composições. A imprensa já o fez exaustivamente depois de sua morte. Faço apenas o registro de sua relação com Sergio Leone em filmes do chamado faroeste espaguete. Suas trilhas se tornaram imortais. Hoje, a música passou a ter tanta importância quanto o filme.

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