Liberdade e censura
Arthur Soffiati 26/10/2017 19:29 - Atualizado em 01/11/2017 16:10
Desenhos, pinturas e esculturas retratando a nudez são ambíguos na concepção judaico-cristã-muçulmana. Nas culturas de matriz judaica, sobretudo na cristã, o corpo humano desnudo é entendido como sagrado ou como pecaminoso. Normalmente, Jesus crucificado aparece com um exíguo pano sobre a genitália. Visto assim, a nudez é sagrada. Por outro ângulo, a nudez é erótica e pornográfica. No chamado mundo pagão, nem a nudez nem a sexualidade eram vistas como pornográficas. A noção de nudez e de pecado nasceu no mundo monoteísta. Mais precisamente no início da modernidade. Exatamente no momento em que os valores medievais começam a ser questionados
Ainda vivemos essa ambiguidade. A prova mais cabal foram as recentes exposições “Queermuseum”, em Porto Alegre e a performance “La bete” no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Elas levantaram polêmicas sobre liberdade de expressão e censura. Mas não apenas a imagem pode provocar celeumas. Também a literatura e a música podem gerar discussões. Examinemos alguns casos.
Primeiro caso: Pietro Aretino. Ele viveu na primeira metade do século XVI, quando o renascimento já havia mudado a concepção de arte. Aretino era escritor libertino. Entre outros escritos, compôs “Sonetos luxuriosos” (São Paulo: Companhia das Letras, 2011). Dele, transcrevo apenas um soneto, o de número 13, escolhido a esmo: “Chega de briga, sus, tudo se ajeita./Reparti a iguaria saborosa:/Um põe no cu, na cona o outro se entrosa,/Dando princípio à amorosa empreita.//Atenda cada qual ao que deleita,/Foder bem, usar coisa tão gostosa,/Porque no fim em cona ou cu se goza/Pela mesma dulcíssima receita.//Nisto fazei do modo como alego;/Em rixas nem questões vos retardeis,/Cada qual no buraco meta o prego.//Se na culatra os dois vos comprazeis,/Por foder-se ali sério (não o nego),/Noutra foda o buraco trocareis.//Mas o bom Irmão, eis/Que deixa o oval e no redondo a fundo/Entra só para dominar o mundo.”
Pietro Aretino inaugurava a pornografia literária, um gênero que ganhará o ocidente e o mundo nos subterrâneos e na clandestinidade. O curioso é que a pornografia de hoje é o cult de amanhã. Vejamos, no Brasil, o caso de Carlos Zéfiro, proibido no passado e cultuado hoje.
Segundo caso: Marquês de Sade. Imaginemos que quatro homens ricos e libertinos promovam uma orgia trancados num castelo por quatro meses com quarenta jovens de ambos os sexos forçados à prisão. Quatro cafetinas são recrutadas para narrar suas aventuras sexuais e para inspirar constrangimentos, estupros, abusos e assassinatos. Em síntese, foi o que escreveu o Marquês de Sade em “120 dias de Sodoma”, quando estava preso na Bastilha em 1785. Sade é um teste para os progressistas, pois que eles condenam a censura, por um lado, o estupro e violência, por outro. Pasolini levou para o cinema, o polêmico livro de Sade, mas dando-lhe uma conotação fascista. Seriam fascistas os quatro homens que promovem a orgia. Assim, Pasolini estaria adotando uma postura crítica. De qualquer modo, a polêmica causada pelo livro e pelo filme não foi digerida.
Terceiro caso: “A origem do mundo”. No século XIX, Gustave Courbet pintou “A origem do mundo”, quadro retratando uma mulher nua da qual não aparece a cabeça. Merecem destaque apenas o seio direito e uma acintosa vagina. Certa vez, numa palestra sobre ética e estética, em Vitória (ES), estampei esse quadro para um numeroso público. O silêncio foi profundo. Não fui abertamente criticado, mas a imagem calou fundo nos presentes. Ainda hoje, ele causa mal-estar, mas está absorvido pela opinião pública.
Quarto caso: “Sagração da primavera”. Não se pode considerar uma composição musical como pornográfica, a não ser se acompanhada de letra, libreto ou algo que envolva palavras. Mas ela pode causar repulsa no público. Foi o que aconteceu 1913, na estreia de “Sagração da primavera”, bailado de Stravinsky. A música foi vaiada e repudiada, inclusive por compositores consagrados. Hoje, “Sagração” é considerada a fundadora da música moderna do século XX. Stravinsky passou à condição de gênio. Ele é talvez o maior compositor contemporâneo, ainda não igualado.
Quinto caso: Em 1917, Marcel Duchamp colocou a concepção de arte em cheque com “A fonte”. A obra nada mais que é um urinol de banheiro público, sem nenhum trabalho do autor. Ele criou o conceito de arte pronta. Não é preciso mais o trabalho de criação do artista. Basta apenas que ele reconheça em alguma peça do cotidiano um valor estético. Numa exposição coletiva, deparei, certa vez, com uma lata de banha. Aproximei-me dela julgando que fosse uma lixeira. A seu lado, havia um título. Tratava-se de uma obra de arte.
Até hoje, Duchamp causa celeuma. Umberto Eco inseriu “A fonte” em seus livros “História da beleza” e “História da feiura”, ambos publicados pela Record. Por sua vez, Affonso Romano de Sant’Anna entende que a arte começou a se perder com Duchamp, pois tudo pode ser arte. Portanto, nada é mais arte. “A fonte” e outros exemplos de arte pronta não causam polêmicas de ordem moral, mas sim de ordem estética.
Sexto caso: Semana de Arte Moderna. Em 1922, jovens artistas resolveram se manifestar publicamente em São Paulo, por três dias de uma semana de fevereiro. Eles queriam mostrar ao público sua produção artística na literatura, música e artes plásticas. A ruptura proposta na Semana de Arte Moderna gerou vaias. Durante um pronunciamento, Mário de Andrade, um dos artistas, voltou-se para o público dizendo que queria vaias e batatas. Alguns nomes da Semana se tornaram consagrados artistas e intelectuais. Outros não tiveram o mesmo futuro.
Sétimo caso: Jeff Koons. Em 1991, o artista norte-americano Jeff Koons casou-se com a estrela pornô italiana Ilona Staller (La Cicciolina) e com ela produziu uma série de fotos retratando sexo vaginal, oral e anal. A exposição das fotos causou escândalo e polêmica. A linha divisória entre arte e pornografia ficou tênue. Pelo conjunto da obra, Koons não pode ser considerado um destacado artista. Assim, a dúvida entre suas qualidades e a apelação para sua pessoa permanece.
Conclusão: as polêmicas em torno da arte são frequentes desde o renascimento. Na antiguidade não se tem notícia delas. Há o caso de Platão, que se situa mais no plano filosófico. Ele considerava tudo que existia na Terra como cópias de modelos ideais no mundo das ideias. Assim, retratar uma pessoa, um animal ou uma planta se tratava de uma cópia da cópia. Isso não interferiu na criação artística.
O fundamento das polêmicas é estético ou moral. Conservadores e progressistas vaiam de acordo com suas posições políticas. Caetano e Gil foram vaiados pela esquerda durante a Tropicália. Uma obra ou um movimento são criticados seja pela concepção estética, seja por se utilizar de imagens religiosas ou da sexualidade humana. O escândalo que uma obra causa não garante a qualidade estética dela. Esse o caso de Aretino e Koons, por exemplo. Muito barulho por nada. Por outro lado, Courbet, Stravinsky, Villa-Lobos e Mário, de Andrade sofreram severas críticas do público e se consagraram como artistas. A liberdade de expressão dos artistas e do público está assegurada no mundo ocidental. Creio que a prudência, contudo, recomenda que exista classificação de exposições por faixa etária. Elas também devem ser promovidas por instituições públicas. É o que está acontecendo com a exposição “Histórias da Sexualidade”, no Museu de Arte de São Paulo, proibida para menores de 18 anos. Assim, evita-se que uma criança toque no pênis de um homem nu em vez de no seu pé. Evita-se também que uma instituição privada sofra pressão de seus clientes e suspenda exposições. Mas, convenhamos, não deveria haver proibição e sim recomendação. Da mesma forma, a idade poderia ser reduzida para 16 anos. Com essa idade, moça ou rapaz já sabe de tudo nos dias de hoje.

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