O milagre coreano
27/01/2020 20:20 - Atualizado em 31/01/2020 14:07
Parasita — É comum, atualmente, dar o exemplo da Coreia do Sul como modelo de desenvolvimento. Há uns 30 anos, o país era pobre. O esforço conjugado de governo e população elevaram substancialmente o nível de vida do país, com forte investimento em educação e saúde.
Mas o milagre coreano parece não ter sido completo. É o que mostra o filme “Parasita”, dirigido por Joon-ho Bong, com experiência de nove filmes no currículo. “Parasita” enfoca uma família pobre vivendo em bairro pobre. Casal de pais e casal de filhos se acotovelam numa casa de subterrâneo em que se pode ver a rua de baixo para cima. Um homem embriagado que urina no lixo. Sujeira e casa desprovida de condições de higiene.
O jovem filho fala a palavra “metáfora” com frequência, parecendo desconhecer seu real significado. É um bom termo para classificar o cinema e o próprio filme. Cinema é metáfora da vida real. Ele não é a realidade da vida, mas pode retratar a realidade. A fotografia do filme “1917” não tem cortes exatamente para acentuar a sensação de realidade, como na experiência de médicos exibindo um curta sobre saúde para um pequeno grupo da África. As pessoas não admitiam os cortes por criarem uma realidade não real. A vida não tem cortes.
De fato, em “Parasita”, a pobreza é representada metaforicamente pelo espaço. Viver no topo da sociedade ou na sua base não é apenas uma figura, mas uma realidade que fortalece o filme. A família pobre mora num lugar baixo. A casa da família rica fica no alto de uma ladeira e, dentro dela, num porão oculto e infecto, como nos dos filmes de terror, vive secretamente um arquiteto pauperizado que é mantido por sua mulher, empregada da casa.
“Parasita” me evocou a intuição genial de Michel de Certeau em seu livro “A invenção do cotidiano”. Segundo o intelectual, as pessoas no mundo de hoje e em todos os tempos comportam-se dentro de regras que ele denomina de estratégia. Toda sociedade tem sua estratégia, que são os limites estabelecidos pelos poderosos para os fracos. Estes criam táticas de sobrevivência. Na Coreia pré-ocidental, eram outras a estratégia e as táticas. As pessoas inventam o cotidiano, mas segundo regras diferentes. A propósito, o título da obra de De Certeau é exatamente “A invenção do cotidiano”.
Na Coreia do Sul atual, capturada pela globalização ocidental, a estratégia e as táticas também são globalizadas. Para sobreviver, o jovem pobre finge ser um professor de inglês e ministra aulas para a filha do casal rico. Vislumbrando uma oportunidade para a irmã, ele forja uma farsa a fim de que ela trabalhe como psicopedagoga do filho menor da família rica. Valendo-se de artifícios, a moça pobre compromete o motorista da família rica para que seu pai assuma seu lugar. Por fim, todos forjam condições para que a empregada dos ricos seja substituída pela mãe pobre.
Todos os membros da família pobre fingem que não são parentes. Mas De Certeau não diz, no seu livro, que táticas de sobrevivência podem dar errado. É o que acontece com a família coreana. Pai e filhos enfrentam uma enchente na sua casa de porão e acabam num abrigo para flagelados. Esse é um momento crucial no filme e na vida. O plano é não ter plano. Não importa mais matar ou não. Ficar vivo ou não.
Nada restou da honra do passado pré-ocidental da Coreia do Sul. Embora houvesse hierarquias sociais, todos se comportavam com a honra que seu estrato social definia. Numa sociedade de classe à moda ocidental, é preciso ser esperto para sobreviver.
Enfim, além de excelente filme, “Parasita” é uma ótima aula de sociologia. Nem tudo é milagre na Coreia do Sul, mas seu cinema sim.

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