Carlos Valpassos: Os motoboys na pandemia
26/06/2020 22:31 - Atualizado em 24/07/2020 18:31
Carlos Valpassos  Antropólogo
Carlos Valpassos Antropólogo
Ser brasileiro, dentre outras coisas, significa viver com várias questões entaladas na garganta. Você se depara com o absurdo, mas não tem tempo nem meios para confrontá-lo, então ele fica lá até ser esquecido [engolido] ou vociferado [vomitado] ao primeiro estímulo. Para aqueles que escrevem, às vezes, sobra a oportunidade de transpor para as letras aquilo que ficou travado na garganta da alma.
Uma das dificuldades dos antropólogos é que eles, muitas vezes, só se sentem confortáveis para abordar temas que dominam através de pesquisas de longa duração. Desse modo, como já destacou Tim Ingold, os antropólogos deixam para aventureiros da opinião a abordagem de inúmeros temas que encontrariam nas bases humanistas da Antropologia caminhos alvissareiros. Como nunca pesquisei sobre motoboys, sinto-me pouco confortável para falar sobre o assunto, mas, como já somei mais de 20 anos andando de moto e várias dezenas de milhares de quilômetros que atestam minha sorte, acredito que posso tecer comentários a respeito de algumas das atividades exercidas sobre duas rodas.
Sou um entusiasta das motocicletas. Acompanho os lançamentos e conheço detalhes de motos nas quais nunca tocarei e que estão completamente fora do radar da minha conta bancária. Todavia, é um prazer saber das novidades da BMW, do que a Honda vem projetando ou dos relançamentos programados para o segmento Trail da Yamaha. E como sujeito humano que sou, fico aborrecido a cada componente eletrônico adotado pela Harley-Davidson — isso para não falar nos fios de cabelo branco que apareceram quando fiquei sabendo do modelo elétrico da marca. Em meio a tudo isso, vejo-me morrendo de inveja de gente como o Leandro Mello e a Karina Simões, que conseguiram unir a vida prática à paixão e trabalham testando motocicletas e falando de suas impressões. Nem todos os amantes das motocicletas tiveram tanta sorte.
Existe uma falsa dualidade que é reiterada cotidianamente quando surge o tema das motocicletas: Motociclista x Motoqueiro. Nesse sentido, argumentos apressados surgem para separar aqueles que andam de moto em dois segmentos. De um lado estão os bons motociclistas, respeitáveis, ordeiros, seguidores fiéis das leis de trânsito e pessoas “de bem”. Do outro, estão os motoqueiros, que são apontados como aqueles que desobedecem às leis de trânsito, que correm riscos desnecessários e que fazem muito barulho com suas motocicletas — que normalmente não são admiráveis.
É intrigante que justamente os mais pobres sejam sempre associados à alcunha de “motoqueiros”. Em um país onde o preconceito de classe se destaca cotidianamente, são os mais pobres, mais jovens e com motos menores que sofrem com o estereótipo de “motoqueiros”. E não falo por “achismo”, mas sim por experiência própria. Sempre fiz uso de motocicletas para o deslocamento diário. Durante o período universitário, quando andava em uma charmosa Honda XL-250R com quase 20 anos de idade, eu era parado em blitz pelo menos duas ou três vezes por semana enquanto percorria os trechos entre a Pecuária e a Uenf. Depois que comprei uma moto de alta cilindrada, aos trinta anos, não apenas passei a contar nos dedos a quantidade de vezes em que fui abordado pela polícia — apesar de ter multiplicado consideravelmente as distâncias percorridas — como também notei maior polidez nas abordagens.
A figura de uma pessoa com mais de 30 anos — branca — em uma motocicleta cara e com acessórios de segurança adequados costuma se enquadrar na categoria “motociclista”. Todavia, não é difícil encontrar exemplos de personagens que preenchem todos os quesitos mencionados, mas que extrapolam nos limites de velocidade — 299km/h —, ou outros que não pagam os impostos do veículo ou que circulam sem habilitação na certeza de que estão seguros por andar em grupo na estrada. A jaqueta não faz o motociclista — a motocicleta ou a barba hipster tampouco.
As pessoas que utilizam motocicletas para realizar entregas podem até ser possuídas por essa paixão ordinária despertada pelos veículos de duas rodas, mas nem sempre é este o caso. É comum que a motocicleta, nesses casos, surja apenas como um instrumento de trabalho. Nesse sentido, há uma separação clara entre pessoas que andam em motocicletas apenas por paixão e aquelas que andam apenas por necessidade profissional. Entre os dois extremos, claro, existe um universo de possibilidades. O que quero ressaltar, todavia, é que há uma enorme heterogeneidade no universo dos motociclistas, algo que perpassa não apenas os diferentes modelos, mas que também tem relação clara com os propósitos que impulsionam a relação entre pessoas e máquinas.
Do mesmo jeito que podemos argumentar que os motoqueiros-motociclistas são divididos em inúmeros aspectos, podemos dizer que há uma questão que os une. Todos, independente da cilindrada, do modelo ou do propósito, quando sobem em uma motocicleta, assumem o risco de um acidente — seja ele decorrente da falha daquele que conduz a moto ou de qualquer outro ator do trânsito. Desse modo, enquanto a maioria dos pequenos acidentes de carro costumam gerar apenas prejuízos para os veículos, acidentes de moto, na maioria das vezes, por mais simples que sejam, implicam em sangue. Basta cair parado de uma moto para ralar as mãos ou o cotovelo, o que significa que acidentes em movimento frequentemente ocasionam fraturas, cortes profundos ou mesmo a morte. Andar de moto é expor-se ao risco. E não importa se você anda por paixão ou por necessidade profissional, o risco está presente para todos — embora os melhores equipamentos de segurança estejam longe do alcance daqueles que encaram jornadas de 8 a 12 horas para entregar comida por aplicativo.
Uma crítica frequente às motos e aos seus condutores diz respeito ao barulho. Escapamentos abertos ou alterados rompem o silêncio das avenidas e atingem o interior dos lares. A questão, por vezes, assume o tom legalista, demandando fiscalização e penalização para os “infratores”. Os diferentes atores da segurança pública indicam a dificuldade de impor a fiscalização — muitas vezes em virtude da escassez de decibelímetros, sem os quais é difícil argumentar que um escapamento emite ruído além do permitido. Associações de motoboys, por sua vez, argumentam que o som alto dos escapamentos surge como um instrumento de segurança para os motoboys, que têm sua presença percebida pelos motoristas à distância, mesmo quando estes estão encerrados em seus veículos com janelas fechadas e som ligado. O barulho do escapamento, nesse sentido, serve de alerta para quando os motoboys se aproximam e passam pelos “pontos cegos” dos motoristas de automóvel. O debate costuma ser acalorado e opõe o direito ao silêncio a um dispositivo que aumenta a segurança de um grupo vulnerável. Não gosto dos barulhos excessivos, mas, nesse debate, inclino-me a ficar do lado de quem pode perder uma perna e não daqueles que precisam aumentar o volume da TV.
Com a pandemia do coronavírus, intensificaram-se os serviços de entrega de comida. Com as ruas vazias em virtude das medidas de isolamento social, os motoboys passaram a se destacar ainda mais: tiveram seu número aumentado consideravelmente ao mesmo tempo em que passaram a circular como maioria em ruas e avenidas com tráfego reduzido. Não demorou para que os escapamentos surgissem como alvo de críticas. Sobretudo por moradores de condomínios, que passaram a conviver com o entra e sai dos motoboys em seus bairros particulares.
Até aí, tudo seguia o ritmo de sempre. Acontece que, há poucas semanas, passou a circular nas redes sociais uma mensagem solicitando que as pessoas evitassem pedir comida de restaurantes ou lanchonetes que contratassem, para entregar seus produtos, motoboys que usam motocicletas com escapamento “barulhento”. A cultura do cancelamento chegou aos motoboys. Justo eles, que estão, desde o princípio da pandemia, expondo-se cotidianamente para trabalhar, levando alimentos para aqueles que podem pagar para ficar em casa. Não basta se expor para servir, é necessário, por essa lógica, que se exponha em silêncio — sem perturbar a paz daqueles que estão em casa. E não importa que o “barulho” das motocicletas seja um instrumento de proteção no trânsito para aqueles que já estão se expondo ao vírus. A falta de capacidade para colocar-se no lugar do próximo é o que se revela na referida campanha virtual travestida de bem intencionada. No país das desigualdades, enquanto uns correm para entregar a comida, outros reclamam que não estão recebendo em silêncio. Trata-se, pois, de mais um problema enfrentado pelos entregadores de aplicativo, que em julho prometem realizar uma greve nacional por melhores condições de trabalho. Como destaca a campanha da Honda: “O País não parou. Está andando sobre 2 rodas. #valorizeOentregador”.

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