Crítica de cinema - Música, amor e moralidade
*Felipe Fernandes 07/09/2019 12:57 - Atualizado em 16/09/2019 13:19
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(Yesterday) — Confesso que tenho um fraco por histórias em que algo desaparece ou deixa de acontecer e simplesmente acompanhamos os desdobramentos dessa mudança. Seja o fim do nascimento de crianças em “Filhos da esperança”, a morte dos homens na HQ “Y: O último homem” ou no desaparecimento de todos os mexicanos dos Estados Unidos em “Um dia sem mexicanos”. Logo, a ideia de um mundo sem os Beatles me chamou a atenção e, parando para refletir, o mundo seria razoavelmente diferente.
Essa é a premissa de “Yesterday”. Jack Malick (Himesh Patel) é um músico e compositor frustrado e tem como maior incentivadora sua amiga Ellie. Após sofrer um acidente, ele acorda em um mundo que nunca conheceu as músicas dos garotos de Liverpool. Ele, então, resolve ficar famoso tocando os inúmeros sucessos do quarteto e apresentando as músicas como suas.
A premissa é interessante e permite à história inúmeras possibilidades, mas algumas questões não podem ser ignoradas. Primeiro: o conflito moral de tal decisão. Afinal, para um compositor, chegar ao sucesso com a música dos outros não é necessariamente alcançar o sucesso, mesmo que o retorno financeiro venha. Segundo ponto: imagine a importância do papel de Jack, que do dia para a noite se torna o interlocutor dos Beatles para um mundo que não os conhece.
O roteiro do experiente Richard Curtis (“Cavalo de guerra”) até trabalha essas duas facetas da história. Não por acaso, Jack soa arrogante quando não consegue a atenção das pessoas, afinal, ele está proporcionando a oportunidade de ouvir um clássico pela primeira vez, mas aquelas pessoas naturalmente ainda não têm esse discernimento.
Esse tipo de elemento demonstra o potencial do filme, mas seus realizadores resolvem seguir por um caminho mais fácil. A música está presente em todo o filme, mas, tematicamente, funciona como pano de fundo para um romance dos mais ordinários. O sucesso e as mudanças na vida de Jack acontecem repentinamente. Ele se torna um fenômeno mundial, deixa sua cidade e amigos para trás, e passa a rodar o mundo em função do seu novo status.
Daí, surge o conflito básico entre o amor de sua vida e o sucesso. De todas as possibilidades, o filme segue uma das menos interessantes e aborda muito pouco dos efeitos da falta dos Beatles. É uma narrativa já abordada diversas vezes que tem como diferencial essa questão. “Yesterday” se torna um filme totalmente previsível.
Por sinal, as escolhas do protagonista no terceiro ato parecem ser mais motivadas por sua paixão do que propriamente por escolhas de cunho moral, fator que enfraquece um dos pontos mais importantes da produção e torna a relação de Jack com Ellie confusa. Pois desde o início entendemos que os esforços de Ellie para alavancar a carreira de Jack vêm da paixão que ela sente por ele, mas esse sentimento nunca soa recíproco, e quando, no terceiro ato, ele passa a questionar tudo o que conseguiu por ela, soa no mínimo contraditório.
O terceiro ato é um caso à parte. Todas as questões são convenientemente resolvidas, até novos personagens surgem sem maiores explicações, em um final digno das piores novelas, onde tudo precisa ser resolvido rapidamente e todos precisam ter um desfecho feliz.
Dirigido pelo britânico Danny Boyle (“Trainspotting”), conhecido por sua virtuose estilizada, aqui tem um de seus trabalhos com menos personalidade. Carente de inspiração, se limita a introduzir alguns efeitos com letras coloridas buscando situar o espectador, mas o efeito acaba mais tirando o espectador do filme do que qualquer outra coisa. É uma direção burocrática, poderia ser realizada por qualquer outro diretor competente. Em nada lembra o cinema vibrante do diretor.
O filme tem um ritmo agradável, funciona como romance, conta com atores carismáticos, a trilha sonora é bem trabalhada (funciona a favor do filme e não o contrário), mas o filme padece de originalidade e ousadia. Existem dois momentos na virada do segundo para o terceiro ato que, além de serem muito comoventes e até poéticos, denotam o potencial desperdiçado nessa produção.
“Yesterday” poderia ser um grande filme, digno de figurar entre as músicas dos Beatles, mas termina como um filme razoável, e esse é um adjetivo que não pode ser associado ao quarteto de Liverpool.

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