Na Ribalta: Cores Proibidas
Fernando Rossi 22/07/2020 18:24 - Atualizado em 29/07/2020 16:27
Como explicar que Yukio Mishima, um dos maiores escritores do século 20, permaneça relativamente pouco lido? Teria o escritor sucumbido sob o peso de sua própria criação? Teria o homem se tornado prisioneiro do mito?, sim, pois é praticamente impossível lê-lo hoje sem passar pelas referências obrigatórias, e necessariamente ambíguas, a temas polêmicos como fascismo, misoginia, sadismo e culto à violência. Mais de três décadas após seu suicídio ritual, aos 45 anos de idade, o legado de Mishima parece se equilibrar entre o patamar de monstro sagrado da literatura moderna e a condição de simples monstro: um gênio maldito na contramão da litania de bons sentimentos que compõem o senso comum ético de nossos dias.
Quase tudo pode ser dito contra Mishima; só não vale ignorá-lo. Dentre os cerca de 20 romances de sua autoria estão alguns dos grandes clássicos da literatura do último século. É bem-vinda, portanto, toda nova edição de sua obra em língua portuguesa, como é o caso de "Cores Proibidas". Traduzido diretamente do japonês, como convém num país de influência nipônica tão pronunciada quanto o Brasil, o romance acrescenta uma nova dimensão para quem só conhece as obras-primas de Mishima, como "Mar da fertilidade". Trata-se do segundo livro do escritor, publicado aos 26 anos de idade, na sequência do sucesso de "Confissões de uma máscara", em 1949. Nele, o leitor encontra um Mishima híbrido, dividido entre elucubrações estéticas grandiosas e a descrição episódica do cotidiano japonês do pós-guerra, entre o ensaísmo literário e uma espécie de romance de formação de cunho homossexual.
A trama gira em torno da relação sinuosa entre Shunsuke Hinoki, um célebre escritor sessentão cultuado por todos e amado por ninguém, e Yuichi Minani, um jovem de beleza tão rara e excepcional que suscita imediatamente o desejo de todos que o cercam, mulheres e homens, mas que padece de uma estranha incapacidade de amar ou até mesmo de se interessar pela vida. Com sua criatividade literária esgotada, Shunsuke resolve investir suas energias remanescentes em Yuichi, transformando o rapaz em sua derradeira e maior obra de arte. O velho escritor passa a dirigir todas as ações da vida do jovem companheiro, utilizando-o principalmente para se vingar das mulheres que o rejeitaram. O rapaz, por sua vez, percebe no pacto sinistro que firma com Shunsuke uma direção para sua existência atormentada e se agarra a esse norte com todo afinco dos desesperados.
O tom do livro é dado por espelhos. Através dos dois personagens principais, o autor revela facetas importantíssimas de uma identidade marcada por ambivalência e conflitos. Por um lado, há Yuichi (que compartilha com Mishima as sílabas iniciais de nome e sobrenome), jovem homossexual vital e arrogante, intensamente xenófobo e desiludido com a decadência de sua época. Por outro lado, há Shunsuke, autor de uma obra bela, preciosa e bem acabada do ponto de vista formal, mas essencialmente vazia de qualquer significado humano profundo. Mishima é impiedoso na caracterização de ambos, assumindo por vezes a voz de Shunsuke para tecer considerações abstratas sobre literatura, apenas para derrubá-las logo em seguida através da constatação ferina da feiura do velho criador, como uma espécie de afronta moral à beleza pura e eterna de sua jovem criatura. Assim, o livro acaba se transformando em uma longa reflexão sobre a relação entre vida e arte, entre a experiência e a capacidade da escrita de evocá-la.
Para um público contemporâneo, "Cores Proibidas" traz seus momentos de maior interesse ao retratar em primeira mão o submundo gay de Tóquio na década de 1950. Nas passagens em que se entrega com evidente deleite ao relato de encontros furtivos em banheiros públicos ou à descrição da sensualidade de uma nuca raspada, Mishina atinge um grau de consagração literária da homossexualidade moderna comparável apenas ao Proust de "Em busca do tempo perdido" ou a Thomas Mann de "Morte em Veneza". Não é pouco, mesmo que não represente muito na trajetória de um autor que viria a alcançar sua genialidade posterior. Para quem nunca leu Mishima, "Cores Proibidas" é, com certeza, uma introdução enviesada à obra. Contudo, é melhor entrar enviesado numa obra de tamanha potência do que entrar direito em outra de expressão menor.
Yukio Mishima, pseudônimo de Kimitake Hiraoka foi um novelista e dramaturgo japonês mundialmente conhecido por romances como Brasil: "O Templo do Pavilhão Dourado" /Portugal: "O Templo Doirado" e "Cores Proibidas". Escreveu mais de 40 novelas, poemas, ensaios e peças modernas de teatro Kabuki e Nô.
Nascimento: 14 de janeiro de 1925, Yotsuya, Tóquio, Japão
Falecimento: 25 de novembro de 1970
Altura: 1,63 m
Filmes: "Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos", "Patriotism" 
Filhos: Iichiro Hiraoka, Noriko Tomita

ÚLTIMAS NOTÍCIAS